quinta-feira, 16 de novembro de 2023

“O mundo se transformou num mundo de faz de conta. Os que querem mudar fazem de conta que o querem. A sociedade é hoje a sociedade do espetáculo”.

 Por: Patricia Fachin

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 Foto: Tânia Rêgo | EBC

Entrevista especial com José de Souza Martins

"Aqui, esquerda é uma visão de mundo desfigurada, de classe média, pequeno burguesa, modo político de ser da fragmentação de um ser social dotado de uma falsa consciência do que a realidade é, porque desconhece o que a sociedade pode ser", diz o sociólogo

Se, de um lado, o mundo mudou e permanece em contínua transformação desde a Segunda Guerra Mundial, de outro lado, "necessidades radicais se diversificam e se multiplicam", pontua José de Souza Martins. Entre elas, sublinha, "hoje, a esperança é uma necessidade radical. A alegria também. O reconhecimento da legitimidade da pluralidade social e da diversidade das identidades. E, em países atrasados, como o Brasil, comer e morar também". Essas "necessidades radicais", segundo ele, dizem muito sobre o quadro social brasileiro, no qual existem "33 milhões de famintos", "mais de cem milhões de pessoas estão vivendo em estado de carência alimentar", e o "PIB só cresce e poucos se incomodam com isso".

Na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail, o sociólogo diz que "o mundo se diversificou, ficou mais complicado e mais difícil de compreender", mas, insiste, "as classes sociais continuam sendo a referência explicativa da realidade em uma sociedade que é capitalista". Ele explica: "A sociedade capitalista, historicamente, produz o novo que expressa as necessidades radicais, mas reproduz o que ela própria carece como repetição, reiteração, reprodução. O movimento é contraditório, o que torna difícil sua compreensão. O mundo de hoje é mais o da falsa consciência do que o da verdadeira consciência".

Neste novo-velho mundo, menciona, "o modo ingênuo como a pobreza é combatida já acabou. É um mundo de busca sem fim e de incerteza sem fim. Como mostrou Max Weber em 'Ciência e política, uma só vocação', a sociedade do progresso material encheu o mundo com a concepção de um progresso sem fim, em que as pessoas não morrem nem querem morrer, um mundo sem alteridade, sem o outro, que por isso mesmo acaba e morre todos os dias, nos seres de angústia e medo que somos".

Na manhã de hoje, José de Souza Martins participará do debate "Nunca afasta do pobre o teu olhar" (Tb, 4,7). Dia Mundial dos Pobres, promovido pelo IHU, às 10h. Participam também do evento Fernando Francisco de Gois, padre da prelazia de São Felix do Araguaia (MT) e Irmão Henrique, peregrino da Comunidade de Trindade (BA). O evento será transmitido na página eletrônica do IHU, no Canal do IHU no YouTube e nas redes sociais. O link ido evento está disponível aqui.

Às 17h30, IHU também promove a videoconferência Habitar na região metropolitana de Porto Alegre. A luta pelo direito à cidade, com o Prof. Dr. Mário Leal Lahorgue, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O evento será transmitido na página eletrônica do IHU e o link está disponível aqui.

José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP.

Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (Paulus, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (Contexto, 2015), Do PT das lutas sociais ao PT do poder (Contexto, 2016) e Sociologia do desconhecimento: ensaios sobre a incerteza do instante (Unesp, 2021). Neste mês, o sociólogo publicará sua obra mais recente, Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista, pela Editora da Unesp. 

Confira a entrevista.


IHU – O senhor concorda com "a hipótese do fim do mundo ou do fim de um mundo"? Quais são as evidências dessa hipótese?

José de Souza Martins – Nem concordo nem discordo. Temos uma tendência arcaica a pensar o fim do mundo em termos apocalípticos da terra destruída pelo fogo e, nesta conjuntura, pela guerra. Rússia versus Ucrânia, Israel versus Palestina sem alternativa, aparelhados pelo Hamas. O mundo potencialmente dilacerado pela geopolítica de um confronto final. O pressuposto da geopolítica leva essa guerra final a todos os cantos e a todas as pessoas. Quem não está no confronto ou está do “lado errado”, não existe, já está extinto. Passamos os quatro anos do governo anterior condenados à morte e, de fato executados, pelas mentiras e mistificações da atitude governamental em relação à covid-19 e à pandemia, uma molecagem homicida. Passamos quatro anos privados da certeza da vida, sem saber se teríamos um dia seguinte, se reencontraríamos de manhã as pessoas que queremos bem. E esse genocídio não foi julgado nem punido. O fim do mundo está sobretudo na omissão conivente dos tolos que acham que isso nada tem a ver com eles. Acharão quando for tarde demais para eles próprios.

Há, sem dúvida, um fim do mundo em andamento ou o fim de um mundo. Mas qual e como?

Só saberemos isso se soubermos o nome que o mundo tem. Que mundo é esse? O que o caracteriza que compromete sua continuidade, que define sua finitude. Mas qual continuidade? Este mundo só continua na repetição que apenas acoberta as contradições que o recriam e renovam ao mesmo tempo.

Os poderes estão inventando um mundo linear e uniforme, plano, sem irregularidades e tensões desconstrutivas, sem história nem historicidade, em que homens não façam sua própria história. Uma sociedade em que o homem não será o sujeito, mas o mero objeto das coisas, dos que têm e podem. A sociedade cinzenta do invisível e do indizível, sem passado nem futuro. A sociedade do nada. Essa sociedade já existe. Nesse sentido, o mundo já é um mundo que já acabou quando acham que está começando.

Na verdade, esse mundo que tem um nome, nasce e morre todos os dias. Sua lógica interior é dialética: ele se destrói para continuar. Sua lógica é a da reprodução ampliada do capital, isto é, da acumulação continuada e aumentada da riqueza. O que faz desta sociedade uma sociedade cada vez mais rica e mais pobre ao mesmo tempo.

Nesse sentido a pobreza não é expressão de egoísmo e maldade de alguns, mas não de outros como ainda se pensa. A pobreza é um produto, como a lata de sardinha, a metralhadora, a cueca. A linha de produção, que produz essas coisas, produz também a pobreza e produz até mesmo o pobre como personificação da pobreza e como cúmplice de quem o empobrece para viver às suas custas. A fábrica de pobreza é também a fábrica de alienação. A ordem do mundo é a ordem de uma trama de mediações sem a qual nada somos. O mundo já não é um mundo de gente, de pessoas, mas um mundo de impessoalidades invisíveis, que nos fazem ser o que não sabemos que somos e nos faz ser o que achamos não queremos ser. Cada vez mais, somos apenas um pretexto para que os poderios existam.

Portanto, o mundo suposto no modo ingênuo como a pobreza é combatida já acabou. É um mundo de busca sem fim e de incerteza sem fim. Como mostrou Max Weber em “Ciência e política, uma só vocação”, a sociedade do progresso material encheu o mundo com a concepção de um progresso sem fim, em que as pessoas não morrem nem querem morrer, um mundo sem alteridade, sem o outro, que por isso mesmo acaba e morre todos os dias, nos seres de angústia e medo que somos.

IHU – Segundo a análise do Pe. Flavio Lazzarin, a esquerda "preserva o discurso progressista, o blablablá dos direitos humanos, mas especializa-se em caminhos políticos absolutamente contraditórios". Como compreende a crise de identidade da esquerda hoje, tanto no Brasil quanto no mundo de modo geral?

José de Souza Martins – A esquerda é expressão desse mundo. A reificação da esquerda, tão característica da alienação própria da sociedade brasileira, seja para persegui-la e destruí-la, seja para viabilizá-la como a saída miraculosa para o beco sem saída em que a sociedade brasileira se encontra desde que surgiu, inviabiliza aquilo que é função própria da esquerda: a práxis, portanto a superação das contradições que nos tolhem e, em consequência, a libertação de cada um na libertação de todos. Nossa concepção de libertação é, sociologicamente, uma fantasia alienadora, mera militância desenraizada que não liberta nada nem ninguém. Apenas escraviza ideologicamente.

Historicamente, a esquerda é, desde a crise e desde o fim do antigo regime, no século XVIII, expressão das necessidades socialmente situadas, isto é, das necessidades sociais de uma classe social determinada, a classe trabalhadora. Essa concepção foi capturada por outras categorias sociais. A classe trabalhadora nunca teve aqui no Brasil uma elaboração teórica do que singular e sociologicamente é. E, portanto, de quais são as contradições que a movem, de qual é o possível que delas brotam, que pedem e possibilitam uma práxis transformadora e libertadora de todos.

Aqui, esquerda é uma visão de mundo desfigurada, de classe média, pequeno burguesa, modo político de ser da fragmentação de um ser social dotado de uma falsa consciência do que a realidade é, porque desconhece o que a sociedade pode ser. A esquerda está cada vez mais condenada a ser “as esquerdas”, diversidade sem unidade nem projeto de sociedade. Quando muito, antagonismo sem alternativa da sociedade de consumo, mas não necessariamente alternativa fundamentada da sociedade capitalista, que é causa de tudo.

IHU – Recentemente, o senhor disse que "perdemos o rumo em algum lugar do passado e o perdemos porque o pensamento crítico foi paulatinamente reduzido à bobeira da polarização binária que sustenta o fascismo da ideologia do contra". Pode explicar e desenvolver esse pensamento? Quais são os problemas do Brasil hoje e, em particular, das diversas tentativas de análise da realidade do país?

José de Souza Martins – Com exceções minoritárias e satanizadas, como a que penso representar, a variedade dos grupos de esquerda supõe que é de esquerda porque é contra até mesmo àquilo e àqueles que não conhece nem quer conhecer.

Há pouquíssimo tempo, durante o depoimento de João Pedro Stédile na CPI do MST, o histórico líder desse original e socialmente criativo movimento camponês fez um elogio à professora Ruth Cardoso, que foi minha professora de antropologia na USP, para dizer que é contra Fernando Henrique Cardoso, que foi meu professor de sociologia na USP, ambos meus amigos desde que ingressei na universidade, em 1961. Eles me ensinaram boa parte da sociologia e da antropologia que sei, com as quais em longos anos tentei ensinar agentes de pastoral, a pensar criticamente a realidade social que vitima os trabalhadores que dizem querer ajudar como agentes de pastoral e animadores sindicais.

Um comentário esdrúxulo, porque a CPI fora criada com o propósito fascista de julgar, calar e interditar o MST e o próprio Stédile, que tratou o deputado autor do projeto com uma benevolência surpreendente. Aquele mesmo deputado que, quando ministro do governo Bolsonaro, em reunião do governo, recomendou usar a infralegislação ambiental para deixar passar a boiada da ilegalidade por baixo da cerca de arame farpado do direito e da lei. Stédile perdeu a oportunidade de mostrar e provar que o deputado e os que o apoiaram no propósito do inquérito são personagens da criminalidade fundiária e ambiental. E que em nome dessa criminalidade a CPI fora criada.

Em algum lugar do passado, a consciência da esquerda e dos movimentos populares foi dominada por um senso comum tosco, binário e antidialético, isto é, anticientífico, que deixou a militância desprovida de referências objetivas. Questionou a ciência e os cientistas e os satanizou em nome do voluntarismo prepotente que lhe bloqueou a compreensão da realidade social e política e o desvendamento de suas possibilidades de agentes de transformação social. Falar mal da vida alheia não é expressão de consciência política e muito menos de um compromisso com a mudança social necessária.

IHU – Uma das críticas feitas à maioria dos partidos e movimentos de esquerda é a sua não compreensão de que o mundo mudou. Em que aspectos o mundo mudou e parte da esquerda não compreendeu?

José de Souza Martins – O mundo mudou porque foi capturado pelas conveniências do crescimento econômico sem desenvolvimento social, que era a bandeira do keynesianismo, a teoria de John Maynard Keynes sobre a multiplicação de renda e emprego e, portanto, sobre a inclusão social de quem trabalha. Aqui, essa tese se traduziu no nacional-desenvolvimentismo que começa com Vargas e com Roberto Simonsen, um industrial em cuja fábrica trabalhei e cresci, fábrica que me deu, no primeiro dia de trabalho, em 1953, um livreto que me explicava quais eram meus direitos como trabalhador e que os respeitou fielmente.

O mundo mudou porque, para enfrentar e minimizar e competência reivindicativa da classe trabalhadora, o capital desenvolveu uma espécie de “engenharia social” baseada na reestruturação produtiva, neoliberal e antikeynesiana, e na manipulação das fragilidades sociais e econômicas de quem trabalha. Basicamente, caracterizada por um número crescente de pessoas em busca de trabalho no confronto com o número decrescente de empregos em busca de trabalhadores. O desemprego cíclico passou a ser a ferramenta social da manipulação política e da fragilização da classe trabalhadora como sujeito social de direitos e de reivindicações legítimas. Criou-se uma sociedade da incerteza laboral, portanto, destituída de futuro.

No Brasil, a ideologia includente da ascensão social pelo trabalho foi exposta pela primeira vez por Antonio da Silva Prado num discurso no Senado do Império em 1888: se o trabalhador livre, que substituiria o escravo a partir de então, fosse "morigerado, sóbrio e laborioso, formaria pecúlio e se tornaria proprietário de terra".

Prado era o maior produtor de café do mundo, de uma família de grandes empresários desde o século XVIII. Uma família politicamente aberta. Antonio Prado era do Partido Conservador e foi o mais importante autor do fim da escravidão.

Dessa família foi matriarca emblemática Dona Veridiana Valéria da Silva Prado, sua mãe, a primeira empresária brasileira. Dessa família nasceram e se destacaram seu filho Eduardo Prado, personagem de Eça de Queirós, o Jacinto de Thormes, de “A cidade e as serras”.

Levado pelo Padre Jerônimo, que foi secretário da CPT Nacional, visitei Thormes, em Portugal, e ali conhecei e conversei com a viúva do neto de Eça, que lá vivia. A família ainda guardava a memória de Eduardo Prado, que acolheu em Paris a viúva e os filhos de Eça, quando ele era cônsul de Portugal e ali morreu sem recursos. Se Eduardo era monarquista e católico, Caio Prado Júnior, também da família, que foi preso político duas vezes, nos anos 1930 e nos anos 1960, na ditadura militar, grande historiador, era comunista.

Em nenhum momento a esquerda compreendeu que as transformações sociais não nascem no bolso do colete do militante político. Elas são possibilitadas por aquilo que Henri Lefebvre e Agnes Heller, em obras entre si muito diferentes, definem como necessidades sociais radicais. São aquelas que não podem ser saciadas sem que o mundo mude, sem que a sociedade se transforme, sem que haja uma revolução social, isto é, sem que mude a vida e o modo de viver, sem a reconstrução da sociedade em bases diferentes e com valores diferentes. Sem que a sociedade seja socialmente reinventada.

Necessidades radicais

As necessidades radicais se diversificam e se multiplicam. Hoje, a esperança é uma necessidade radical. A alegria também. O reconhecimento da legitimidade da pluralidade social e da diversidade das identidades. E, em países atrasados, como o Brasil, comer e morar também. O país tem hoje mais de cem milhões de pessoas vivendo em estado de carência alimentar; 33 milhões de famintos. E é um país cujo PIB só cresce e poucos se incomodam com isso nem parece a maioria ter consciência de que PIB não enche barriga nem mata a fome.

Há pessoas que acham, também nas igrejas, que a caridade cristã está devidamente praticada com um prato de comida para quem tem fome. A fome é outra coisa. Fome de crianças de famílias pobres não passa. Tenho uma experiência pessoal desse tipo em minha vida. Quando meu pai morreu de tétano por falta de esterilização adequada dos instrumentos cirúrgicos numa operação de hérnia, num hospital barato, eu tinha 5 anos de idade e meu irmão três.

Fome

Família de trabalhadores de fábrica, passamos um duro tempo vivendo carentes de tudo. Só comi pão com manteiga pela primeira vez, aos seis anos de idade, quando uma vizinha, com cujos filhos meu irmão e eu eventualmente brincávamos, nos convidou para um café com leite e pão com manteiga.

Algum tempo depois, minha mãe se casou com um antigo conhecido, de quando ela morava na roça. Ele trabalhava numa fábrica, perdeu o emprego e fomos para a roça, para ele trabalhar como caseiro da chácara de um alemão. Era proibido criar porcos e galinhas. Minha mãe ficou morando na casa de minha tia-avó, para continuar a trabalhar em fábrica e sustentar a família. Meu irmão e eu fomos morar com o padrasto numa casa de pau a pique, coberta de sapé, chão de terra batida. Caminhávamos 16 km por dia, entre ir e voltar, para frequentar a escola no povoado da região. O café da manhã era café preto com algumas colheres de farinha de milho. Almoço e janta era arroz, feijão e salada de repolho. Um dia, desmaiei na sala de aula, de fome. Carne só no domingo, quando minha mãe vinha pra casa e trazia dois bifes, que ela cortava de comprido em quatro bifes bem finos.

Era dono de terra e de gente na região um tal “coronel” Saturnino Pereira, como os antigos coronéis do sertão, da Guarda Nacional. Ele criava gado. Era dono de quase tudo. Também da política. Todos os anos nos três dias da festa de Santa Cruz, em maio, ele matava um boi e nesses dias os muitos pobres que vinham de longe fartavam-se de carne. Também eu e meu irmão. Fora disso, aquela gente toda comia carne quando morria um boi picado de cobra ou por comer erva venenosa. Por tradição, aliás espalhada pelo Brasil, nesses casos, a carne do animal deixava de ter dono e pertencia ao povo. Eu nunca consegui comer aquilo.

Mas a festa de Santa Cruz me deu consciência de que eu passava fome. Em parte o problema era atenuado porque no caminho da escola uma velha, caseira de uma chácara, me esperava na porteira, me dava um tostão, me contava um sonho e me pedia para ir ao chalé do jogo do bicho, contar o sonho para o apontador e apostar o tostão no bicho que ele identificava no sonho dela. Ela nunca ganhou um centavo. Mas de vez em quando me dava um lanche de pão velho e salame rançoso. Depois descobri, por amigos da escola, que uma vez por semana ela ia a São Paulo e catava comida no lixo do mercadão da Cantareira. Era dali que vinha o lanche que me dava e era também o que sua família comia.

Sempre estranhei que, de volta à cidade, quando já trabalhava, de vez em quando eu sentia uma estranha fome de carne. Comentei isso com uma prima que já era adulta quando nasci e ela me disse que todos na família sentiam essa fome. Meus avós e seus filhos vieram da Espanha como imigrantes, em 1913, para trabalhar nos cafezais de São Paulo como colonos e imigrantes com a passagem paga pelo governo. Depois de muito tempo, meus avós, já na crise do café, conseguiram comprar um sítio e passaram a ter sua própria lavoura. A casa era de pau a pique, chão de terra batida. A comida, invariavelmente, era feijão com farinha de milho. Até o fim da vida de meus avós, essa foi dieta da casa.

De vez em quando, eu ainda hoje sinto fome de carne, mesmo tendo a carência alimentar desaparecido da vida da família há 80 anos. Fome não é saciada com esmola. Em crianças, ela gruda na alma para sempre. E dói. Ser pobre é muito mais complicado do que conversa mole de classe média e do que interpretações pedantes, mesmo que pias, destituídas das invisibilidades do vivencial. Da falta de comida como falta de destino e de esperança.

Pobreza

Não só a fome. Notei um dia, quando ia buscar minha filha mais nova, que retornava da escola, no ponto de ônibus, observei que na calçada do outro lado da rua, em frente às duas portas de aço de um estabelecimento comercial que fechara, uma senhora amontoava objetos achados no lixo. Ela morava na rua. Sempre havia o resto de uma cadeira, de um colchão, um caixote, a que ela dava funções. Notei que ela ordenava os objetos em dois quadrados, como se fossem dois cômodos. Em cada um deles havia uma abertura para o meio-fio da rua. Eram as portas. Ela impedia que os transeuntes passassem por dentro dos quadrados. Ela se movimentava entre um cômodo e outro e pelos gestos que fazia era possível perceber que eram gestos ou de uma cozinha ou de um quarto. Ela morava numa casa imaginária. Publiquei um artigo sobre ela no jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo: “A casa imaginária de Dona Fulana”. Para ela, o desamparo a fizera pobre, mas não a privara de imaginação. Não existe pobreza absoluta.

O mundo mudou na relativização das classes sociais e portanto numa certa obsolescência da força explicativa da teoria das classes sociais. O mundo se diversificou, ficou mais complicado e mais difícil de compreender. As classes sociais continuam sendo a referência explicativa da realidade uma sociedade que é capitalista. Mas não são mais a referência exclusiva da práxis. A práxis não é práxis revolucionária apenas. A sociedade capitalista, historicamente, produz o novo que expressa as necessidades radicais, mas reproduz o que ela própria carece como repetição, reiteração, reprodução. O movimento é contraditório, o que torna difícil sua compreensão. O mundo de hoje é mais o da falsa consciência do que o da verdadeira consciência. Publiquei há pouco um livro sobre isso: “Sociologia do Desconhecimento – Ensaios sobre a incerteza do instante”. É que o próprio tempo se fragmentou, pois já não é apenas o tempo de trabalho.

A sociedade de hoje ganhou considerável poder sobre os efeitos perversos de suas contradições. As elites têm considerável margem de ação para fazer de conta que são amigas de suas vítimas e que estão do lado delas. O que faz os pobres mais pobres ainda.

IHU – Que hermenêutica precisamos para compreender o mundo contemporâneo e seus diversos acontecimentos, como, por exemplo, a guerra entre Rússia e Ucrânia e o conflito Israel-Palestina, que está no centro das análises hoje, mas também a "terceira guerra mundial aos pedaços", como tem denominado o Papa Francisco, e suas consequências, como a situação dos refugiados, dos migrantes, sem falar em todas as mudanças socioambientais em curso?

José de Souza Martins – As transformações sociais e políticas a partir da Segunda Guerra Mundial atenuaram a historicidade da sociedade, o fazer história. A sociedade pode continuar a ser a mesma e pode mudar sem assumir a realidade da mudança, apenas fingindo que mudou. É o que Henri Lefebvre definiu como práxis mimética. O mundo se transformou num mundo de faz de conta. Os que querem mudar fazem de conta que o querem. A sociedade é hoje a sociedade do espetáculo. Já vi, em atividades de igrejas, ações de denúncia de situações de adversidade social que são mera aparência de compromisso com os pobres, mero espetáculo para a classe média. No fundo, mera cumplicidade.

O desafio de interpretação para compreensão do que o mundo se tornou, não é questão de hermenêutica, de escolha de um modelo filosófico e interpretativo. É uma questão de sociologia do conhecimento em diálogo com a antropologia, para permitir o reencontro dos resíduos sociais e culturais incapturados pelos poderios disseminados na sociedade contemporânea, do pasto à fábrica, do botequim ao púlpito. Henri Lefebvre, o melhor conhecedor do pensamento marxiano e o mais competente definidor do método dialético, como reconheceu Sartre, refere-se à coalizão dos resíduos e à sua insurreição. Aquilo que é incapturável tanto pelo poder da reprodução ampliada do capital quanto pela reprodução do poder. O ponto de ruptura das iniquidades do que se tornou um sistema.

Embora em outra linha de interpretação, o excelente artigo do Padre Flávio Lazzarin sobre o que restou das CEBs toca justamente nesse assunto como outra referência para o trabalho pastoral, no fundo o caráter comunitário dos resíduos de tantos equívocos de militância e de tantos fracassos.

Também trato disso em meu livro sobre “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista”, que sai ainda agora em novembro pela Editora Unesp. O atraso é residual e esconde o insurrecional. Encerro nele meu ciclo de estudos sobre o que é o capitalismo no Brasil, iniciado com dois artigos científicos, com os primeiros resultados de minhas primeiras pesquisas sociológicas, que Florestan Fernandes mandou publicar, em 1969, em duas revistas de circulação internacional, reeditados em meu livro “Capitalismo e Tradicionalismo”, de 1975.

IHU – Neste mês será publicado seu livro "Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista". Como aborda a escravidão no Brasil atual à luz das pesquisas que realiza há 60 anos?

José de Souza Martins – A equivocadamente chamada “escravidão contemporânea” não tem sido explicada nem sociológica nem antropologicamente. Tem sido apenas descrita, no geral de maneira superficial. Para ser explicada é preciso recorrer ao método que permita decifrar a função que essa escravidão ainda desempenha na acumulação e reprodução do capital e do capitalismo como modo de vida. Isso depende de saber fazer a distinção científica entre método de explicação e método de investigação. E é preciso dominar a teoria do capitalismo na perspectiva dialética, a teoria de suas contradições antagonicamente reprodutivas e inovadoras, ao mesmo tempo.

A escravidão contemporânea não tem apenas a função de assegurar uma forma de reprodução ampliada do capital. Os autores de narrativas sobre o tema equivocam-se ao tratar o escravo atual como coisa, mera vítima, destituído de um imaginário insurgente. Meu livro é um estudo crítico sobre concepções pobres sobre a pobreza e o capitalismo e equivocadas sobre a escravidão atual. A escravidão atual não é simplesmente um modo de instituir a delinquência e o mau caráter de empregadores no abuso de relações laborais violentas e injustas. É uma forma cruel de disfarçar a função do capital variável na composição orgânica do capital. Um modo de disfarçar em capital moderno o capital atrasado.

Ela é parte do sistema econômico. É um ramo da produção de lucro. Algumas dezenas de milhões de dólares no mundo inteiro transformam a escravidão num ramo de negócio e lucro como outro qualquer. Casos, como aqui, em que a fazenda não vende vaca. Vende e consome gente, sua matéria prima.

IHU – Na Mensagem para o 7º Dia Mundial dos Pobres que será celebrado em 19 de novembro deste ano, com o tema "Não se afaste dos pobres" (Tb 4,7), o Papa Francisco disse: "É fácil cair na retórica quando se fala dos pobres. Tentação insidiosa é também parar nas estatísticas e nos números. Os pobres são pessoas, têm rosto, uma história, coração e alma. São irmãos e irmãs com os seus valores e defeitos, como todos, e é importante estabelecer uma relação pessoal com cada um deles". Como o senhor interpreta essa declaração à luz das Ciências Sociais?

José de Souza Martins – Desde João XXIII, a Igreja tem produzido um elenco atualizador e renovador de referência de suas orientações na pastoral social. Nesse sentido, a manifestação de agora poderia ser mais abrangente e mais incisiva. O pobre não é apenas vítima da pobreza. O alerta de que os pobres são pessoas precisa ser situado na desumanização que decorre da pobreza. É difícil reconhecer a pessoa nos seres que dormem ao relento nas ruas das grandes cidades, mesmo em Roma.

Presenciei uma cena dolorosa, não faz muito, nas escadarias da catedral de São Paulo, numa noite em que fui ao velório de um amigo na cripta. Caía uma chuva leve. Uma mulher, acompanhada de duas meninas de uns 7-8 anos de idade, forrou um dos degraus com jornais e cobriu as crianças com um pano velho. Vi os olhos das crianças e seu olhar de desamparo e de medo, que interrogavam a cidade mais rica do Brasil: por quê?

IHU – Na ocasião, o Papa Francisco também disse que "vivemos um momento histórico que não favorece a atenção aos mais pobres. O volume sonoro do apelo ao bem-estar é cada vez mais alto, enquanto se põe o silenciador relativamente às vozes de quem vive na pobreza". Como o senhor atualiza e reflete sobre essa declaração à luz da realidade brasileira?

José de Souza Martins – A pós-modernidade da sociedade de hoje criou uma realidade em que mesmo juntas as pessoas estão sozinhas. Há nela um horror ao outro, mesmo entre pais e filhos. Tive um tio, presumivelmente rico, precocemente pós-moderno, que se esquivava dos parentes pobres como minha família, embora meu pai fosse seu primo-irmão e seu cunhado e minha tia fosse irmã de meu pai. Seu lema era: “Parentes, só os dentes.” Quando ele morreu comentei no enterro que deveriam escrever isso no túmulo dele. Seu legado.

Não obstante, ainda há um resquício de cristianismo mal disfarçado entre os pobres de rua como em São Paulo. Há alguns anos, parei um dia numa das calçadas da rua Líbero Badaró, no centro da cidade. Na outra calçada, fica o Edifício Sampaio Moreira, o primeiro arranha-céu da cidade. É um edifício ainda hoje bonito.

Um senhor se aproximou de mim e comentou: vejo que o senhor gosta de prédios antigos. Eu também. E entabolamos conversa. Ele me deu uma aula sobre aquele prédio e outros da área. Conversa vai-conversa vem, fiquei sabendo que ele era morador de rua. Era da rica região do Triângulo Mineiro. Quando completou 40 anos de idade, foi demitido da empresa em que trabalhava. Um costume que se difundiu pelas relações de trabalho do Brasil inteiro. Os demitidos com essa idade substituídos por gente mais jovem, disposta a ganhar menos para fazer o mesmo trabalho. Sua família passou a lidar mal com seu desemprego, que se prolongava. Ele começou a beber e acabou expulso de casa. Envergonhado e humilhado, veio para São Paulo, morar na rua, onde ninguém o conhecia.

Eu estava indo almoçar. Perguntei-lhe se não queria almoçar comigo, assim poderíamos esticar a conversa. “Seu” Carlos se desculpou e me disse eu não poderia. Estava esperando abrir para os moradores de rua o restaurante do outro lado da calçada. Mostrou que em nossa calçada havia um grande número de pessoas na mesma situação que ele. O dono do restaurante encerrava as atividades da casa às 13h30, fechava as portas e abria uma porta lateral para os moradores de rua, seus convidados para o almoço. Diariamente, já preparava comida para esse número adicional de pessoas, que podiam não só almoçar mas usar os sanitários, lavarem-se, arrumarem-se. Por respeito a ele, “seu” Carlos não podia ausentar-se. Perdera tudo, mas não perdera o senso de decoro e de civilidade.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/634236-o-mundo-se-transformou-num-mundo-de-faz-de-conta-os-que-querem-mudar-fazem-de-conta-que-o-querem-a-sociedade-e-hoje-a-sociedade-do-espetaculo-entrevista-especial-com-jose-de-souza-martins

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