Feministas e evangélicas têm mais em comum do que admitem e precisam conversar
"Estou impactada," relata a médica Sumika Mori ao conhecer o caso da cantora gospel Sara Mariano, assassinada na semana passada, possivelmente pelo marido. "Minha vivência foi menos trágica, mas noto semelhanças."
Após contar ao pastor de sua igreja sobre os problemas em seu casamento,
Sumika esperou três anos até pedir a separação. Em seguida, esperou
mais dez meses até que o ex-marido saísse de casa. E somente um ano após
a separação, a mãe de Sumika, também evangélica, quis conversar com ela
sobre esse tema.
"No meu caso não houve violência física, mas meu casamento estava longe de ser feliz," relata Sumika.
"Minha família e o pastor sabiam do mal-humor do meu ex-marido, sabiam como ele não demonstrava afeto e, mesmo assim, insistiram para que eu voltasse a viver com ele. Isso é profundamente ofensivo."
Porque igrejas frequentemente se veem em uma posição de superioridade moral em relação à sociedade, temas como racismo e machismo são evitados em conversas internas. E em muitos casos, o ambiente da igreja protege agressores. "Há uma metáfora bíblica que fala da 'mulher que goteja’, que é aquela que inferniza a cabeça do marido se queixando", me conta outra interlocutora, pedindo anonimato. "Ninguém na igreja fala diretamente dessa maneira, mas a conclusão é que, se o homem bate, é porque a mulher merece."
"O que vou falar agora é super em off, ok?", me advertiu outra interlocutora que, mesmo sendo advogada, prefere não se indispor com os membros de sua igreja, uma das mais conhecidas do país. "Sei de casamentos capengas e bastante abusivos para a mulher, mas elas jamais pedirão o divórcio por causa da concepção de que a família é o bem maior".
Evangélicos permanecem em relações perversas porque o divorciado passa a ser visto entre seus pares como um "amputado", ou seja, alguém que falhou na tarefa de constituir uma família. É pior para a pessoa que pede o divórcio. Ela geralmente perde suas funções na igreja, inclusive as remuneradas, e deixa de ser convidada para eventos sociais da comunidade. Isso é muita coisa quando a maior parte dos seus relacionamentos está ali.
Igrejas não são lu gares ruins para mulheres; se fossem, elas não seriam a maioria dos evangélicos brasileiros. Também não é ruim que a igreja aconselhe casais em crise; o problema é ela fechar os olhos —por tradição ou por omissão— para casos de abuso.
Feministas e evangélicas se veem como inimigas, no entanto, elas estão muito mais próximas do que parecem, porque enfrentam os mesmos problemas na sociedade, os mesmos desafios no mercado de trabalho e continuam sub-representadas em cargos de liderança. Está na hora desse diálogo acontecer.
* Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliano-spyer/2023/11/igrejas-ainda-condenam-mulheres-a-casamentos-infelizes.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista
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