Por Leonardo Neiva 17 de Novembro de 2023
Da maternidade à masturbação feminina, coletânea de textos da poeta estadunidense Anne Sexton escancara coragem da autora que marcou uma geração
Três meses antes de cometer suicídio, a escritora estadunidense Anne Sexton (1828-1974) nomeou a filha, Linda Gray Sexton, sua executora literária — em outras palavras, aquela responsável pela organização e publicação póstuma dos escritos da autora. Vencedora do Prêmio Pulitzer e marcada por um transtorno psicológico que a acompanhou durante a maior parte da vida, a poeta morreu poucas semanas antes de completar 45 anos — mas já então era considerada uma das maiores vozes artísticas da sua geração. Em “Compaixão” (Relicário, 2023), obra que chega ao Brasil com escritos selecionados e organizados pela filha, um leitor pouco familiarizado com a poesia de Sexton conseguirá conhecer logo de cara muitas das faces da artista.
MAIS SOBRE O ASSUNTO
Minha pátria é minha língua
Formas Feitas no Escuro
Talvez Ela Não Precise de Mim
Com uma coragem impressionante, especialmente para o contexto da época em que foram escritos, a obra mergulha em questões e vivências profundamente pessoais. Traumas de infância, dependência de drogas, depressão, transtornos mentais, maternidade, adultério, pulsões de vida e morte. Esses são apenas alguns dos temas que surgem ao longo das páginas, em textos ao mesmo tempo espirituosos, imaginativos e ainda assim profundamente verdadeiros.
Lidando ainda com tabus como incesto, menstruação e masturbação feminina, Sexton libera aqui uma voz que por vezes parece crua, com uma vitalidade e franqueza que acabaram se tornando referência para artistas que vieram depois. Com tradução da poeta brasileira Bruna Beber, a edição chega com textos bilíngues — alguns dos quais só viram a luz do dia após a morte da escritora. Com o trabalho de seleção, outra camada da arte de Sexton se revela justamente a partir do ponto de vista da filha, como a mesma deixa claro em seu texto de apresentação: “Alguns a chamavam de gênio. Eu a chamei de mãe.”
Bebê Desconhecida na Maternidade
Filha, você deu o sopro da vida faz seis dias.
Deitada, um nozinho na brancura da minha cama;
enroscada feito caracol, sadia, um toco de gente
no meu peito. Lábios de feras; ao peito não é avessa
e sente o amor. No início, a fome não é desalinho.
As enfermeiras concordam; que você prevaleça
pelos corredores assépticos com o bando sem ninho
em alcofas volantes. Tilinta feito xícara; sua cabeça
busca minhas mãos. Você é minha e sente.
Mas estamos num hospital, sobre esta cama.
Logo serei a criadora desconhecida pela cria.
os fatos. Presumem o homem que me abandonou,
alma pendular, homens circundam sua própria esfera
e restamos grávidas. Mas nossa anamnese
segue em branco. Eu só queria ver você vingar.
E cá estamos nós e a maternidade que nos preze.
Eles me acharam esquisita, apesar
de que mal abri a boca. Breve exegese:
pari você para que conhecesse a atmosfera.
O corpo clínico anota as charadas que indagou
e eu desvio o olhar. Eu não sei responder.
Seu rosto é o único que reconheço.
Costela da minha costela, suga minhas respostas.
Seis vezes ao dia eu mitigo
suas necessidades, as feras dos seus lábios, carnuda
e quente você se estira. Vejo seu olhar fulgente,
armando suas tendas. É de pedra azul, e já pontuda
excede o musgo. Você pisca de repente
e me pergunto o que você vê, minha cópia miúda,
perturbando meu silêncio. Da mentira sou abrigo.
Devo reaprender a falar ou, já sem apostas
na sanidade, tatearei outro rosto que reconheço?
As alcofas apontam no corredor. Meus braços
recebem você feito as mangas da camisa, seguro
os amentos do salgueiral, a colmeia que barafusta
em seus nervos, seguro cada músculo e dobra
dos seus primeiros dias. A cara do seu pai desarma
as enfermeiras. Volta o corpo clínico e se desdobra
para me repreender. Falo. Meu silêncio te alarma.
Devia ser mais cautelosa; uma palavra de sobra
e eles já teriam anotado. Minha voz assusta
minha garganta. “Pai — desconhecido.” Seguro
você e te batizo filha da mãe nos meus braços.
Fica elas por elas. Nada mais
que eu possa dizer ou perder.
Muitas já negociaram com a vida
e nada puderam dizer. Em mim dou um nó,
recuso seu olhar de coruja, minha visita fatal.
Toco suas bochechas, são de flor. Você, sem dó,
me arranha. Nos estranhamos. Sou um litoral
embalando você. Você se desprende. Aponto só
o caminho, minha herança florida,
e solto você, ondulam os eus que acabamos de perder.
Vai, filha, meu pecado e nada mais.
Presumem o homem que me abandonou,/
alma pendular, homens circundam sua própria esfera/
e restamos grávidas
Velha
Tenho medo de agulha
estou farta de tubos e lençóis plásticos.
Estou farta de rostos desconhecidos
e acho que aqui começa a morte.
A morte começa feito sonho,
cheia de objetos e o sorriso da minha irmã.
Somos jovens e estamos caminhando
e colhendo frutos silvestres
até chegar em Damariscotta.
Oh, Susan, lamentou ela,
você manchou seu cinto.
Um gosto bom —
minha boca cheia
e aquele azul doce escorrendo
até chegar em Damariscotta.
Que que foi? Me deixa em paz!
Não vê que estou sonhando?
Em sonho ninguém tem oitenta anos.
Em sonho ninguém tem oitenta anos
Balada da Masturbadora Solitária
Fim de caso e a eterna desolação.
Ela é meu ateliê. Olho de granizo
extrapolado de mim, a respiração
concebe o fim. Aterrorizo
quem faz juízo. Eu, nutrida dama.
À noite, sozinha, caso com a cama.
Dedo por dedo, é minha camarada.
Sempre por perto. É meu compromisso.
Badalo feito sino. Dou uma encostada
na pérgola onde você fazia o serviço.
Virei empréstimo da colcha de rama.
À noite, sozinha, caso com a cama.
Esta noite, por exemplo, meu bem,
em que cada casal se unifica numa
dobra reversa, em cima, embaixo, além
na abundância da esponja e da pluma,
ajoelham, empurram, drama com drama.
Só à noite caso com a cama.
É assim que saio de mim,
milagre enervante. Será que tento
montar a feira do desejo enfim?
Estou esparramada. Eu atormento.
Minha ameixinha, você me chama.
À noite, sozinha, caso com a cama.
Surge então a rival de olhos de feijão.
Emerge das águas, rainha e argonauta,
piano na ponta dos dedos, humilhação
nos lábios e um fraseado de flauta.
Já eu, só uma cambeta de pijama.
À noite, sozinha, caso com a cama.
Você resistível – mas ela determinada –
arrancado feito vestido barato do guarda-roupa
e eu que me lasque feito pedra lascada.
Devolvo seus livros, a linha de pescar garoupa.
Você se casou, é o que o jornal diário clama.
À noite, sozinha, caso com a cama.
Garotos e garotas nesta noite se fazem jus.
Desabotoam a blusa. Abrem a braguilha.
Agora tiram o sapato. E apagam a luz.
Uma só criatura, farsante, que brilha.
Eles se comem. Ninguém reclama.
À noite, sozinha, caso com a cama.
Dedo por dedo, é minha camarada./
Sempre por perto. É meu compromisso./
Badalo feito sino. Dou uma encostada/
na pérgola onde você fazia o serviço
- Compaixão
- Anne Sexton (trad. Bruna Beber)
- Relicário
- 376 páginas
- Fonte: https://gamarevista.uol.com.br/cultura/trecho-de-livro/compaixao/?utm_medium=Email&utm_source=NLGama&utm_campaign=MelhorGama
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