por Ladislau Dowbor
Em novo livro, o economista que lançou a ideia do microcrédito, sustenta: capitalismo é máquina de multiplicar desigualdades. Mas é preciso criar, desde já, relações em que a lógica dos mercados seja trocada pelo prazer de colaborar e repartir riquezas
“A necessidade de revisar e reavaliar a estrutura
básica do capitalismo foi sentida em muitas ocasiões. Mas nunca com
tanta intensidade como hoje.”
Muhammad Yunus – 2023, p. 251
O economista Yunus começou a sua caminhada inovadora há 40 anos, no Bangladesh, ao inaugurar o Grameen Bank, um banco que fornecia às mulheres pobres do interior os poucos dólares necessários para que pudessem adquirir autonomia econômica, sair da miséria. Sem garantias, a juros baixos, mas sempre a um grupo de pelo menos 5 mulheres que se associassem a alguma atividade autônoma, que podia ser de produção de alimentos, cestos, roupas ou outra função útil em termos econômicos. O acesso ao crédito, que viria a se chamar microcrédito, liberava-as dos intermediários, gerava autonomia.
Hoje se trata de uma imensa rede, em dezenas de países, com formas muito variadas de atividade, mas baseadas numa filosofia econômica comum: o ser humano tem criatividade, e pode desempenhar inúmeras atividades produtivas sem apenas esperar que lhe deem um emprego. Precisa de apoio básico, de um ponto de partida, que pode ser o dinheiro inicial, mas também formação, acesso a equipamentos ou a locais de produção, contatos com uma organização que o ajude nos primeiros passos. E o objetivo não é apenas ganhar dinheiro, mas equilibrar os ganhos com a utilidade social. É o que Yunus, e as inúmeras organizações geradas no mundo, chamam de “negócios sociais”.
“Cada negócio social deve se sustentar e o dinheiro doado volta ao fundo para ser investido muitas outras vezes no futuro, em vez de desaparecer depois de uma única aplicação, como ocorre na caridade. Doadores podem convidar empresas locais e corporações internacionais – especialmente aquelas que têm origem nos próprios países – a criar joint ventures de negócios sociais com o fundo. As empresas também podem aprimorar as aptidões do fundo, com sua experiência, suas técnicas de gestão e sua tecnologia.” (247) Os negócios sociais podem representar um caminho importante para tantas empresas que proclamam os princípios dos ESG através dos seus departamentos de relações públicas, mas não os aplicam.
Lembro de ter encontrado Yunus há uma década atrás, no quadro das reuniões que fazíamos com o movimento Nossa São Paulo. Relatou o acordo feito com a Danone, gigante da área alimentar, para que produzisse em Bangladesh um iogurte simples com adicionamento de micronutrientes essenciais para crianças. A Danone se deu conta que não precisava apenas vender o que maximiza os lucros, podia também ser socialmente útil. Hoje esse tipo de associação se ampliou em outros setores empresariais, atividades paralelas, sem dúvida, e insuficientes, mas que trazem para os setores produtivos tradicionais argumentos para sair das simplificações neoliberais de organizar o conjunto das atividades em função da maximização de dividendos para acionistas, e para os gigantes financeiros que administram os recursos: asset managers, fundos financeiros de diversos tipos, o universo do que hoje chamamos de financeirização.
Yunus, e hoje inúmeras iniciativas associadas, não ficam esperando que o capitalismo mude, que “os mercados” se civilizem. Estrutura de maneira organizada formas mais equilibradas, e socialmente úteis, de organização econômica e social. Mas o desafio global é claro: “A necessidade de revisar e reavaliar a estrutura básica do capitalismo foi sentida em muitas ocasiões. Mas nunca com tanta intensidade como hoje.”(251) Yunus não tem nenhuma ilusão quanto à “mão invisível” que naturalmente geraria equilíbrios: “Pode-se suspeitar que a “mão invisível” de fato pertença aos mais ricos!”(252)
E tem perfeitamente claro o papel chave do Estado: “A verdadeira solução não ignora a iniciativa e a dignidade das pessoas que precisam de auxílio. Como a pobreza não é causada pelos pobres, mas pelo sistema que criamos em torno deles, a principal tarefa do governo é consertar o sistema e colocar em prática um processo que reverta gradativamente a concentração de riqueza, criando uma sociedade cujos bens são compartilhados por todos. Como argumentei ao longo deste livro, os negócios sociais contribuem nesse processo.”(209) Enquanto não chegam as iniciativas suficientes, há amplo espaço na organização pela base. Em última instância, trata-se não de um milagre apenas com microiniciativas, e sim de um processo que envolva crescentemente as empresas, os governos, as organizações da sociedade civil.
O papel das microfinanças é particularmente bem detalhado nos inúmeros exemplos. “Há anos eu defendo a adoção de novas leis que permitam a abertura de bancos para os pobres, no lugar das regras atuais, que se concentram nos bancos para os ricos…Ao defender a proposta, digo que os serviços financeiros são o oxigênio da vida econômica dos indivíduos. Esse oxigênio é abundante para as pessoas da elite social; na verdade, elas contam com uma espécie de fogo econômico, que suga quase todo o oxigênio disponível. Dessa maneira, o sistema financeiro contribui para a extrema concentração de riqueza.”(230)
Na palestra que deu no colégio Vera Cruz, o enfrentamento do sistema bancário disfuncional é claramente explicitado: “Isso envolve bilhões de pessoas. Como é terrível esse mecanismo. A pobreza é a culpa das instituições financeiras. Os bancos foram criados para repassar dinheiro para as mãos das pessoas. Mas os bancos o fazem de maneira tão estranha. Eles dão dinheiro para pessoas que têm tanto dinheiro. E não dão dinheiro para as pessoas que não têm dinheiro. Isso é muito estranho. Deveria ser no sentido inverso. Os bancos deveriam dar dinheiro às pessoas que não têm dinheiro. E depois de fazê-lo, gradualmente ir dando dinheiro para pessoas que têm mais dinheiro, e finalmente para os que têm o grande dinheiro.”(min.9’)*
No caso brasileiro, o sistema é ainda mais perverso: porque abriram sim a bancarização dos pobres, mas com agiotagem, o que levou à presente situação em que 79% das famílias estão atoladas em dívidas, e a inadimplência atinge 72 milhões de adultos. A usura (agiotagem), que era definida como crime no artigo 192 da Constituição, deixou simplesmente de ser crime ao tirarem artigo, em 2003, uma proteção contra o governo Lula. Os parlamentares são em grande maioria aplicadores financeiros. “Investidores”, como os chamamos hoje.**
E o movimento tão importante de criação de bancos comunitários de desenvolvimento no Brasil continua frágil, legalmente sem poder receber depósitos, situação denunciada por Yunus: “Em todo o mundo, são necessárias leis mais simples, que permitam aos programas de microfinanças receber depósitos de poupança e emprestar este dinheiro aos mais pobres. Isso poderia ser feito por meio da emissão de licenças bancárias especiais para as ONGs que operem organizações de microcrédito.”(231) Isso já é realidade na Índia, através de autorização do Reserve Bank of India. Um bom conselho: “A melhor opção seria uma legislação nova, voltada exclusivamente para a criação de bancos de microfinanças que atendam pessoas de baixa renda.”(231)
“O Grameen Bank, escreve Yunus, nunca precisou de advogados nem de tribunais para cobrar os empréstimos.”(227) A adimplência dos empréstimos é de 98%. Não trabalha com garantias materiais, e sim com confiança. Yunus é perfeitamente consciente de que “da introdução dos negócios sociais e do empreendedorismo universal no quadro teórico da economia, surge imediatamente a necessidade de mudanças em todos os aspectos do nosso sistema econômico.”(225) Ou seja, a premissa básica sobre a qual o capitalismo se apoia, de que temos de maximizar os interesses individuais, porque assim é o homo economicus, é posta de lado, em proveito dos valores da colaboração, do prazer de construir juntos sistemas que funcionem. “A atual estrutura da teoria econômica não permite que o lado generoso das pessoas se manifeste, uma vez que o mercado é dedicado exclusivamente a negócios movidos pelo interesse próprio.”(254)
Idealismo? Antes de tudo temos a evidência do desastre que está sendo gerado pela guerra de todos contra todos, em nome da maximização de valor, legitimação da ganância, e narrativa de que servindo “os mercados” resultará o bem comum. “Embora as tendências de curto prazo possam beneficiar alguns de nós às custas de muitos outros, no longo prazo, somente medidas em prol do progresso compartilhado por todos serão verdadeiramente sustentáveis…Este é o momento de unir o mundo para enfrentar as diversas crises de forma bem planejada e bem administrada – temos de aproveitá-lo como nossa melhor oportunidade de projetar e implementar uma nova arquitetura econômica e financeira, de modo que as crises não se repitam, os problemas globais de longa data sejam enfrentados decisivamente e as incoerências e deficiências da atual ordem econômica e social sejam finalmente reparadas.”(255)
Yunus é economista. Mas ganhou o prêmio Nobel da Paz, não o prêmio Nobel de economia, que aliás é um prêmio do Banco da Suécia, não do fundo Nobel. É compreensível, já que o essencial do seu aporte é mostrar que o dinheiro que vai para a base da sociedade se torna muito mais produtivo do que o dinheiro que vai para os bancos e aumenta fortunas financeiras. “Dinheiro não falta. As pessoas vivem num oceano de dinheiro. Só os pobres não usufruem dele. O mundo criou bolhas repletas de pessoas que ignoram o que ocorre nas bolhas abaixo delas. A bolha mais alta é aquela em que toda a riqueza está concentrada, ao passo que a bolha mais baixa tem mais gente e menos riqueza. Com o tempo, a bolha do topo passa a ter menos indivíduos e mais dinheiro, tornando o monopólio de riqueza cada vez mais extremo.”(237)
Nosso problema não é de falta de recursos, e sim de organização política e social. Milton Friedman ganhou o Nobel de economia, pois com as suas simplificações de The Business of Business is Business, legitimando o enriquecimento a qualquer custo, e o Greed is Good entoado por Wall Street, duas fórmulas que deram lustro acadêmico ao vale tudo do neoliberalismo, ficou imensamente popular no mundo corporativo. Hoje chamamos essas teorias que justificam o que vivemos de “economia ortodoxa”. São justificações, narrativas simplificadas que deixam de lado o essencial: a economia deve servir ao bem-estar da sociedade, e de forma sustentável. Esse ponto é essencial se quisermos sair da barbárie. O livro de Muhammad Yunus é de imensa ajuda. Simples, direto, e com inúmeros exemplos de iniciativas que dão certo. Fazer coisa útil funciona.
Acrescento que a Yunus Negócios Sociais é muito ativa no Brasil, e vale a pena apoiar e se juntar às iniciativas: https://www.br.yunussb.com/
Veja aqui recente entrevista de Yunus na qual comenta sobre o seu último livro
Notas
*Palestra de Muhammad Yunus no Colégio Vera Cruz, 16 de outubro de 2023, https://youtu.be/BKvCvdZjsOo?si=CjSTIwh_1Q6KBlB3
** Passei para M. Yunus a versão em inglês da nota técnica sobre como o sistema se deformou no Brasil – L. Dowbor – O Dreno Financeiro – https://dowbor.org/2023/02/o-dreno-financeiro-que-paralisa-o-pais-a-farsa-do-deficit.html
Fonte: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/para-entender-o-pensamento-e-obra-de-yunus/
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