terça-feira, 7 de novembro de 2023

‘As redes sociais alimentam o pior do ser humano por lucro’

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Sacos azuis imitando sacos de carregar corpos estão estendidos numa calçada, enquanto uma mulher segura um cartaz com o escrito "Disinformation kills" e o logo do Facebook

Foto: Gabrielle Crockett/Reuters - 28.07.2021
Protesto na sede do Facebook em Washington, nos EUA, contra a disseminação de desinformação na pandemia de covid-19


Autor do livro ‘A máquina do caos’, Max Fisher fala ao ‘Nexo’ sobre como as plataformas de tecnologia moldam as relações sociais

As redes sociais são o maior experimento coletivo da humanidade. Esse é o diagnóstico do jornalista americano Max Fisher, autor do livro “A máquina do caos” (ed. Todavia), que investiga os impactos positivos e negativos das plataformas.

Feito a partir de entrevistas com usuários, cientistas, políticos, pesquisadores e executivos, “A máquina do caos” mergulha numa discussão sobre as formas como essas tecnologias moldam o debate público e as percepções das pessoas.

Fisher participa em 11 de novembro do Festival Confluentes – Democracia e Equidade na Era Digital, que acontece em São Paulo e é organizado pela plataforma Confluentes. Em entrevista ao Nexo por telefone na segunda-feira (6), ele f'alou sobre liberdade de expressão, sobre como as redes sociais moldaram o cenário mundial atual e sobre o modelo de negócios dessas plataformas.

O título do seu livro, “A máquina do caos”, sugere que as redes sociais têm um papel significativo na disseminação de desordem e discórdia. Como você descreveria o “caos” que as redes sociais podem criar?

Max Fisher Há diversos estudos mundo afora sobre quais são os efeitos das redes sociais nos usuários.

Os resultados são consistentes em diferentes plataformas – como o X (antigo Twitter), YouTube, Facebook – e em diferentes países, como Estados Unidos, Brasil, Europa, Ásia, independentemente se são ricos ou pobres. Existe algo de inerente no design das plataformas que faz com que isso aconteça.

Os principais efeitos são aumentar um senso de desconfiança nos usuários, fazer com que eles sintam uma certa animosidade a grupos que são vistos como “diferentes” e ampliar a camaradagem entre aqueles que pensam de forma similar, unidos por coisas como nacionalidade, religião ou pensamento político.

A nível coletivo, pessoas acabam se unindo para combater a figura do outro, que é vista como monstruosa, menos confiável e mais perigosa. Aqui nos Estados Unidos temos o exemplo dos imigrantes ou dos muçulmanos, que são alvos rotineiros dessas pessoas. As redes sociais aumentam o senso de “nós versus eles”. Individualmente, as pessoas se tornam mais indignadas, mais reativas, mais moralistas e menos sensíveis.

No final dos anos 1990 e no início dos anos 2000, vivíamos um momento de ‘tecnoutopia’. Agora, estamos em um momento de ‘tecnoniilismo’. Qual foi o ponto de virada?

Max Fisher Depende do país. Nos Estados Unidos, isso vinha acontecendo desde 2014, com o aumento de grupos extremistas e o surgimento do movimento Gamergate, mas isso aumentou a partir de 2016, com a eleição de Donald Trump.

Havia antes um discurso de que as redes sociais eram uma coisa maravilhosa, uma força para o bem, que conectariam o mundo todo. Mas logo por volta desse período as pessoas começaram a perceber que não era bem assim e se tornaram mais céticas sobre esse tipo de fala.

Foto: Reprodução/YouTube
O jornalista Max Fisher em evento nos EUA
O jornalista Max Fisher em evento nos EUA

Mesmo que as pessoas não entendessem exatamente quais eram os impactos negativos das plataformas, a eleição de Trump e a discussão sobre o papel das redes sociais nela forçaram um início de conversa. Quando eu comecei a escrever sobre tecnologia no início da década de 2010, muita gente não acreditava que um site ou um aplicativo teria tanto poder. Hoje, as pessoas em geral conseguem compreender que isso acontece e que precisamos fazer alguma coisa sobre isso.

Facebook, YouTube e X têm testado um modelo de negócios no qual o usuário paga uma assinatura mensal e não vê anúncios nessas plataformas. Essa ideia pode ajudar a resolver alguns dos problemas causados pela publicidade direcionada nas redes ou é uma tentativa de tapar o sol com peneira?

Max Fisher É um pouco das duas coisas. Em teoria, um modelo de assinatura ajudaria a diminuir a ideia de que as pessoas precisam ficar cada vez mais tempo nas plataformas, para receberem mais e mais anúncios. Elas simplesmente pagariam a mensalidade e poderiam usar uma plataforma sem publicidade. Nesse modelo, os anúncios se tornam algo menos valioso, é algo como a Netflix fazia até ano passado: o que importava para eles era se a pessoa assinava, não necessariamente se passava horas e horas assistindo séries.

Por outro lado, não sou otimista, porque as empresas querem ter as duas coisas. Elas querem ter as assinaturas e a publicidade. Facebook, YouTube e as outras plataformas fazem muito dinheiro com publicidade, um montante que nenhum volume de assinaturas conseguiria cobrir.

Há usuários e executivos que argumentam que as redes sociais são simplesmente um reflexo das opiniões e comportamentos das pessoas. Qual é a sua perspectiva sobre até que ponto as redes sociais influenciam e amplificam essas tendências versus simplesmente refleti-las?

Max Fisher É um pouco das duas coisas. As empresas usam esse discurso como uma desculpa, falam que não é culpa delas, que as pessoas têm propensão a serem racistas e violentas por conta da natureza humana.

Nunca achei isso convincente. Embora o racismo, a violência e todas essas coisas sejam parte da natureza humana, há também coisas como o altruísmo e a empatia que também são. E as redes sociais não amplificam essas tendências positivas. Elas são deliberadamente desenhadas para gerar reações acaloradas.

Vejo as empresas por trás das redes sociais como traficantes de drogas. Os traficantes podem dizer que não são responsáveis por viciar as pessoas em heroína, que há algo no nosso corpo que permite o vício. Mas foram eles que apresentaram aquela droga e [são eles que] permitem que as pessoas continuem viciadas. Essas plataformas são isso. As redes sociais alimentam o pior do ser humano por lucro. Eles exploram nossos piores instintos.

Muitas vezes, a liberdade de expressão é mencionada como um argumento importante em plataformas de mídia social. Como o senhor avalia o desafio de definir o que significa essa liberdade de expressão no contexto online? Como criar critérios para evitar a disseminação de desinformação e discursos de ódio?

Max Fisher Precisamos ter consciência de que há duas coisas distintas. Há a liberdade de expressão e o tamanho do alcance. O que as pessoas falam nas redes sociais não é nada sem o alcance, sem aquela mensagem chegar até o público.

O que temos visto é que as redes sociais e seus algoritmos aumentam o alcance de determinados conteúdos, mostrando eles para mais e mais pessoas, que vão ter reações emocionais potentes e passarão cada vez mais tempo na plataforma, onde podem ser expostas a mais publicidade.

Essas empresas falam que qualquer tentativa de regulação é uma tentativa de suprimir a liberdade de expressão, mas não é isso. Os sistemas deles promovem artificialmente esses conteúdos e aumentam o alcance pela pura busca do lucro. O mal vem disso. Temos visto repetidas vezes, acho que todo mundo conhece alguém que passou a replicar desinformação ou teorias da conspiração depois de ser exposto a esse tipo de material na internet. Não acredito que a ideia de regulação seja uma diminuição da liberdade de expressão. A sociedade e os legisladores precisam ter essa conversa. Acho que isso inevitavelmente vai acontecer em breve.

Seu livro alerta para a necessidade de repensar nossa relação com as redes sociais com urgência. Quais são algumas medidas práticas que você acredita que indivíduos podem tomar para melhorar esse relacionamento?

Max Fisher Muitas das coisas da nossa vida acontecem por meio das redes sociais e da internet. Trabalho, socialização, nossos empreendimentos estão todos nesse ambiente, então não posso simplesmente falar para as pessoas deletarem seus perfis e nunca mais usarem.

O que é essencial é que os usuários entendam os efeitos das plataformas e como eles distorcem a visão de mundo deles, além de como eles se sentem e como participam da vida em comunidade.

Eu gosto de tomar café, mas já entendi que não posso tomar três garrafas inteiras de café, porque aí eu não dormiria, e o sono é importante. Eu também gosto de vinho, mas sei que não devo tomar mais de três taças e que não devo beber em horário de trabalho. A nível individual, esse é o caminho: entender quais são os efeitos das plataformas e a partir deles tomar decisões de como usar a internet de maneira responsável, tentando diminuir ao máximo o impacto deles.

 Fonte: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2023/11/07/%E2%80%98As-redes-sociais-alimentam-o-pior-do-ser-humano-por-lucro%E2%80%99

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