Por Camila Cetrone, redação Marie Claire — São Paulo
Com apoio da Nobel de Literatura Annie Ernaux, a escritora e jornalista francesa descreveu sua experiência com o aborto na adolescência, nove anos depois da legalização na França. O resultado é o livro Dezessete anos, que chegou ao Brasil pela editora Relicário em junho. A Marie Claire, Colombe Schneck fala do ciclo de vergonha e culpa que sentiu por anos – até decidir quebrar o silêncio sobre o que viveu –, de como as leis antiaborto infantilizam e matam mulheres e do entusiasmo para falar do assunto no Brasil
"Nem minha família, nem meus amigos mais próximos sabem o que me aconteceu durante a primavera de 1984." É em tom confessional que a autora francesa Colombe Schneck decide interromper anos de silêncio para narrar o que ela chama de "a decisão mais acertada de sua vida": um aborto, feito quando ela tinha 17 anos. Foi assim, ela define, que "acidentalmente adentrou no mundo dos adultos".
Mesmo com o apoio do pai – que era médico –, com uma legalização que já existia há 10 anos por meio da sanção da Lei Veil – que descriminalizou o procedimento na França – e a possibilidade de fazê-lo com segurança, por anos, esse acontecimento foi carregado em silêncio, sob a sombra da culpa e da vergonha. Levou 30 anos até que aceitasse dizer, em voz alta, que, sim, interrompeu uma gravidez.
“Me lembro que, quatro anos depois de ter feito o aborto, olhava para minha calcinha todos os meses torcendo para que minha menstruação viesse. Passei a ter medo de engravidar”, lembra Schneck em entrevista por vídeo a Marie Claire, concedida de Nova York. “Fazer um aborto não é uma decisão fácil. Não é algo que você faz como qualquer outro procedimento médico, é algo no qual você deve pensar e, mesmo depois que acaba, você ainda pensa muito.”
O silêncio foi rompido em 2015 quando lançou o livro Dezessete anos (ed. Relicário, 80 págs., R$ 52,90), em que remonta os dias daquela primavera de 1984 e resgata sua versão de 17 anos para narrar o que vivenciou. O livro chegou ao Brasil em junho – e é o primeiro de Schneck a ser publicado no país. O que a fez mudar de ideia foi Annie Ernaux – mais precisamente, uma entrevista concedida pela Nobel de Literatura em que ela clama para que mulheres que já abortaram não tenham medo de falar sobre o assunto.
Ernaux é autoridade no tipo de escrita que relaciona o corpo da mulher com a sociedade, e é dona de um dos mais importantes livro sobre o aborto. Em O Acontecimento (Fósforo Editora, 80 págs., R$ 59,90), ela narra como teve de resolver sua angústia na ilegalidade, e de como quase perdeu a própria vida. Ernaux, aliás, não só encorajou Schneck a escrever como a conectou com a editora que realizou a publicação do livro na França.
Além de celebrar o lançamento de seu livro, Schneck vem ao Brasil neste mês para participar da Festa Literária Internacional de Paraty - Flip 2023. No dia 25, integra a mesa Os passarinhos se escondem dos homens, ao lado da escritora trinitária-britânica Monique Roffey e da jornalista portuguesa Anabela Mota Ribeiro. A francesa não esconde a felicidade: “Estou muito ansiosa para falar sobre aborto – especialmente no Brasil, onde a situação é tão dura. Você não consegue impedir uma mulher de abortar, se for isso o que ela quer.” A seguir, leia a entrevista com a autora.
MARIE CLAIRE O que te provocou essa urgência para escrever sobre o aborto que fez aos 17 anos?
COLOMBE SCHNECK
Sempre foi algo que carreguei comigo. Li uma entrevista de Annie Ernaux
em um jornal francês, em que ela afirma que as mulheres faziam abortos e
não diziam nada porque tinham vergonha, é um tabu. Mas Annie diz que
falar sobre isso faria essa vergonha desaparecer. Era como se ela
estivesse apontando o dedo para mim e dizendo: “Colombe, aos 17 anos
você fez um aborto e nunca contou a ninguém.” Foi quando percebi que eu
tinha que fazer alguma coisa, não poderia continuar em silêncio.
Precisava agir rápido. Era uma emergência. Foi um ato de ação, de
liberdade.
MC
Annie Ernaux, aliás, não só é uma das autoras que melhor documentou
como é viver o aborto em um cenário de clandestinidade como foi uma
incentivadora para você. Como ela te deu esse apoio?
CS Annie
é uma mulher generosa. Escrevi a ela por e-mail sobre minha experiência
e ela me disse: “Você deveria escrever sobre isso, e tenho uma publisher
que está interessada em publicar”. Escrevi a primeira versão em 4 dias,
muito rápido. Pensei que só precisava escrever, era a única coisa
importante. Não pensei nas consequências. Geralmente, quando escrevo um
projeto, fico muito ansiosa sobre quando ele será publicado. Não foi o
caso com este livro. Mas fiquei muito surpresa com o sucesso dele na
França.
MC Como foi essa recepção? O que te surpreendeu?
CS
Quando o escrevi, pensei que seria um texto pequeno sobre minha própria
história pessoal aos 17 anos. Mas é um tema importante e grande, o que é
algo que eu não sabia. Muitas mulheres me procuraram para dizer que
fizeram um aborto e nunca contaram a ninguém. Homens também me
escreveram dizendo que suas namoradas, ex-namoradas ou esposas abortaram
há 20, 30 anos, e eles ainda pensam nisso. Não é uma escolha fácil. É a
maior decisão que você vai tomar na sua vida. Você passa pelo dilema da
vida e da morte. Tenho certeza que fazer um aborto foi a melhor decisão
que tomei, mas tive momentos de dúvida. Eu teria sido uma mãe aos 18
anos, teria outra vida.
MC
O aborto é um tema cercado de muita desinformação ou mais disseminado
sob uma ótica moralista. Como acredita que livros como o seu e o de
Ernaux, que trazem uma perspectiva feminista de quem sentiu isso na
pele, pode dialogar com as pessoas?
CS Antes de ser
escritora, sou uma leitora. Penso que ler é a melhor forma de estar em
contato com outro ser humano. É como se o autor estivesse escrevendo
especialmente para você, sem interferências. A literatura é uma
ferramenta de mudança muito poderosa. Quando lancei Dezessete anos na França, fiz um book tour
em que me encontrei com muitas pessoas contrárias ao aborto. Fui a
muitas escolas católicas, e acho que foi importante ver pessoas jovens
ambíguas e divergentes sobre o que eu escrevi.
Fazer isso foi a melhor maneira de conversar sobre a forma como podem ser contra o aborto para eles próprios. Afinal, são seus corpos. Hoje é muito difícil conversar com pessoas que têm a mente fechada em uma ideia, e acho que os livros te dão mais incertezas, dúvidas. Nada é preto e branco, ninguém tem certeza, não há só uma saída. Temos que ter a liberdade de pensar por nós mesmos, e não que algo seja imposto como “certo” ou “errado”.
MC
No livro, você retrata a si mesma como uma jovem livre e “descuidada”.
Você atribui sua gravidez a muitas coisas, como esquecer de tomar a
pílula, por exemplo. Por que trazer esse ponto de vista?
CS
Por que era como eu vivia. Fui muito privilegiada, tinha 17 anos e tive a
possibilidade de ter uma vida sexual, de ir ao ginecologista e tomar pílulas anticoncepcionais.
Estava muito feliz de descobrir o sexo. Fui criada nos anos 1970 por
uma mãe feminista, na França. Com isso, achei que homens e mulheres eram
iguais, que teríamos as mesmas oportunidades. E, de repente, me senti
traída pelo meu corpo. Ninguém virou para mim e me disse “Você tem um
útero e pode engravidar. Você não pode ser descuidada como um homem
pode.” Fiquei furiosa com o meu corpo e com a sociedade que me disse que
éramos iguais e poderíamos fazer qualquer coisa. Era uma mentira. Acho
que eu queria provar que queria a igualdade de um garoto da minha idade.
No começo, quando comecei a notar essa diferença de tratamento por eu
ter um útero, entendia que meu corpo era diferente, que eu era destinada
a ser uma mãe e tomar consciência de que eu não tinha a liberdade que,
por anos, pensei que tivesse.
Mas, depois da menopausa, posso refletir melhor sobre isso. Usei meu corpo para fazer meus filhos. Sou muito feliz por ser uma mãe, mas a sociedade diz que é isso o que precisamos fazer. Você precisa “ser mais frágil” porque seu corpo “é mais fraco”. E eu percebi na menopausa, depois dos 50, que isso não era verdade. Eu tenho um corpo muito forte. Veja: eu sou uma nadadora e nado muito mais rápido que muitos dos outros homens. Tenho 58 anos, sou pequena, mas vou mais rápido que eles (risos).
MC
Mesmo que tenha tido acesso à lei de interrupção da gravidez e tenha
sido apoiada dentro de casa, você conta que esteve imersa por anos em um
ciclo de vergonha, culpa, dor e raiva. Por que você acha que isso
aconteceu, considerando que você tinha toda essa rede de apoio?
CS
Cada mulher sente de um jeito, é a história do nosso próprio corpo. Eu
me lembro que, quatro anos depois de ter feito o aborto, eu olhava para
minha calcinha todos os meses torcendo para que minha menstruação
viesse. Passei a ter medo de engravidar. Fiquei muito obcecada. O que eu
escrevi não é uma decisão fácil. Não é algo que você faz como qualquer
outro procedimento médico, é algo no qual você deve pensar e, mesmo
depois que acaba, você ainda pensa muito.
MC Você está nos Estados Unidos enquanto nos falamos, um país que, no ano passado, recuou no direito ao aborto com a revogação da decisão Roe v Wade. Como a sua presença neste momento tem sido recebida pelas norte-americanas? Encontrou um cenário esperançoso?
CS Sabe o que é interessante? Houve eleições em Ohio há alguns dias [em 5 de novembro],
e muitos eleitores votaram no partido democrata por causa do direito ao
aborto. O aborto é o direito primário para as mulheres. Uma vez que
você tem acesso a ele, pode-se conquistar qualquer coisa. Posso ver aqui
que muitos homens e mulheres estão protestando contra esse retrocesso.
Então, isso me deixa esperançosa.
MC No fim de outubro, o presidente
Emmanuel Macron afirmou que vai apresentar um projeto de lei para
incluir o direito ao aborto na Constituição da França – o que não é o caso hoje, mesmo com a sanção da Lei Veil. Como recebeu essa notícia?
CS Estou
muito feliz com isso, é uma proteção legal. Mesmo que haja uma
aceitação na França, sempre existirão ataques contra o aborto pelo
motivo de acharem que ele acabaria com a civilização ou culminaria no
fim do poder, da igreja, o que não é verdade. E protegê-lo é importante,
porque em tempos de crises as primeiras vítimas são sempre as mulheres.
Estou muito esperançosa que, no Brasil, vocês terão em breve uma lei
que proteja as mulheres para que possam acessar o aborto e tomar as
próprias decisões sobre seus corpos. Tenho muita gratidão pela Lei Veil
porque pude ser uma mãe boa o suficiente para meus filhos. Se hoje sou
uma mulher, uma mãe, uma escritora, foi porque eu pude tomar a decisão
de fazer um aborto aos 17 anos.
MC Aliás, você vem ao Brasil para participar da Flip 2023. É de seu interesse aprofundar a pauta do aborto por aqui?
CS
Estou muito ansiosa para falar disso. Especialmente no Brasil, onde a
situação é tão dura e tantas mulheres abortam ilegalmente. Você não
consegue impedir uma mulher de abortar, se for isso o que ela quer. No
Brasil é um crime [exceto em três casos: gestação decorrente de estupro e de feto anencéfalo ou em risco de vida à pessoa gestante] e
elas precisam fazê-lo nas piores condições, ficar alertas. Estou
animada em encontrar homens e mulheres que estão lutando por esse
direito, e sei que estou chegando em um momento muito importante sobre
isso no país. Talvez vocês ganhem.
MC Acredito que você se refere ao voto da ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF) favorável à legalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Correto?
CS
Exatamente. O acesso deveria ser politicamente legal, claro, tranquilo.
Não deveria existir obstáculos. Uma mulher adulta é inteligente e
madura o suficiente para falar por si própria. Ninguém mais deveria
dizer a ela o que precisa fazer. Com as leis antiaborto, é como se uma
mulher fosse como uma criança, e as pessoas ao redor – governo,
políticos – precisam dizer a ela o que ela precisa fazer. Antes da Lei
Veil, tivemos uma outra lei que determinava que uma mulher que queria
abortar deveria receber um prazo de 10 dias para pensar, antes de fazer.
É como quando você vira para uma criança e diz “Vá para o seu quarto e
pense.” E outra: ninguém te fala o quão difícil também é a decisão de
ter filhos, você precisa estar preparado para isso.
Fonte: https://revistamarieclaire.globo.com/cultura/noticia/2023/11/colombe-schneck-aborto-aos-17-anos-diz-autora-francesa-que-vem-a-flip-2023.ghtml
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