O cardápio e o caloroso sotaque italiano de Mário, o dono do Tatini, poderiam levar a uma leitura apressada de que a escolha do local se deve ao fato de que o psicanalista é um homem que busca manter suas raízes. Não é tão simples. Se aos 4 anos ele pediu para falar inglês, aos 14 fugiu para Londres atrás de uma canadense, mais tarde se casou com uma americana e depois esteve em tantos lugares diferentes, não foi, talvez, por acaso. "Meu pai era um resistente antifascista, havia uma certa dificuldade, um conflito na minha relação com a Itália, que quando eu nasci já não era fascista, mas era um país que durante muitos anos tinha perseguido o meu pai, tentado matá-lo. Nasci e cresci num conflito grande com minha própria identidade nacional", lembra ele, que ficou sem ir ao país natal por anos na década de 90 depois da morte dos pais.
A ficção, diz ele, tem também esse propósito. "Uma ficção se constrói a partir de pequenos elementos da sua vida, sobretudo aqueles que você não conseguiu costurar direito, porque a ficção serve para isso. Você costura as coisas, de uma maneira ou outra, dá um destino." E assim nasceu seu livro mais recente, "A Mulher de Vermelho e Branco".
"Tinha coisas das quais eu estava a fim de falar, algumas experiências suspensas, enigmáticas. Tive mesmo uma paciente que se vestia de vermelho e branco e eu ficava me perguntando se era louca ou não durante certo tempo - mas a história não tem nada a ver [com a do livro]. Eu tive um paciente que foi assassinado e nessa ocasião eu colaborei com a polícia. E também tive, de fato, uma relação com uma refugiada vietnamita nos anos 70, em Paris, então certamente aquela lembrança me inspirou", conta o criador de Carlo Antonini, personagem central e - mais uma vez: nenhum acaso aqui - psicanalista dos dois primeiros romances publicados e de um terceiro que está sendo gestado.
Em meio a tantas viagens e domicílios distintos, ele acabou se desfazendo das obras mais antigas e hoje se dedica mais aos artistas brasileiros. "As coisas que eu tinha mais antigas, até o século XIX, eu acabei vendendo. O que tenho hoje são obras contemporâneas, quase todas brasileiras", diz ele, que é um frequentador de galerias.
A contemporaneidade, aliás, é algo, logo se percebe, caro ao psicanalista. Embora não veja problemas em esbarrar num certo tipo de nostalgia, há outros que podem ser menos inofensivos. Se o assunto são as angústias e dilemas da sociedade atual, ele costuma se apressar a dizer que "evita culpar os tempos". "Quando a gente diz sinal dos tempos, está sempre sendo hipocritamente trágico, como se falasse 'ah, meu deus, para onde fomos?'. Acho que fomos para um lugar imensamente melhor que os lugares nos quais já estivemos - e estou falando como espécie -; então, não tenho nostalgia de um passado que não vivi nem do passado que eu vivi. É muito melhor ter celular, internet."
Mas no pano de fundo da questão está algo que aparece no cerne desse mal-estar moderno e é o que Calligaris chama de uma "herança de 200 anos de higienismo", algo que pode ser mais poderoso até mesmo que crenças religiosas. "A medicina se tornou a disciplina que nos diz como viver muito mais que a religião ou qualquer outra coisa. Tem muito mais pessoas que correm no Ibirapuera ou numa esteira a cada dia do que pessoas que vão para a missa, pelo menos na classe A e B. É a ideia de que você tem que perseguir a sua saúde e as maneiras de fazer isso. O Ocidente inteiro está composto de pessoas que se preocupam com o que comem, ou quantas vezes por dia defecam, ou se preocupam com o 'check-up' anual. A medicina preventiva também é uma forma de controle das vidas."
Embora visivelmente não seja adepto da introdução de remédios nos tratamentos - ele não perde a oportunidade de citar, por exemplo, que os antidepressivos têm uma eficácia apenas em 38% dos casos, enquanto simples placebos funcionam em 18% das vezes -, Calligaris descreve como quase infantil hoje a espécie de militância que tinha, como jovem psicanalista, contra o uso de psicotrópicos. Reconhece que muitos de seus pacientes se medicam - porque querem se medicar - e nesses casos prefere ser colaborativo e até indicar um psiquiatra que possa prescrever o que for melhor para o caso. A questão, insiste, é que o uso de remédios se torna uma espécie de emaranhado, no qual se começa tomando uma fluoxetina, mas aí se fica sem sono à noite, então se toma um ansiolítico, que pode engordar, então se acrescenta algo para o apetite e daí por diante até se chegar a um verdadeiro coquetel de medicamentos.
Não tenho a pretensão, ainda menos como terapeuta, de curar o que tem de existencial na neurose ou no sofrimento
Mas, ironia estranha, por que será que justamente neste mundo em que a longevidade se torna um valor tão primordial, não é raro que as pessoas se refiram aos antidepressivos e aos ansiolíticos como remédios que funcionam para aguentar a vida, ou a pressão, o estresse que a vida moderna estaria embutindo no cotidiano? A vida moderna, diz ele, não é a vilã, e os medicamentos não serão a solução. "Se quer resolver mesmo o problema da vida se drogando, então que se use uma droga que funcione, heroína, crack, é melhor levar a sério se o objetivo é 'aguentar' a vida com drogas. Há coisas mais eficientes que fluoxetina." Ironia à parte, o antídoto mesmo para a questão é outro: coragem. "Eu acho que a gente deveria é ser mais corajoso. Em relação às experiências em geral, se lançar mais. É aquela coisa que a gente tenta ensinar às crianças: que elas deveriam experimentar o que elas nunca comeram."
O que ele observa, porém, sobretudo na experiência do consultório com jovens, é que temos visto muito o contrário disso. Uma sensação de que se sonha pequeno e de que o espírito de aventura diminuiu. "Me acontece com frequência encontrar um adolescente de 15, 16 anos que, quando você questiona o que ele quer do futuro, a resposta é 'tipo eu tava pensando em, sei lá, fazer um concurso público da Receita Federal, o salário é bom, tem aposentadoria garantida, estabilidade'. São preocupações que seriam bizarras para um adolescente da minha geração. Talvez a gente tivesse também sonhos totalmente fajutos que não iam funcionar, mas a vida também é feita de sonhos desse tipo: ser oficial na legião estrangeira, trabalhar com leprosos, ou nem necessariamente o altruísmo, pode ser qualquer coisa." E a vontade de arriscar pouco hoje não se limita à profissão, abrange também os relacionamentos desses jovens. "Eu fugi de casa porque me apaixonei. Os meus pacientes adolescentes eu vejo que têm um problema em ter uma namorada em Jundiaí [interior de São Paulo] porque é complicado."
Há quem atribua a toda essa liberdade o tédio e a depressão que assombram os nossos tempos. "É possível, mas quem disse que a experiência da liberdade deveria ser hipomaníaca ou jocosa? Não. É também uma experiência de perda, de separação, de uma certa solidão quase existencial, isso faz parte da condição humana. Não tenho a pretensão, ainda menos como terapeuta, de curar o que tem de existencial na neurose ou no sofrimento."
Eu pratico com esforço, no melhor sentido
dessa palavra, a tentativa de não perder a dimensão de prazer,
inclusive sensorial, na vida de cada dia
Já a busca obsessiva por um estado de permanente felicidade, outra suspeita de sempre, não ganha muito crédito nessa história. O psicanalista, aliás, tem outra desconfiança, a de que essa obsessão não exista de fato e seja mais um conceito vendido aos indivíduos por indústrias como a cultural e a farmacêutica do que algo que eles genuinamente almejam. "É raro receber alguém no consultório que diga que veio me ver porque quer ser feliz. Se alguém responde isso numa pesquisa, acho que grande parte da resposta é produzida pela expectativa. O cara vai dizer exatamente o que ele imagina que se quer ouvir. Não estou promovendo isso como valor, mas acho mesmo que as pessoas querem ter uma vida interessante, não querem ser felizes."
Se a busca da felicidade for uma espécie de mito, outro seria a angústia de descobrir quais são os nossos reais desejos, esta, sim, bastante comum como motivação da ida ao divã, ele reconhece. A resposta, no entanto, pode decepcionar. "Eu acho que não existe o que a gente realmente deseja, acho até que a psicanálise involuntariamente vendeu essa ideia, mas não está escrito em algum lugar occipital do seu cérebro, em três neurônios, qual é o seu real desejo, aquele que você precisaria encontrar para depois realizar. Tudo bem, a gente recebe esse pedido, mas é totalmente fajuto. O que existe é o exercício do desejo que se dá em situações complexas na interação com o mundo. Então, dizer 'ah, eu me tornei jornalista, na verdade, porque tinha um amigo do meu pai e poderia ter feito outra coisa, mas tive essa oportunidade'. É assim mesmo, o desejo é assim que nasce; não é: 'ai, meu deus, qual é o meu desejo?'"
Entre uma fatia e outra de vitelo, ele relaciona, a meu pedido, seus prazeres, e começa pelo próprio prato. A lista segue com lençóis de fio egípcio, as amizades, o sexo. "Eu pratico com bastante esforço, no melhor sentido dessa palavra, a tentativa de não perder a dimensão de prazer, inclusive sensorial, na vida de cada dia. Me considero, e não acho que seja palavrão, hedonista numa época muito pouco assim. Acho que estamos num dos momentos menos hedonistas da história do Ocidente", lamenta. "Não vou dizer que, ah é legal, vamos todos voltar a fumar. Mas dizer tipo: hoje não vou transar porque às 5h30 vou correr, porque mais tarde eu vou trabalhar e... Isso é bizarro."
O sexo, esse prazer tão disponível, continua sendo um tabu. Talvez não tenha sido à toa que uma das colunas de maior repercussão do psicanalista saiu em 2006, quando explodiu na internet o vídeo em que a modelo e apresentadora Daniela Cicarelli transava na praia. O texto dele mostrava surpresa pela polêmica com o que considerava cenas de amor, absolutamente normais. Afinal quantas pessoas já não fizeram sexo na praia? O retorno sobre essa visão bem dissonante do tom escandalizado com que o vídeo foi tratado foi muito positivo e - como sempre, ele revela - bem maior entre as leitoras. São episódios como esse que revelam o quão diferente é a realidade da sexualidade no Brasil da imagem que se tem dela.
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