Tatiana Salem Levy*
Uma das questões mais recorrentes em torno da literatura hoje se
resume na seguinte pergunta: o que é narrado aconteceu na realidade? De
um lado, existe uma fome de veracidade por parte dos leitores, ansiosos
em saber se há equivalência entre fato e ficção. E, de outro, existe na
crítica uma enorme resistência em falar da vida, como se a literatura
não tivesse nada a ver com ela. O problema dessa questão talvez se
coloque desde o ponto de partida, na definição equivocada do que seja o
real.
Para desenvolver essa ideia, eu queria antes abordar rapidamente uma
concepção muito cara à teoria literária: a morte do autor. No fim dos
anos 1960, o ensaísta francês Roland Barthes escreveu um texto com esse
título, em que defendia a primazia do leitor em relação ao autor. Ora,
tem ele muita razão. No entanto, é preciso saber que esse conceito
elaborado por Barthes, e por outros teóricos, como Maurice Blanchot e
Michel Foucault, surgiu como reação à crítica literária da época, que
buscava explicação para a obra na vida do autor, traçando paralelos
redutores entre os acontecimentos narrados e os fatos vividos.
Nesse aspecto, era mesmo necessário matar o autor. Só que hoje já não
é possível continuar a repetir essa asserção como se aquele que escreve
não existisse ou não tivesse nada a ver com o texto. Até porque essa
seria uma visão simplista da tese defendida por Barthes. Mas tampouco se
trata de proporcionar uma ressurreição da figura do autor - embora isso
aconteça cada vez mais, tendo em vista a sobre-exposição midiática de
sua figura.
Nem vivo nem morto, o autor é uma espécie de zumbi. Insone, está
sempre em estado de vigília, como se nunca pudesse adormecer nem
despertar completamente. O escritor se encontra ao mesmo tempo dentro e
fora dos acontecimentos. É um observador inquieto, predisposto a
assistir à própria vida e transformá-la depois.
Negar a importância da vida para a obra seria negar o trabalho de
escritores como Marcel Proust e Marguerite Duras, entre tantos outros.
"Em Busca do Tempo Perdido", do primeiro, é um dos textos centrais da
história literária, e há nele diversas referências a pessoas concretas,
ao mundo aristocrata em que vivia Proust, a casas e festas que ele
frequentava. Não se pode, portanto, dizer que o universo do livro não
diga respeito ao autor. Se Proust tivesse tido outra vida, outros seriam
os seus livros - isto é, se ele fosse escritor.
No entanto, a vida dele nunca vai explicar a sua obra. Porque a obra
começa antes e termina depois do autor. Começa com a tradição e termina
em cada leitor, que tem uma bagagem própria e interpretará o texto
conforme suas experiências. O texto, como uma teia, se espalha por
muitos cantos, em variadas direções. Ele se expande, se alarga, e a vida
do autor passa a ser apenas uma das paragens possíveis de um longo
percurso.
Marguerite Duras, por sua vez, nasceu e passou a infância no Vietnã,
que na altura era colônia francesa. Foi lá que viu a mãe comprar terras e
depois descobrir que estavam alagadas pelo mar; foi lá que viveu uma
ternura profunda pelo irmão caçula; sentiu cheiro de comida e jasmim na
rua; o calor úmido ao longo dos anos; e foi lá que teve seu primeiro
amante, um chinês do Norte. Todos esses elementos estão presentes em sua
obra, ora de forma explícita, ora bastante modificados.
Ainda menina, jurou escrever a história da mãe. Cumpriu a palavra.
Mas fez o que fazem os escritores: reinventou a realidade. Assim, "Uma
Barragem contra o Pacífico" narra a história de uma viúva doente e sem
posses, mãe de um casal, Suzanne e Joseph, que quer "vender" a filha a
um homem feio e rico. Essa mãe é e não é a mãe de Marguerite, assim como
esse homem é e não é o seu amante, o mesmo que depois virou livro.
Embora "O Amante", novela que se tornou best-seller mundial, seja o
relato de uma experiência vivida pela autora, extrapola em muito as
fronteiras fatuais, graças à força assustadora de sua linguagem.
Para tomarmos um exemplo mais contemporâneo, podemos falar no romance
"Nove Noites", de Bernardo Carvalho. Ao conhecer a história de Buell
Quain, antropólogo americano que se suicidou aos 27 anos, após um
período numa aldeia indígena no interior do Brasil, Bernardo Carvalho
decidiu investigar as razões que o levaram ao suicídio. O romance é a
busca por uma resposta impossível, por um segredo que Quain levou
consigo.
O que está em jogo na proposta de Carvalho é que dados concretos
(Buell Quain existiu, esteve no Brasil e se suicidou) entram na ficção
desprovidos de sentido justamente para que a narrativa o construa. O
romance é, ele todo, a busca por um sentido (por que Quain se matou?),
mas é também a revelação de que esse sentido não será nunca encontrado,
pois não está oculto em lugar algum e, por isso, deve ser inventado.
Carvalho transforma a realidade em artifício, trazendo para a literatura
a máxima de Nietzsche: "Não há fatos, só interpretações".
Mas, afinal, o que podemos depreender de casos como os de Proust,
Marguerite e Carvalho? Literatura e realidade se confundem ou não? Os
acontecimentos importam? O que é mais verdadeiro: o que se escreve ou o
que se vive?
Questões como essas fazem parte do próprio fazer literário e não
fornecem respostas prontas e óbvias. Escrever é, também, perseguir essas
indefinições. Podemos, contudo, arriscar um caminho possível.
Por mais que o escritor se transforme em seres estranhos, que se
desloque por lugares e épocas desconhecidos, o texto que ele produz
passa sempre por ele, pelo seu campo de conhecimento e, ainda mais, pelo
seu corpo. Num pequeno livro chamado "Escrever", afirma Marguerite
Duras: "Sem sangue, o autor não reconhece mais o seu texto". O que é o
mesmo que dizer que se ele não estiver ali, presente, inteiro, a
literatura não se realiza, não ganha verdade. Às vezes, para falarmos
dos outros, é preciso chegarmos muito próximos de nós mesmos.
Se o autor parte de um impulso da realidade, de algo que o
sensibilize, isso não quer dizer que fique preso a ela. Quando alguém
está interessado em "descobrir" se um conto ou um romance revela a vida
do autor ou de alguma figura real, está reduzindo a vida aos fatos,
eliminando dela tudo o que não tem nome, o que não tem razão, o que é
força, potência.
Entre dois elementos - a realidade e a ficção - existe um terceiro: o
real. O real é como pequenos clarões que surgem de repente e, sem
explicação, suspendem o tempo e fazem as coisas ganharem sentido. Como a
"madeleine" mergulhada no chá no romance de Proust, o que vale não é o
passado, mas a explosão e a atualidade dos acontecimentos. A literatura,
nesse sentido, é uma tentativa de chegar perto não dos fatos, daquilo
que já sucedeu, mas do real, da vida em seu fulgor; em suma, de tudo
aquilo que, por ser grande demais, incompreensível demais, leva alguém a
escrever. Uma experiência quase mística, que nada tem a ver com
religião nem com deus, mas nos coloca diante do inexplicável e nos faz
experimentar o susto de estar vivo: é isto, a literatura.
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*Tatiana Salem Levy é escritora e doutora em letras. Publicou os romances "A Chave de Casa" e "Dois Rios" (Record)Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/2624386/entre-realidade-e-ficcao
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