Pintura de Andrew Wyeth, "Christinaís World" (1948) Foto: Rosa Laster/Smith / EFE
Somos bons em apontar valores morais ao longo dos 18 primeiros anos dos rebentos, mas nem sempre tão eficazes sobre educação financeira
Faço aqui uma fantasia limitada. Imagino um jovem de 18 anos, de classe média ou média-alta. Para este exercício, terei de ignorar a maioria para baixo e a minoria para cima. Um jovem de 18, pais com algumas reservas, sem aviões particulares, é minha personagem necessária para o texto.
O que seria melhor dar a essa pessoa que chega à maioridade? Parece que um carro não é mais o tema dos sonhos, como já foi num dia. A geração nascida neste século tem menos ênfase em dirigir. Renovar o celular? Um computador? Possível, porém comum. Uma viagem? Eu não recomendaria imediatamente. Vou ousar: havendo condições, sugiro oferecer um terreno. Já me explico.
Um terreno é um valor muito variável. Vai de alguns milhares a milhões de reais. Alguém da classe D não poderá oferecer. Alguém milionário nem pensará em algo tão classe média como um terreno trivial. Sempre falo que vinho é um bom presente para quem bebe, porque pode ser um gasto de cinquenta reais ou dezenas de milhares, adaptáveis ao bolso de quem oferta. Um terreno parte de um valor um pouco maior, entretanto se adapta a orçamentos do grupo-alvo da minha crônica.
Uma área, aos 18 anos, oferece um chão concreto. Sendo um espaço real de solo, vazio de construções, eleva a imaginação. O lote implica um estudo mínimo. Deve ser guardado para revender, comportaria uma edificação, seria possível alugar para um outro fim? Como equilibrar as despesas que o terreno desperta com a chance de ganhos? A posse será acompanhada de uma enorme educação financeira. O fato concreto material do solo traz uma orientação nova para o possuidor. Provavelmente, ser proprietário mudará um pouco a posição política do jovem. O cartório de imóveis sempre é um lugar de reorientação no espectro partidário.
Se o filho decidir vender imediatamente o presente, indica-se uma atitude que deve ser trabalhada. Somos bons em apontar valores morais ao longo dos 18 primeiros anos dos rebentos, mas nem sempre tão eficazes sobre educação financeira.
Quando simbolizamos a pobreza absoluta, falamos que sicrano não tem “onde cair morto”. Um terreno resolve o dilema. Mais do que representar um espaço de queda do corpo final, sinaliza uma vida ou uma perspectiva de futuro. Pode ser a ligação de que o rapaz ou a moça de 18 anos precisava para pensar em futuro. Como um gesto de maioridade, a dádiva indica negócio próprio ou até casamento. Sim, esperamos ainda que transcorram muitos anos antes da decisão de formar família, e o terreno traz o pensamento ao horizonte.
Em todo o vasto mundo do nosso planeta redondo, um pequeno pedaço de solo será dele ou dela. Isso pode ajudar até na consciência ecológica. “Tenho de cuidar da Terra, porque, neste instante, sou acionista minoritário do planeta” – ele pensaria. Seria como um pequeno cotista de uma imensa empresa. “Nosso mundo” deixaria seu caráter abstrato e tornar-se-ia “minha parte do globo”.
“Mas... Leandro! Esse seu texto está completamente capitalista.” Pois é, mesmo assim, acredite. Arrolam-me como radical de esquerda. Se seu espectro político for outro e quiser transmitir suas ideias a seus filhos, o presente ideal será o texto O Que É a Propriedade, de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Em 1840, o pensador francês fez essa pergunta e deu uma resposta coerente com seu ideário anarquista: “O que é a propriedade? É um roubo!”. Inimigo do capitalismo da sua época, tornou-se desafeto de outros setores da esquerda, como marxistas. Curioso que, um pouco antes de definir a propriedade como um roubo, ele havia identificado a escravidão como um assassinato. Conforme ele diz, a ideia contra a escravidão não precisava de muitas análises. E quanto à propriedade, a crítica do anarquista parece incidir sobre aquela que gera rendimentos, a chamada fundiária (propriété foncière ou landed property), mas não sobre toda e qualquer propriedade privada.
O anarquismo é muito sedutor na juventude, quando poderes e rendas parecem estar inacessíveis ainda. Apesar disso, se seu desejo é formar um filho nos ideais da esquerda, o pequeno texto de Proudhon parece ser um passo inicial. O debate sobre os tipos de propriedade estimula percepções muito densas sobre nossa sociedade. A única advertência é: um terreno é um convite a que ele saia de casa num dia e, como diria meu amigo Clóvis de Barros Filho, está na moda que as peras decidam apodrecer na pereira, sem cumprirem seu destino de rolar para longe ou produzirem sementes para novas árvores. Amadurecer ou até apodrecer na matriz arbórea é um desafio maior do que dar um terreno ou um livro anarquista. Até Proudhon saiu de Besançon, depois de ajudar na taberna dos pais e qualificar-se em uma oficina tipográfica. Lendo um autor anarquista ou administrando um terreno, meu desejo é que seu filho ou sua filha de 18 anos se afaste um pouco da internet. Essa é uma esperança cada vez mais heroica.
* É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/o-anarquismo-e-muito-sedutor-na-juventude-quando-poder-e-renda-parecem-inacessiveis/
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