Lizete Dias de Oliveira*
A noite está escura nas ruas de Coyoacán. Na praça, as bandeirinhas coloridas contrastam com o amarelo da igreja Santa Catarina. Sentada em um banco, eu pensava que dali a sete dias, em 8 de novembro, fariam 500 anos da chegada de Hernán Cortéz ao México. A poucas quadras da praça fica a casa onde ele viveu, teve filhos e de onde partia para massacrar os povos do Novo Mundo.
O som do realejo foi cortado por um lamento alto, doído, profundo. Não era como o grito dos coiotes ancestrais que povoavam esse lugar. Era uma voz feminina que ecoava, forte e clara, nas paredes das casas centenárias, cheias de histórias e barulhos:
— Quiero mi hijo!
Uma senhora, sentada ao meu lado, disse que é Malinche quem grita. Ela, a tradutora e mulher de Cortéz, por ciúmes e desespero, teria matado seus filhos quando ele trouxe a esposa legítima para viver no México. Arrependida e culpada, até hoje Malinche passa a noite do dia primeiro de novembro chamando seus filhos pelas ruas de Coyoacán. Pobre Malinche, pensei, a culpada de todas as culpas no México. O que se sabe é que ela não matou seus filhos, mas que foi separada muito cedo de seu primogênito, Martín Cortez, o Mestiço, que foi reconhecido como filho legítimo e que viveu algum tempo com o pai, na Espanha.
O sino da igreja Santa Catarina soou. Os poucos fiéis começaram a sair, vagarosos, pisando com cuidado as pedras redondas do calçamento da praça que mostram ter vindo de muito longe, rolando montanha abaixo e arredondando-se no caminho. Da mesma forma, se vão moldando as culturas, quando se chocam diferentes formas de viver. Imagino o estranhamento mútuo no encontro desses dois mundos.
Contam os mexicanos que não entenderam quando aqueles homens chegaram carregando porta-estandartes com a imagem do seu Deus, que eles mesmos haviam matado. Imagine matar um Deus! Os espanhóis, ao alcançar a Cidade do México, também se espantaram com os muros feitos dos crânios dos inimigos. Com o tempo, o estranhamento se transformou em um sincretismo profundo. E é isso que se diz sobre a Festa dos Mortos pelas ruas da Cidade do México. Um grande sincretismo.
Esperei as pessoas saírem e entrei na igreja. Na frente do altar lateral, estava montado outro, dedicado aos mortos.
Desde o século XI, no dia primeiro de novembro, homenageavam-se os cristãos vitimados pela intolerância religiosa. Dois séculos depois, passaram a louvar também os caídos nas Cruzadas, e a data entrou oficialmente para o Calendário Litúrgico da Igreja Católica como o Dia de Todos os Santos.
Nesse dia, nos reinos de León, Aragão e Castela, preparava-se uma festa com comida farta. Os Cruzados que voltavam do Oriente traziam relíquias de santos e eram recebidos com pães decorados por adereços em forma de ossos, imitando desde crânios até esqueletos completos. A comida era benta nas igrejas e levada para as casas, onde era depositada na “Mesa do Santo”. Depois, com as epidemias do próximo século, o segundo dia de novembro passou a ser dedicado aos Mortos.
Olhei com atenção para a Mesa dos Mortos da igreja Santa Catarina. É costume mostrarem cenas cotidianas dos defuntos homenageados. A oferenda estaria representando a confissão de um coroinha? Com cuidado, procurei o que eu sabia que nunca pode faltar em um altar: as caveiras que representam os defuntos, os incensários com copal, flores e frutas, a água e sal e o pão.
Como na casa de Deus, também na maioria dos lares mexicanos um altar espera a visita dos mortos nos primeiros dias de novembro. As oferendas variam de acordo com as possibilidades econômicas e com a criatividade dos ofertantes. Representa-se no Altar dos Mortos os três níveis do mundo mesoamericano que foram sendo sincretizados com a religião católica. Na parte superior está o céu com as bandeiras coloridas. Abaixo, o lugar onde se passa a vida cotidiana e onde está assentada a cruz. No nível infraterrestre, identificado com o inferno, está posta a comida, porque é do inframundo que os deuses tiraram o milho para dar de comer aos homens e porque é da montanha sagrada que emerge a água.
Comentei com a senhora ao meu lado sobre a beleza do altar e ela disse:
— Minha mãe dizia que, mesmo quando não se tem nada para ofertar, não pode faltar a água, o sal e uma vela. É como uma mesa posta, que oferece aos mortos os prazeres que eles conheceram na vida terrena. Cigarro, livros, as comidas, as bebidas preferidas dos homenageados e o Pão dos Mortos, decorado com ossos.
As velas iluminam a alma do defunto no caminho da sepultura até a casa e desta até o túmulo, no final da noite, para que o morto não se perca no trajeto.
A flor amarela que decora os altares e túmulos se chama cempasúchil. Seu nome vem do nahuatl, cempal-xochitl, que significa “flor com muitas pétalas”. Enfeita-se o túmulo com elas, coloca-se uma cruz de flores na frente da porta da casa e um tapete de pétalas na frente do altar. Com seu cheiro e sua cor, ela também orienta os mortos a encontrar seus familiares.
Quando saí da igreja, vi que na praça circulavam centenas de Catrinas, com seus vestidos maravilhosos. Desde as primeiras horas da tarde, as ruas estavam sendo tomadas por elas.
Originalmente, La Calavera Garbancera foi uma criação do cartunista José Guadalupe Posada, em 1910, como crítica aos modos afrancesados das elites mexicanas. Garbancera é a pessoa que esqueceu suas raízes mexicanas para adotar costumes europeus. Posada queria mostrar que mesmo os ricos, os de bons modos, ou os que passam fome, todos têm semelhante final: ser uma caveira.
De crítica aos costumes, Diego Rivera deu novo significado à Garbancera. Ela foi rebatizada como Catrina e passou a ser o símbolo dos mortos mexicanos. Muito elegante, com modos de cortesã, ela aparece passeando entre os vivos, em Sueño de un domingo por la tarde en la alameda.
Lentamente, cruzei a praça pensando que no dia seguinte aconteceria o “tradicional” Desfile Internacional de Muertos, uma “tradição mexicana” criada no filme 007 Contra Spectre, quando o personagem ficcional James Bond invadiu um desfile do Dia dos Mortos, na Cidade do México. O detalhe é que tal desfile nunca existira antes do filme, é filho da película filmada em 2015. Assim são as tradições, pensei, todas foram inventadas em algum momento.
Atravessando a rua entrei no Merendera Las Lupitas para jantar com amigos. Depois da recepção carinhosa e gentil, tão tradicional dos mexicanos, a conversa logo derivou para o significado da morte.
Um deles lembrou que para os antigos a percepção da morte era completamente diferente da que nós temos hoje, vendo-a como um fim. Para eles, era um processo, como um pouso na linha da existência. Passava-se um tempo morto e logo chegava a hora de voltar. Uma parte de nós, o coração, cruzava o caminho do inframundo, e depois de um tempo retornava.
Uma amiga disse que as pessoas pensam que sabem muito pouco sobre as tradições mexicanas, mas que há séculos repetem os mesmos rituais, sem se darem conta. Explicou que os três níveis dos altares que eu havia visto na igreja, no museu, nos bares e nas casas do México são crenças mesoamericanas que podem ser vistas também nos Andes. As tradições da zona maia e da cultura mexica são as mais conhecidas porque há fontes históricas sobre elas.
Outro amigo explicou que, para os mexicanos, existem três mundos: a Terra, chamada de Tlatícpac; o céu, dividido em treze níveis; e o inframundo, que os cristãos chamam de inferno, mas que os mexicanos chamam de el cielo de abajo, que tem nove níveis, um mais perigoso que o outro.
O primeiro nível é o “Passo da Água”, onde se atravessa com um xolotlzcuintle, o cachorro mexicano. Depois vem o nível das montanhas que se chocam. O terceiro nível chama-se Iztepétl, as montanhas de navalha, feitas de obsidianas cortantes. Depois, o lugar onde as bandeiras fazem muito ruído, pelos fortes ventos. Logo, o lugar onde somos flechados. O penúltimo é o nível Teyollocualoyan, onde se come o coração da gente. E, finalmente, o lugar da morte de obsidiana.
Uma amiga, nascida Colima, disse que lá, quando alguém morria, ia para uma casinha abaixo da terra, que chamam de tumba de tiro, onde os familiares vivos podiam ter acesso aos seus ancestrais já falecidos. O processo da decomposição dos corpos era considerado parte da vida. Hoje se sabe tão pouco sobre ele, disse, porque enterramos os mortos e não os olhamos mais. Mas as pessoas de então sabiam o quanto tardavam a se desfazer os músculos, a pele, o cabelo, até só restarem os ossos.
Na região Maia, de onde vinha, há gente que retira os ossos dos seus mortos, os limpa, conversa e senta-se à mesa com eles para comer. E isso também estaria presente na cultura dos Andes, onde deixavam as huacas abertas para que os mortos não se assustassem e pudessem voltar. E também para que os vivos pudessem consultá-los e manter acessível todo o seu conhecimento.
Achei interessante que, para os mexicanos, o que define o lugar para onde se vai depois de morrer não é a vida que se leva. Não importa ser bom ou mau, como dizem os cristãos. O que define nosso destino é a forma como morremos. Seus ancestrais consideravam que as mulheres que morriam no primeiro parto eram guerreiras e depois de mortas acompanham o sol quando ele nasce. Morrer na guerra também levaria para perto do sol. As almas dos mortos em batalha se convertiam em mariposas ou em beija-flores.
Outro comentou que, quando alguém morre na terra de seu pai, não pode ser colocado imediatamente no altar dos mortos, só no ano seguinte, porque a alma ainda segue no nosso mundo por algum tempo. Chamada imediatamente para a oferenda, ela fica confusa pois ainda está se acostumando ao estado de morte.
“Há o ritual de Levantar a Sombra, que penso não ter origem católica” – disse uma amiga. “Eu presenciei quando menina, mas se chamava Levantar a Cruz, provavelmente o mesmo ritual. A cruz representa a sombra do morto, que se projetava enquanto estava vivo. Por ter algo diferente do corpo, demora um tempo distinto para deixar da Terra. Ainda que nossa sombra seja parte de nós, tem uma essência diferente e por isso requer um tratamento específico para que se vá.”
Mais um amigo contou sua experiência:
— Abaixo do caixão do morto, eu vi marcarem uma cruz de cal. Dizem que em alguns lugares coloca-se, dividido ao meio, um chilacayote, um fruto parecido com uma melancia. Durante o velório, rezamos e acompanhamos o corpo durante três dias antes do enterrá-lo. Depois do sepultamento, a cruz fica no mesmo lugar e começamos uma novena em honra ao morto. No nono dia, levamos as cinzas da cruz ao cemitério e a enterramos junto à sepultura.
Depois do jantar, me despedi dos meus amigos, porque no dia seguinte iria passar o Dia dos Mortos na cidade autônoma de Tepoztlán.
No cemitério, eu vi uma senhora sobre o túmulo, sahumando, queimando copal para limpar o lugar de más vibrações ou más energias. Essa resina aromática é usada desde a época Pré-hispânica, como aparece em alguns fragmentos de códices.
Em Tepoztlán, eu viveria uma noite de festa, com música e pessoas brindando com seus mortos, todos no mesmo mundo. Lá me disseram que para o mexicano o maior perigo é o de ser esquecido. Para eles, essa é a verdadeira morte. Por isso, eles não homenageiam a morte, mas a vida e os ancestrais que logo voltarão, não só por uma noite, mas para cumprir mais um ciclo vital em Tlatícpac.
*Lizete Dias de Oliveira é arqueóloga e historiadora. Tem doutorado em Arqueologia pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), pós-doutorado em Ciência da Informação pela Universidade do Porto e é especialista em Arqueologia Subaquática pela Escola Superior de Tecnologia/Instituto Tomar. Foi professora da UFRGS no Departamento de Ciências da Informação, onde participou da criação do Curso de Museologia. Pesquisa sobre Semiótica, Sistemas de Informação, Teoria da Arqueologia e Arte Rupestre. Defendeu sua tese de doutorado sobre as missões jesuíticas entre os Guarani. Atualmente estuda as culturas dos povos originários e suas relações com a paisagem, principalmente a partir de sítios arqueológicos em águas interiores.
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