segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Marco Lucchesi: O poeta de fronteiras

Fluente em 22 idiomas, presidente da Biblioteca Nacional traduz autores de línguas como persa, russo e turco

Ana Carolina Fernandes

Professor titular de literatura comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o poeta, escritor, memorialista e ensaísta carioca Marco Americo Lucchesi assumiu a presidência da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) em 2023 com a missão de tornar a instituição mais transparente e acessível, além de modernizar seu acervo centenário, composto por mais de 10 milhões de itens. Incorporar um olhar sensível a questões identitárias na leitura de material produzido em contextos coloniais, expandir o espaço físico disponível para armazenar coleções e ampliar o acesso a documentos digitalizados faz parte da empreitada.

Fluente em 22 idiomas, que incluem persa, latim, árabe e russo, Lucchesi teve contato com a literatura muito cedo quando, ainda criança, escutava o pai e a avó recitarem versos de poetas italianos como Dante Alighieri (1265-1321). Historiador de formação, viajou o mundo e presidiu a Academia Brasileira de Letras (ABL) de 2018 a 2021. Traduziu autores como os italianos Umberto Eco (1932-2016) e Primo Levi (1919-1987), além do persa Yalāl ad-Dīn Muhammad Rūmī (1207-1273) e o paquistanês Muhammad Iqbal (1877-1938).

Em entrevista concedida a Pesquisa FAPESP no último andar da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, Lucchesi recusou formalidades e pediu para ser chamado de Marco. Sorridente e expressivo, falou de seus planos à frente da segunda instituição mais antiga do Brasil e propôs reflexões sobre a importância da pesquisa desenvolvida nos campos da literatura e história no processo de tradução de autores para o português.

Idade 59 anos
Especialidade
Literatura comparada e tradução
Instituição
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Formação
Graduação em história pela UFF (1985), mestrado (1989) e doutorado (1992) em letras pela UFRJ

Sua primeira língua é o italiano ou o português?
Minha infância foi bilíngue. Dentro de casa, era como se vivesse numa pequena Itália e a língua de meus primeiros anos foi o italiano. Na família, não falávamos português porque seria artificial. Cresci nos horizontes do Brasil. Na escola, com os amigos e na rua sempre falava português. A experiência de nascer bilíngue é diferente de aprender outras línguas mais tarde. Ter dois idiomas integrando meu universo de formação foi uma experiência marcante.

Por que seus pais imigraram ao Brasil?
Meus pais, Elena Dati e Egidio Lucchesi, vieram ao Brasil motivados por um convite do jornalista e empresário Assis Chateaubriand [1892-1968]. Meu pai trabalhava com engenharia de antenas de rádio e televisão. Era talentosíssimo em seu ofício, inventou diferentes sistemas e ganhou prêmios. Conheceu Chateaubriand quando era radiotelegrafista em um barco da marinha mercante italiana. Nos anos 1950, recebeu o convite para trabalhar no sistema de rádio do empresário. Noivo de minha mãe, casaram-se por procuração. Anos depois, chegou ao Rio de Janeiro minha avó materna. Eles jamais se sentiram estrangeiros por aqui, apesar de ser outro mundo se comparado com Massarosa, cidade de origem, um pequeno povoado no norte da Toscana. Para eles, o Brasil era um horizonte de sonho, de paz e diálogo, mesmo com todas as contradições. Nasci em Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1963. Não tenho irmãos nem tive filhos.

Você se lembra da primeira vez que teve contato com a literatura?
Esses primeiros contatos aconteceram por meio da música, de experiências orais e das enciclopédias. Minha mãe cantava, tocava piano – instrumento que mais tarde se tornou meu – e sabia várias canções de ninar. Meu pai amava Dante Alighieri. Recitava trechos do poema narrativo Divina comédia de cor. Inclusive, quando ele estava completamente imerso no Alzheimer, a única forma possível de comunicação era recitar um verso de Dante pela metade para ele completar com o final. Dante foi nosso elo. Já minha avó materna narrava as histórias de Orlando furioso, poema épico de Ludovico Ariosto [1474-1533]. Eu me lembro, também, da primeira vez que fui sozinho a uma livraria e comprei um livro. Foi em 1972, aos 8 anos de idade. Adquiri a obra Poemas, de Gonçalves Dias [1823-1864], em uma livraria de Niterói. Era uma edição de 1968 editada pelo crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos [1919-1992]. Guardo esse livro até hoje para reler os registros sentimentais feitos aos 8 anos. Ainda sobre Gonçalves Dias, em 2023, vivi um momento emocionante relacionado com esse poeta fundamental. O Arquivo Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão descobriu e doou cópias à Biblioteca Nacional dos processos judiciais de Dias, que eram desconhecidos até então. Além de poeta, ele também advogou. A BN está catalogando o material que, em breve, estará disponível para pesquisa.

Como foi sua proximidade com escritores desde muito jovem?
Conheci Carlos Drummond de Andrade [1902-1987] pessoalmente aos 21 anos, na festa de 80 anos do jurista e escritor Afonso Arinos de Melo Franco [1905-1990]. Foi uma experiência inesquecível e voltei emocionado para casa. Antes disso, eu costumava escrever cartas para Drummond, que as respondia. Outro encontro marcante foi com o escritor egípcio Naguib Mahfouz [1911-2006], quando eu tinha 33 anos, em uma das vezes que estive no Egito, em 1996. Ele já tinha sido ferido pelo grupo islâmico extremista Irmandade Muçulmana e estava recluso em sua casa, mas aceitou me receber. Fiz muitas perguntas e conversamos durante horas. Mas houve muitos outros encontros, antes e depois desses.

Quando meu pai estava imerso no Alzheimer, a única forma possível de comunicação com ele era recitar um verso de Dante

É verdade que você fala 22 línguas?
Sim, é verdade, mas eu também custo a acreditar. No fundo, acho que é um problema psiquiátrico. Brincadeiras à parte, até hoje eu me pergunto: por que tantas línguas? É um exagero, é quase uma audácia. Mas a sensibilidade para as línguas já existia em família, sobretudo no meu avô paterno, que não cheguei a conhecer. Ele não era judeu, mas a família conta que ele foi levado para o campo de concentração de Mauthausen-Gusen, na Áustria, durante a Segunda Guerra Mundial [1939-1945]. Conseguiu aprender alemão rapidamente e fugiu. Meu avô sabia falar umas cinco ou seis línguas, mas não sei como aprendeu. Também penso que fui influenciado pelo contato com o rádio, que tive desde pequeno e despertou em mim um desejo de me comunicar com outras gentes.

Como você aprendeu tantos idiomas?
Aprendi espanhol e inglês quando ainda era criança pequena. Aos 12 anos, aprendi alemão e francês e, aos 14, veio o russo. Os outros idiomas estudei mais tarde, como o árabe, que aprendi aos 30. Língua que me permitiu circular em diferentes países como Líbano, Síria, Egito e Marrocos, com suas variantes específicas do idioma. No começo, sempre tenho aulas com professores e me apoio em métodos de aprendizagem. Para idiomas complexos, como o árabe, as viagens também ajudam muito. E não satisfeito com essa obsessão por aprender idiomas, inventei uma língua, que chamei de laputar, e até publiquei uma gramática com texto bilíngue, prefácio e glossário. Hoje, já não estudo mais tantos idiomas quanto antes e tenho me concentrado em aprender só nheengatu, além de escrever. O nheengatu, ou tupi moderno, é uma língua indígena pertencente à família tupi-guarani.

Como você foi da formação em história para o campo literário?
Fiz história na Universidade Federal Fluminense [UFF] na década de 1980, quando a instituição estava construindo seus programas de mestrado e doutorado. Era apaixonado pela disciplina e por autores que propunham reflexões sobre cronotopia, ou seja, sobre a forma como as relações temporais e espaciais são assimiladas em obras artísticas. Eu já considerava a literatura um espaço fundamental para a realização daquilo que desejava, ou seja, escrever poesia, ensaios, romances e memórias. Então, na pós-graduação, optei por estudar literatura comparada, seus contextos históricos, arcabouços teóricos e referenciais metodológicos. Fiz mestrado e doutorado na UFRJ e meu doutorado foi sobre Dante. A tese saiu em livro sob o título Nove cartas sobre a Divina comédia [Bazar do Tempo, 2013]. Cada capítulo corresponde a uma carta endereçada ao leitor e propõe reflexões sobre diferentes temas e aspectos da Divina comédia, desde o inferno até o paraíso. Já o pós-doutorado realizei em 1994 na Universidade de Colônia, na Alemanha, e estudei a filosofia do Renascimento italiano, especialmente o pensamento do erudito neoplatônico Marsílio Ficino [1433-1499], que foi filólogo, médico e filósofo.

Pode falar sobre seus interesses de pesquisa?
Estudo os sistemas literários de diferentes países, entre eles de nações como Itália, Irã, Turquia, Grécia e Rússia. Sistema literário é um conceito que abarca o conjunto de elementos que fazem parte da realidade literária de cada lugar e incluem a tradição, os movimentos, as editoras, as associações, entre outros. Em meus estudos, procuro compreender as relações entre história e literatura e os processos de tradução de distintos autores. Pesquisei esses diálogos em diferentes projetos, como em estudo sobre as fronteiras entre ficção e ensaio, história e literatura, partindo da obra do escritor italiano contemporâneo Claudio Magris. Também investigo as dimensões éticas da tradução, por meio de análises sobre deslocamentos semânticos e culturais que ocorrem na passagem do texto de partida para o texto de chegada.

Lucchesi manuseia obra raríssima produzida por frade franciscano entre 1445 e 1517Ana Carolina Fernandes

Como a atividade de tradutor e o trabalho de pesquisa se retroalimentam?
Esta é uma das perguntas centrais da pesquisa que eu estava desenvolvendo com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq] antes de assumir a presidência da BN. O trabalho de tradutor possui um aspecto artesanal, de traduzir cada palavra, mas deve ser equilibrado com o conhecimento sobre a história e a literatura de cada país, ajustando os sentidos semânticos conforme os contextos em questão. O processo de tradução não acontece apenas por meio de mecanismos de relação entre línguas e requer um conhecimento prévio de sistemas literários. Ou seja, a tradução é um campo em que aspectos históricos e literários precisam ser conjugados de forma sinfônica. O conhecimento teórico deve estar alinhado com o conhecimento prático do que funciona em termos de rimas e métricas. A teoria e a prática precisam se corrigir e se retroalimentar de forma permanente e esse é um grande desafio, especialmente pensando na tradução de poemas. Essas propostas orientaram trabalhos de tradução que fiz de autores como o poeta e matemático romeno Dan Barbilian [1895-1961], o poeta, teólogo e médico alemão Angelus Silesius [1624-1677] e o poeta russo Velimir Khliébnikov [1885-1922].

Por que traduzir poesia é tão desafiador?
A poesia tem a capacidade de dar saltos, de unir coisas aparentemente disparatadas e congregar o que parece distante, oferecendo uma centelha para o entendimento do sentido. Assim, da impossibilidade de diálogo, o poeta cria a capacidade de furar bloqueios, de atravessar fronteiras, e essa intenção precisa aparecer no trabalho de recriação de cada verso. O tradutor se inquieta, ou se aflige, pois precisa lidar com a ideia de que é possível apenas tangenciar os sentidos do texto literário original, sendo necessário trabalhar sempre no campo do imponderável e do impreciso.

Qual foi o trabalho mais difícil que você traduziu?
Comecei a fazer traduções aos 15 anos e sigo com elas até hoje. Neste ano, por exemplo, saíram duas traduções exigentes: Babel [Attar Editorial], do poeta turco contemporâneo Tozan Alkan, e Caderno azul [Editora Patuá], de Yunus Emre [1238-1328], que traduzi do turco antigo. Elas me deram muito trabalho, pois demandaram não apenas o conhecimento da língua, suas rimas e métricas, mas também a recriação do sistema literário turco, antigo e moderno, para o sistema literário brasileiro. Isso significa que foi necessário mobilizar o conhecimento que tenho da história de cada país e dos referenciais teóricos de filosofia da tradução.

De onde vem seu interesse e sua relação com autores do Oriente?
Dos meus 30 aos 50 anos, eu sentia uma espécie de grande saudade do Oriente, sentimento que me perturbou durante décadas. Viajei para muitos lugares, quase todos os países árabes, Mauritânia, Marrocos, Arábia Saudita e vários outros. Às vezes, por causa de convites para dar palestras ou lançar livros e, outras, em férias. Em 2022, fui ao Paquistão para dar uma palestra. Queria ter depositado flores no túmulo do poeta e filósofo Muhammad Iqbal, mas não foi possível, pois havia rumores de golpe de Estado. Tive de fugir do hotel às 4 horas da manhã, escoltado por seguranças armados até os dentes e correr para o aeroporto.

Saber falar tantas línguas te abriu portas para além do campo da tradução?
Gosto de usar as línguas que conheço para abrir espaços de diálogo. Para contar um caso, em 1996 eu estava no Líbano e queria visitar um campo de refugiados. Cheguei a Sabra e Chatila e um jornalista árabe me cumprimentou em inglês. Prontamente respondi em árabe. Ele ficou emocionado e surpreso, razão pela qual visitei o campo acompanhado por crianças, idosos e mulheres. Foi uma experiência diferente, que me mostrou quão dramática é a vida nesses espaços. Além disso, participei de um grupo no Conselho Nacional de Justiça para defender o direito à leitura em espaços de reclusão. Antes da pandemia, eu costumava visitar prisões para dar aulas em escolas que funcionam nesses lugares. Em uma delas, comecei a conversar com um senhor que falava um português de difícil compreensão. Eu questionei sua origem, mas ele não respondeu. Na verdade, foi uma pergunta indevida, pois ele pareceu ter se sentido ainda mais excluído: estava preso e, ainda por cima, era estrangeiro. Para tentar amenizar a situação, disse-lhe que minha origem era italiana e ele acabou respondendo que era de Brasov, na Romênia. Então, eu disse a ele em romeno: “Brasov, na Romênia? Mas como pode isso, meu amigo?”. Ele ficou surpreso ao ver que eu falava seu idioma materno. No final da conversa, me abraçou e beijou o meu rosto.

Por que falar tantas línguas? É um exagero. A sensibilidade para línguas já existia em minha família

Partindo da experiência em diferentes contextos nacionais e sociais, que conselhos você daria para um jovem pesquisador que deseja entrar na vida acadêmica?
Uma das coisas mais importantes é fugir à tentação de seguir a carreira apenas por vaidade ou pela estabilidade que o serviço público proporciona. O jovem não deve se iludir pelo canto da sereia. Grandes questões metafísicas precisam estar sempre em primeiro plano. O segundo ponto fundamental é a capacidade de realizar leituras várias e globais, sem preconceitos, com método e sem ideias apressadas. Adotar um olhar aberto, ecumênico e evitando modismos. Ter cuidados com ideologias mecânicas, anacronismos, ilusões historicistas e saber olhar o passado sem aprisionamentos. Precisamos desconfiar do presente e enfrentar os desafios do futuro. E não permitir, sob qualquer hipótese, que a instituição destrua ou comprometa a nossa subjetividade. Essa é uma luta constante, perene, de autorregulação e refinamento. Os grandes insights relacionam-se com a estrutura das revoluções científicas que ocorrem no coletivo, nos embates e nos diálogos, mas o núcleo duro da subjetividade deve reger a pesquisa e os interesses acadêmicos.

Vamos agora falar sobre a Biblioteca Nacional? Você pode definir o que é a instituição?
A Biblioteca Nacional é um grande acontecimento, um sonho de olhos abertos, métrica de tesouros, máquina do tempo e defesa do infinito. Partindo para uma definição objetiva, uma biblioteca nacional é aquela que, por lei, recebe o depósito legal de quanto se publica no país, livros, revistas, jornais, partituras. A BN chega a receber de 80 a 100 mil livros por ano e precisa catalogar e conservar todo esse material. Durante o período de férias, recebemos 7 mil visitantes por dia. O número de acessos digitais deve ultrapassar neste ano a casa de 100 milhões. Trabalhamos, ainda, em parceria com as bibliotecas da América Latina por meio da Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias. A BN do Brasil é mundialmente reconhecida por suas atividades de preservação e conservação e prestamos assistência a instituições na Bolívia, Equador, Uruguai e Paraguai. A BN busca desenvolver colaboração com irmãos desse continente que têm muito a dar para o mundo. Também acabamos de realizar o primeiro encontro da BN com bibliotecas nacionais de países africanos de língua oficial portuguesa.

Que segredos a BN esconde? Há alguma caixa fechada que nunca foi aberta?
Não. O que certamente deve haver são surpresas de classificação, ou seja, objetos que foram catalogados de forma equivocada. Em 2011, foi encontrada uma edição desconhecida do livro Harmonia cósmica [1596], do astrônomo e matemático alemão Johannes Kepler [1571-1630]. Quando soube da notícia, até me ajoelhei. Na década de 1950, foram identificados pareceres do século XIX de Machado de Assis [1839-1908] para o Conservatório Dramático, nos quais o escritor avalia se determinada obra deve ou não ser encenada. Ou seja, muitas surpresas podem vir à tona a partir do trabalho de pesquisadores e bibliotecários.

Você se lembra quando foi a primeira vez que entrou na BN?
Deve ter sido aos 14 ou 15 anos. Desde sempre sou capturado por essa instituição. São muitos tesouros. Recentemente, egiptólogos estiveram aqui e ficaram impressionados com as fotos que dom Pedro II trouxe do Egito. Ao sul do Equador, temos a maior coleção de incunábulos – livros impressos no século XV, antes de Gutenberg. Temos a Bíblia de Mogúncia impressa em 1462, além de obras de Candido Portinari [1903- -1962], gravuras de Francisco de Goya [1746-1828] e uma coleção de música que é considerada a mais importante da América Latina. Uma das grandes joias da BN é Divina proporção, obra raríssima produzida pelo frade franciscano e matemático Luca Bartolomeo de Pacioli [1445-1517]. O livro trata da divina proporção a partir de uma perspectiva platônica, sustentando que a matemática e a geometria são as verdadeiras linguagens do Universo. Além disso, as letras foram desenhadas por Leonardo da Vinci [1452-1519], que era seu aluno. Esse livro estava desfeito e comprometido. Algumas partes, inclusive, estavam em migalhas, e a equipe de preservação da BN conseguiu recuperá-lo a partir de um projeto para reconstrução de livros raros. Tenho imenso respeito pelos servidores desta casa.

O tradutor precisa lidar com a ideia de que é possível apenas tangenciar o sentido do texto original

Quais os desafios de uma instituição centenária para se modernizar e, ao mesmo tempo, preservar o passado?
Cada geração abre a janela de seu tempo e recolhe os melhores frutos. Todas complementam e revisam uma política de desenvolvimento de coleções. O desafio de nosso tempo é ampliar a bibliodiversidade. Em parceria com lideranças indígenas vamos repensar uma coleção de fotografias feitas por diferentes profissionais em uma aldeia yanomami, próxima de São Gabriel da Cachoeira [AM]. Neste ano lançamos o Prêmio Akuli, para reconhecer cantos ancestrais e narrativas da oralidade de povos originários, quilombolas e ribeirinhos, como parte do Prêmio Literário que promovemos anualmente. A ideia do prêmio me ocorreu durante as visitas que realizei a aldeias e comunidades quilombolas do país. Percebi que as novas gerações queriam reconstruir o tecido social a partir de suas narrativas orais e canções. O Prêmio Akuli foi o primeiro passo na intenção de ampliar as prateleiras étnicas da BN, sem prejuízo de outras riquezas. Somos ecumênicos. A BN é uma instituição que não censura, é democrática e recebe em seu depósito legal uma grande pluralidade de livros e vozes.

A BN tem enfrentado problemas relacionados à falta de manutenção de sua estrutura, que ocasionaram vazamentos de água, falhas no sistema de refrigeração e risco de incêndio. Essas questões vêm sendo resolvidas?
Há 10 anos, a instituição colocou em prática um projeto para modernizar seu sistema de refrigeração e, em 2017, reformou sua fachada. Nos últimos cinco anos, foram feitos investimentos para melhorar a segurança contra incêndios, incluindo recursos na arquitetura e o treinamento de servidores. Ainda enfrentamos problemas de falta de espaço e temos uma equipe reduzida de profissionais. A BN não para de crescer e o espaço físico precisa acompanhar esse avanço. Recebemos neste ano um aporte de R$ 23 milhões do governo federal e recebemos R$ 18 milhões do Fundo de Direitos Difusos, para iniciar as reformas do anexo da BN no Porto Maravilha, no centro do Rio de Janeiro. A partir desses e de outros investimentos, a ideia é que o anexo funcione como uma biblioteca do século XXI. Os recursos estão sendo ampliados tendo em vista a melhoria desses problemas, mas é necessário dar passos seguros, ter transparência nos gastos e responder aos órgãos de controle. Com isso, os projetos não são colocados em prática com a rapidez que desejamos.

O que é uma biblioteca do século XXI?
É uma instituição sem paredes, transparente e acessível. Caminhamos para um processo de digitalização cada vez mais intenso do acervo. Hoje, registramos 8 milhões de acessos por mês em nossa base de dados e queremos aumentar a quantidade de documentos digitalizados para que pesquisadores do mundo todo possam consultá-la. Não pode haver confusão: o digital não é inimigo do analógico, como se pensava nos anos 1990. Precisamos trabalhar com a dupla preservação e com a manutenção de dois patrimônios, do ponto de vista de sua organização. Por outro lado, devemos expandir o acesso às informações, de tal modo que a BN não seja apenas um repositório, mas sim uma grande encruzilhada de saberes. Por fim, enfrentamos o desafio de ampliar o desenvolvimento de pesquisas que permitam aprofundar a compreensão de certos itens de nosso acervo que ainda foram pouco estudados, entre eles o repositório de quadrinhos, um dos maiores do mundo.

Fonte:  https://revistapesquisa.fapesp.br/marco-lucchesi-o-poeta-de-fronteiras/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=Ed333&utm_id=out2023

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