terça-feira, 7 de novembro de 2023

'Preconceito: uma História': Leia trecho de novo livro de Leandro Karnal,

 Por Leandro Karnal e Luiz Estevam

Manifestação do Black Lives Matter em Londres, em 2020 — Foto: DANIEL LEAL-OLIVAS / AFP 

 Manifestação do Black Lives Matter em Londres, em 2020 
— Foto: DANIEL LEAL-OLIVAS / AFP 
 

Está na Bíblia. No final do capítulo 1 do evangelho de João, há um diálogo entre o apóstolo Filipe e Natanael. O primeiro diz que encontrou o Messias anunciado pelos profetas: é Jesus, de Nazaré. Eis a reação de Natanael: “De Nazaré pode sair algo de bom?”. Pode não ter chegado até nós a referência aos nazarenos, mas esse tipo de julgamento antecipado a gente conhece bem: trata-se de preconceito.

Partindo deste didático exemplo direto das páginas do Novo Testamento, o best-seller Leandro Karnal e seu colega historiador Luiz Estevam constroem o livro “Preconceito: Uma história”. Segundo os autores, a obra é “um convite para a desconstrução de aprendizados culturais que perpetuam o sofrimento de toda pessoa entendida como diferente”.

Trata-se de uma viagem através dos séculos que demonstra a construção do fenômeno, com seus duradouros e perversos efeitos. Sabendo que não se trata de um pensamento sustentável do ponto de vista racional, Karnal e Estevam investigam os mecanismos que permitem a subsistência de misoginia, LGBTfobia, xenofobia, racismo e capacitismo. Ao final, uma nota positiva: se o preconceito é construído socialmente, ele também pode ser desconstruído, um movimento essencial para que conquistemos uma vida mais harmônica e justa.

O livro, com lançamento previsto para 20 de outubro, tem prefácio de Djamila Ribeiro e depoimentos de representantes de vários setores, como Amara Moira, Daniel Munduruku, Daniela Mercury e a colunista do GLOBO Vera Magalhães. A seguir, um trecho da obra.

Preconceitos são históricos. Isso tem dois sentidos. O primeiro é que a própria palavra tem sua história. Ela aparece nos vernáculos europeus associada a condições de direito e penalidades, justiça e reparação, em plena Idade Média. Naquele contexto, do século XIII em diante, nasce a noção de “prejuízo” (e suas variações em outros idiomas europeus, como prejudice, prejuicio etc.). A ideia era que “algo foi feito em meu prejuízo; contra mim”. Ainda usamos esse sentido da palavra — exemplo: perdi dinheiro, tive prejuízo. Literalmente, “prejuízo” quer dizer um “juízo prévio”, um julgamento antecipado. Por isso, exigia reparação da parte de quem lhe causara o prejuízo. De prejudicar alguém, o termo começou a ganhar novos significados por volta do século XVII. Do XIX em diante, ganhou a carga conotativa atual. Em português, surge a noção de “preconceito” para afastar do uso corrente de “prejuízo” a ideia de que alguém tem opinião preconcebida sobre algo ou outrem. Outras línguas europeias mantiveram o mesmo termo, “prejuízo”, para expressar essa nova lógica que chamamos de preconceito. A rigor, na etimologia, as duas são bem parecidas: uma forma um “pré-juízo” e outra elabora um “pré-conceito”; ou seja, ambas carregam a noção de um julgamento (de valor ou não) que foi feito aprioristicamente, sem o devido conhecimento, ou sem ser beneficiado pela experiência. Antes mesmo de conhecer, se forma uma opinião, um preconceito.

Se a palavra tem história, o que ela designa também tem. Mas dizer que há preconceitos antiquíssimos não significa que eles sempre foram expressos da mesma forma. Ainda que sejam muito antigos como o antissemitismo ou a misoginia, em cada época os discursos e as práticas preconceituosas foram distintos. A própria definição de preconceito varia ao longo do tempo, e podemos, claro, ver alguns processos similares, mas nunca um universal absoluto. O que é mais permanente no preconceito é a produção de vítimas, alvos de discursos de ódio, de limitações jurídicas e até de morte.

O que significa dizer que o preconceito é histórico? Em parte da Idade Média, o preconceito contra a mulher, a misoginia, tinha origem religiosa. Eva fora mais suscetível ao pecado. A mulher era mais submetida às tentações demoníacas. A mulher era, teologicamente, inferior. No século XIX, os motivos religiosos decaem e surgem explicações que se pretendiam científicas ou médicas. Emerge a “histeria feminina”, desponta a “inveja do pênis” e outras teorias elaboradas dominantemente por homens que, sem usar a Bíblia, acreditavam numa nova base científica para elucidar a pretendida inferioridade do chamado “sexo frágil”. O que une os dois momentos é a produção de discursos e de práticas que causaram danos enormes às mulheres.

O mesmo ocorre sobre o preconceito contra judeus. Na Idade Média, as acusações de deicídio eram as mais frequentes. “Os judeus mataram Jesus”, gritavam as turbas enfurecidas. No século XIX, com o despontar de um tipo de pretensa ciência, o antijudaísmo religioso vai se tornando um antissemitismo racial. O racismo é a tentativa de explicar com linguajar pseudocientífico (obviamente insustentável) o velho preconceito medieval. O “sangue judeu”, que contaminava espanhóis da Idade Média e os transformava em párias incapazes de assumir determinadas funções, agora é um dado biológico que embasou as leis racistas de Nuremberg, em 1935. Por terem ancestrais deicidas, os judeus medievais não podiam assumir cargos elevados na Igreja.

Em pleno século XX, o casamento de um judeu com uma “ariana” era considerado nulo.

Sendo próprios da história, os preconceitos são mutáveis. (…) Outros preconceitos, como a misoginia — possivelmente o mais amplo e generalizado preconceito das sociedades humanas —, mesmo buscando explicações diversas, são de uma notável perenidade. Aqui vai uma boa notícia: sendo histórico e produzido por pessoas e grupos, o preconceito pode ser superado por pessoas reais e concretas. Não sendo natural, é preciso que seja ensinado para existir. Logo, pode ser “desaprendido” ou deixar de ser reiterado. Preconceito tem biografia e, como tudo o que pode ser biografado, tem origem e, felizmente, pode ter um fim. Resta saber se é possível esperar pela morte natural de um preconceito ou se é necessário assassiná-lo de forma direta. Este livro não teria sentido se os autores não acreditassem ser possível identificar, analisar e superar o preconceito.

Fonte:  https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2023/10/03/preconceito-uma-historia-leia-trecho-de-novo-livro-de-leandro-karnal-exclusivo-para-o-globo.ghtml 

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