O 'Novo Ateísmo' virou peça de museu e havia, de fato, uma certa ingenuidade nele
A conversão de Ayaan Hirsi Ali ao cristianismo —descrita em seu artigo "Why I am now a Christian", na revista UnHerd— é um sinal dos tempos. Para quem não a conhece, Ali é uma intelectual de origem somali (já foi cidadã holandesa, hoje é americana) que se notabilizou pela crítica ferrenha ao islã, num momento em que todos ficavam (como ainda ficam) cheios de dedos para apontar problemas na religião. Quando publicou seus primeiros livros, Ali era uma ateia convicta. Fazia parte do chamado "Novo Ateísmo", junto com Richard Dawkins, Daniel Dennett, Christopher Hitchens e outros, lá por 2010.
Hoje, o "Novo Ateísmo" virou peça de museu. Havia, de fato, uma certa ingenuidade nele. Primeiro a crença no poder da argumentação para vencer a fé no sobrenatural. E, em segundo, a certeza de que a história chegava ao fim: a democracia liberal e laica era a campeã inconteste no mundo; restava apenas varrer os atavismos da religião, fosse ela qual fosse.
Mas a história não acabou. Nem a fé. Na guerra de civilizações, Ali vê no cristianismo uma arma mais eficaz do que o racionalismo filosófico. Seu testemunho de conversão é acima de tudo um documento político. Transparece a vontade de defender o mundo democrático e liberal contra o obscurantismo. A palavra "civilização" e seus derivados aparecem sete vezes; o nome "Jesus", zero.
Mais do que pessoalmente convencida de que Jesus de Nazaré foi crucificado e ressuscitou para perdoar os pecados do mundo, Ali vê no cristianismo a fonte de um legado: "Esse legado consiste num elaborado conjunto de ideias e instituições pensados para proteger a vida, liberdade e dignidade humanas —do Estado-nação e império da lei às instituições da ciência, saúde e aprendizado".
Pressuposto aí está a ideia de que esses valores são consequência direta do cristianismo, ideia que aliás foi recentemente defendida pelo historiador Tom Holland no livro "Império".
Não há dúvida de que o cristianismo foi e é um dos elementos que constituiu o mundo democrático liberal que, com razão, precisa ser defendido de forças que buscam destruí-lo. Mas o processo foi longo e complexo. Uma etapa importante dele foi a redescoberta da filosofia grega antiga —em particular, Aristóteles— pelas universidades europeias a partir do século 12. E quem forneceu essa redescoberta ao mundo cristão ocidental foi justamente o trabalho intelectual do mundo islâmico.
As instituições e direitos tão importantes para nós —como a liberdade de consciência e expressão—, diga-se de passagem, só foram conquistados à revelia dos esforços das igrejas. Pena de morte para apóstatas e homossexuais, que hoje nos horrorizam no mundo muçulmano, já foram parte da cristandade. A julgar por alguns pastores brasileiros, voltariam atrás com a maior facilidade. A Igreja Católica até hoje combate a legalização do divórcio.
Jovens nutrem fantasias de Cruzadas e repetem o slogan "Deus Vult". Esse culto ao passado cristão europeu e branco, além de uma visão incompleta do próprio cristianismo, já gerou horrores como o atentado terrorista de Christchurch, em que um neozelandês assassinou 51 muçulmanos.
"Não podemos resistir a China, Rússia e Irã se não conseguimos explicar para nossas populações por que essa resistência importa." Concordo. Fica, contudo, a questão: o que realmente importa? Defender a democracia, as liberdades individuais e o primado da razão neste mundo ou a ortodoxia e o perdão dos pecados para a felicidade no além? Um pode perfeitamente existir sem o outro.
* Economista, mestre em filosofia pela USP.
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