Por Amarílis Lage | De São Paulo
"Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me
chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de
modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser
intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a
intuição, o instinto." É assim que Clarice Lispector (1920-1977) se
autodefinia, mas não é isso que mostra a sua obra, segundo o
recém-lançado "Clarice - Uma Literatura Pensante", de Evando Nascimento.
A escritora estruturou em seus livros um pensamento complexo e com
uma orientação ética, avalia Nascimento, que é professor de estudos
literários da Universidade Federal de Juiz de Fora e especialista na
obra do filósofo francês Jacques Derrida, de quem foi aluno na École des
Hautes Études en Sciences Sociales. O pesquisador alfineta: é um
"anti-intelectualismo fingido".
Para explicar o "funcionamento" da obra de Clarice, Nascimento
diferencia literatura pensante de filosófica. Esta última englobaria,
por exemplo, a ficção feita por Jean-Paul Sartre (1905 - 1980), em que o
texto literário serve à transmissão de conceitos que vêm da filosofia -
no caso de Sartre, o existencialismo.
"Clarice não precisou citar nenhum teórico para demonstrar a
complexidade da relação homem-mulher nos contos de 'Laços de Família'.
Você tem ali um pensamento que pode ser relacionado com a psicanálise,
com a antropologia e com a filosofia, mas que é próprio dela", diz o
autor.
Entre os autores que desenvolveram uma literatura pensante,
Nascimento inclui Thomas Mann, Franz Kafka, Jorge Luís Borges, Guimarães
Rosa e João Cabral de Mello Neto. "A literatura não substitui a
filosofia. São discursos complementares. Na literatura, o tom é
diferente, as estratégias textuais são outras, e o pensamento produzido
acaba sendo distinto."
Na obra de Clarice, uma característica dessa reflexão seria a
desconstrução de dicotomias, como masculino e feminino, homem e animal,
animal e planta. O romance "A Hora da Estrela" seria um exemplo disso,
quando o narrador, Rodrigo, diz sobre Macabéa: "Vejo a nordestina se
olhando ao espelho e - um rufar de tambor - no espelho aparece meu rosto
cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos".
Nesse processo, Clarice investiga até o limite entre o que é vivo e o
que não é; um raciocínio que culmina na figura do ovo, uma imagem forte
na obra dela. "Clarice investe de subjetividade as plantas e os
objetos", diz Nascimento, citando o livro "Água Viva", em que ela faz
referência aos sentimentos das flores, e "Um Sopro de Vida", no qual um
personagem, o Autor, cria uma personagem feminina, Ângela, que dá vida
aos objetos.
É por meio desses questionamentos que a obra de Clarice ganha uma dimensão política, na análise feita por Nascimento.
"Nessas oposições, normalmente um dos elementos do par é diminuído.
No momento em que você presta atenção na singularidade do outro - do
animal, da planta, do feminino -, há a possibilidade de esse outro se
afirmar. A ética, nesse caso, significa construir espaços para que o
outro possa emergir. Trazer à cena o que é excluído", diz Nascimento,
que traça um paralelo entre Clarice e Derrida. "Eu diria que ela resolve
ficcionalmente o que Derrida resolve filosoficamente, quebrando as
hierarquias entre o feminino e o masculino, ou entre o humano e o
animal,
Talvez aí esteja até uma pista para entender o "anti-intelectualismo
fingido" de Clarice. E Nascimento arrisca uma teoria. "A meu ver, foi
uma tentativa de valorizar um polo que foi sempre desvalorizado, dizer
que tudo é espontâneo. Mas a graça dela é juntar intuição e razão."
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