EUGÊNIO BUCCI*
Aliás, nem mesmo por um fio eles estão. Eles escapam de qualquer jeito,
vazam pelas redes que não têm fio nenhum, essas a que aprendemos a
chamar de wireless. Os seus segredos, prezado leitor, voam soltos pelo
ar. E pelo vácuo.
Não conte para ninguém, mas, se ainda acredita que pode resguardar sua
valiosa privacidade, bem, é melhor que você fique sabendo de um segredo
terrível: a intimidade de cada um de nós já é quase de domínio público.
Não olhe agora, mas estão vigiando você, assim como espionam todo tipo
de gente, em todas as partes do mundo. Você quer exemplos? Lá vão três:
1. O vetusto Times de Londres acaba de ser
processado sob a acusação de ter violado a conta de e-mail de Richard
Horton, um policial que mantinha um blog anônimo, que assinava apenas
com o pseudônimo de NightJack. Segundo o processo, que corre desde a
semana passada, um repórter do Times, em 2009, invadiu
ilegalmente a correspondência eletrônica de Horton e, por meio desse
crime, descobriu e revelou indevidamente a identidade do blogueiro. Nas
páginas do respeitável Times. Como a ação ainda não foi
julgada, é cedo para saber se a Justiça britânica dará ou não dará razão
a Horton. Mas não é prematuro dizer que esse processo vem complicar um
pouco mais a situação do dono do jornal, o magnata Ruppert Murdoch. A
imagem de Murdoch já tinha sido destroçada em 2011, no bojo de outro
escândalo, este envolvendo o tabloide sensacionalista News of the World, também de sua propriedade. Ficou demonstrado que o News of the World
mandara grampear ilegalmente nada menos que 4 mil correios de voz de
celulares. O vexame obrigou Murdoch a fechar as portas do tabloide. Foi
um trauma, tanto para Murdoch quanto para qualquer um que acreditasse na
inviolabilidade de sua vida íntima. Agora, o rastro de vergonha se
aproxima da reputação do Times. Pior para todo mundo.
2. Assim como os jornalistas sem escrúpulos, os
arapongas sem limites também devassam a rotina de quem quer que seja, às
vezes a serviço de cônjuges desconfiados, outras vezes sob as ordens de
governantes autoconfiantes demais. Seja em Londres, seja em São Paulo,
seja no Distrito Federal. O rentável negócio da futrica está cada dia
mais fácil, graças à falta de caráter e ao excesso de novíssimas
traquitanas tecnológicas.
3. A toda hora, pipocam debates sobre como os dois
gigantes da internet, o Google e o Facebook, armazenam dados pessoais de
seus clientes para depois usá-los em proveito dos anunciantes. Agora
mesmo, em meados de abril, o senador americano Al Franken, democrata de
Minnesota, encarregado de uma investigação sobre a privacidade dos
cidadãos, afirmou que os modelos de negócios das duas empresas são
inteiramente baseados na venda dos dados dos usuários. E arrematou:
“Você não é cliente dessas companhias; você é o produto que elas
vendem”. Claro que o Google se defende com bons argumentos, bem como o
Facebook. Este, por sinal, prometeu, há pouco mais de uma semana, que
vai informar seus usuários, em detalhes, sobre os dados que coleta a
respeito de cada um deles. Veremos.
Não vamos aqui prejulgar o Google, o Facebook, o Times. Eles
têm direito de se explicar e talvez não tenham culpa de nada. Não
prejulguemos nem mesmo os arapongas, que agem no escuro, feito ratos.
Até eles têm direito de defesa. Isto posto, não lutemos mais contra o
óbvio: a intimidade não é mais tão íntima como era no passado.
Atualmente, escancarar o que antes acontecia entre quatro paredes virou
uma febre coletiva, esporte planetário, tanto nos reality shows quanto
nas redes sociais. Mas a coisa não ficou só nisso. No embalo da cultura
exibicionista, as empresas e os governos desenvolveram técnicas
dissimuladas para capturar informações minuciosas sobre o público para
ganhar dinheiro – e voto – com elas. Sim, a plateia se embriaga em
devassar a devassidão. É o que ela deseja. Mas o poder (econômico ou
político) foi além desse desejo e começou a faturar em cima.
Parece uma bobagem desimportante, mas não é. Uma das bases da
democracia pode estar ameaçada. O que está se dissolvendo, pelos fios e
pelo ar, é o direito à privacidade. Fiquemos atentos. Nas ditaduras, a
privacidade não existe – e o Estado é perfeitamente opaco. Mas, na
democracia, o Estado tem a transparência como dever – e a vida íntima
dos cidadãos é protegida por lei. É por isso que o voto é secreto.
Alguma coisa está fora de lugar quando nossa intimidade vai assim, como
tem ido, para o espaço.---------------
* É jornalista e professor da ECA-SP
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/opiniao/eugenio-bucci/noticia/2012/04/
Imagem da Internet
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