Por Januária Cristina Alves*
Imagem de Internet
Aproximadamente 60% dos habitantes deste planeta se informa, toma decisões, acessa arte e produz cultura ao mesmo tempo que se desinforma pela internet
“Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?”
Quando todas as definições não dão conta de explicar um conceito ou um fenômeno, é só buscar na poesia e lá ele estará devidamente (d)escrito. A poesia é a chave, aquela que abre portas não apenas para a gente saber, mas para esclarecer e, sobretudo, experienciar o que se quer descobrir. A poesia é a morada de todos os saberes porque é ampla o suficiente para caber as incertezas e precisa na justa medida para garantir o entendimento.
Foi em busca de dar conta de definir – mais uma vez e sempre! – a Educação Midiática, que me lembrei desse poema do grande e imortal poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade. Ele, nessa “Procura da poesia”, poema publicado em seu livro “A rosa do povo”, me trouxe a chave da definição mais precisa que encontrei dessa matéria sobre a qual venho me debruçando aqui no Nexo em mais de 56 colunas publicadas nos últimos dois anos e meio.
O papel da Educação Midiática é ser um instrumento que nos lembre como é possível manter a nossa identidade e alteridade sem nos perdermos em abas infinitas
Espaço democrático e plural, o Nexo abriu esse lugar de compartilhamento de conhecimentos, no qual o acesso aos meus artigos é aberto a qualquer cidadão e pelo qual tenho falado sobre esse tema, definido por Audrey Azoulay, diretora geral da Unesco, em sua carta de celebração da Semana Mundial de Alfabetização Midiática e Informacional de 2023, celebrada entre 23 e 31 de outubro, como “a competência essencial para os cidadãos do século 21”. Sob diferentes maneiras e diversas óticas, venho buscando aproximar a educação para, com, sobre e por meio das mídias do nosso cotidiano, evidenciando sua necessária colaboração para a formação de seres humanos mais conscientes, críticos e capazes de realizar as transformações necessárias para tornar esse mundo um lugar mais justo e sustentável.
A tarefa não é simples, pois trata-se de tema complexo e multifacetado, que cabe embaixo do guarda-chuva do que se costuma chamar de “ecossistema informacional”, pelo qual interagimos em larga escala e com imensa rapidez. Aproximadamente 60% dos habitantes desse planeta se informam, tomam decisões que vão da saúde à economia, acessam arte e produzem cultura, ao mesmo tempo em que se desinformam, se inflamam de ódios, preconceitos, vivem paixões e expressam suas angústias, nessa rede chamada internet. Ela, que nasceu sob a utopia de democratização da participação equânime, hoje revela a profunda desigualdade na qual vive a nossa sociedade. E à Educação Midiática cabe a tarefa de educar para compreender o que tudo isso significa e também para ensinar a todos nós a navegar por esses mares “nunca dantes navegados”.
Não por acaso, o tema da Global MIL Week deste ano é “Alfabetização midiática e informacional em espaços digitais: uma agenda global coletiva - explorar caminhos para fortalecer a cooperação multilateral com plataformas digitais”, tendo como objetivo “dar a oportunidade de explorar caminhos para fortalecer a cooperação multilateral com plataformas digitais e outras partes interessadas na integração da alfabetização midiática e informacional em políticas, operações e produtos”. Ou seja, se a vida acontece nessas plataformas, é preciso que elas colaborem para que ali seja um local de promoção dos valores que são caros à sociedade democrática. Uma proposta tão ousada quanto complexa, mas absolutamente necessária, pois não se trata de demonizar esses espaços digitais, mas tão somente ajudar na construção de possibilidades de conexões reais entre os diferentes povos, garantindo que a essência da raça humana mantenha-se preservada, ao invés de diluída em um lugar comum determinado pelos algoritmos.
Mais do que nunca, acredito que a Educação Midiática precisa trazer as chaves para a leitura desse mundo inundado por esse dilúvio de (des)informação. Inspirada pelo poema de Drummond, devo afirmar que creio, de fato, que “contemplar as palavras com mil faces secretas sob a face neutra” tem a ver com desvendar os mistérios daquilo que está explícito e implícito nos textos, vídeos, áudios, nas histórias dissonantes, paradoxais, muitas delas construídas para nos distrair do que nos interessa. A leitura do mundo sob as mais diferentes perspectivas, a construção de um repertório leitor não apenas múltiplo, mas representativo das vozes ausentes por séculos – como a dos pretos, indígenas, das pessoas com deficiência, dentre tantos excluídos –, e a pesquisa verdadeiramente investigativa, que nunca se contenta com a primeira resposta do buscador, nunca foi tão necessária. A pergunta, como nos aconselha o poeta mineiro, não deve apenas visar a resposta, mas a busca pela chave. E a chave da leitura dessa “guerra de narrativas”, para usar o termo que hoje define essa babel digital, na qual as opiniões imperam sobre a realidade socialmente construída, será sempre a dúvida. Não aquela que inspira o cinismo e o descrédito amparado pelos nossos vieses de confirmação, mas a que alimenta o gosto pelo conhecimento.
E o conhecimento, nunca é demais lembrar, se constrói com tempo, afeto, com a aceitação do diverso, do diferente e do desigual, na busca das convergências possíveis a partir dos paradoxos contidos na convivência em sociedade. O papel da Educação Midiática, como eu a compreendo hoje, depois de mais 30 anos trilhando esse caminho em busca de conhecer melhor o mundo que é editado pelas mídias e que nos chega despedaçado, para que a gente trace um retrato que faça sentido para nós e para o outro, é ser um instrumento que nos lembre como é possível manter a nossa identidade e alteridade sem nos perdermos nas abas infinitas que abrimos nos nossos computadores e celulares. Ela deve possibilitar a formação de pessoas que consigam mapear e hierarquizar o conhecimento, que utilizem as narrativas para construir diferentes significados junto ao que acessam e expressam e, por fim, que sejam capazes de atribuir um sentido coletivo para as experiências individuais.
Não, não é um propósito de fácil execução, mas é bom lembrar que ele pode se ancorar nas “tecnologias ancestrais de produção de infinitos”, utilizando expressão de uma poeta do nosso tempo, Cidinha da Silva, que tem um livro com esse título. Segundo ela, é preciso acessar o saber “de antes”, as técnicas que compõem um imaginário infinitamente maior do que nosso alcance pode imaginar. Essas tecnologias servem para “nos lembrar do futuro, de quem será (o presente), do que outras pessoas não foram (o passado), mas cujo legado (ancestralidade) é o que motiva e dá base para que alguém possa modificar os passos adiante”. E a vantagem é que essa tecnologia a gente já conhece e usa. E ela continua funcionando até hoje.
*Este ano também celebramos a Semana Brasileira de Educação Midiática. Veja os conteúdos pelo site.
*Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/Educa%C3%A7%C3%A3o-Midi%C3%A1tica-e-leitura-do-mundo-%E2%80%98trouxeste-a-chave%E2%80%99
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