ANTONIO GONÇALVES FILHO
A nova tradução do romance Ulysses (1922), do irlandês James Joyce,
que chega às livrarias no dia 14, consumiu dez anos de trabalho árduo do
professor da Universidade Federal do Paraná, Caetano W. Galindo,
curitibano de 39 anos que verteu para o português obras de outros
autores importantes como Thomas Pynchon, Tom Stoppard e David Foster
Wallace. É a terceira tradução brasileira do moderno épico de Joyce
(1882-1941), passado num único dia, 16 de junho de 1904, em Dublin. A
pioneira, de 1966, levou quase um ano para ser feita e foi assinada pelo
filólogo Antonio Houaiss (1915-1999), permanecendo como a única
disponível no mercado nacional até 2005. Nesse ano foi lançada a segunda
tradução, de Bernardina da Silveira Pinheiro, que dedicou sete anos à
tarefa (mais detalhes na página ao lado, em que estão reunidas as três
versões brasileiras para o início do romance). Galindo fez a primeira
versão de sua tradução antes de ler a de Bernardina Pinheiro. "E, no
caso de Houaiss, percebi muito rápido que um processo de constante
cotejo e revisão ia me deixar louco e travado".
Primeiro tradutor da obra, Houaiss previu que seu trabalho teria
desdobramentos. "Creio que o texto poderá ser melhorado por um futuro
tradutor, porque Ulysses é dessas obras que fatalmente terão duas ou
três traduções", dizia, quando alguém criticava a sua. É mesmo difícil
agradar a todos. Afinal, são 265 mil palavras reunidas em mais de 800
páginas escritas por um autor que, insatisfeito com os estilos
literários de sua época, oferece em Ulysses pastiches de muitos deles.
Não foi apenas um sarcástico ataque contra a literatura convencional que
moveu Joyce. Seu objetivo, segundo o inglês Declan Kiberd, doutorado
pela Universidade de Oxford e autor da introdução da nova edição
nacional, era mostrar que "mesmo a mais refinada literatura não deixa de
ser uma imitação paródica da experiência real da vida". O romance não
poupou nem mesmo a modernidade literária, provocando reações de
vanguardistas como D.H. Lawrence e Virginia Woolf.
"Pode-se dizer que todo Ulysses, como releitura da Odisseia, é
pastiche, mas é fundamental lembrar que o pastiche de Joyce nunca é
simplesmente ridicularizador", observa o tradutor. "Ele escrevia melhor
quando estava rindo do estilo que empregava, fazendo com que a 'paródia'
nunca fosse uma simples questão de negação".
Antes de fazer uma elegia ou um pastiche do épico Odisseia, de
Homero, com o qual estabelece uma relação analógica, Joyce abre
sobretudo um caminho para o retorno à tradição oral, seu verdadeiro
alvo, segundo Kiberd. Seu herói, Leopold Bloom, um pobre agente
publicitário, seria o correspondente nada heroico do mítico Ulisses
homerístico nessa história. Sua voluptuosa mulher, Molly Bloom, tomaria o
papel de uma nada fiel Penélope. Já o jovem escritor Stephen Dedalus
seria o correspondente moderno e laico do virtuoso Telêmaco, filho de
Ulisses. Dedalus, o alter ego literário de Joyce, diz que Deus não passa
de um grito no meio da rua e que a história é, no máximo, um terrível
pesadelo. A atração quase incestuosa do andrógino Bloom por esse filho
que não teve, representado por Dedalus, é expressa no penúltimo episódio
de Ulysses, o preferido de Joyce - em que Leopold volta para casa
acompanhado pelo jovem e os dois urinam no quintal, em meio a devaneios
sobre os astros e a trajetória do xixi.
Molly, a mulher de Bloom, tem a "palavra final" no romance. E essa
palavra é simplesmente um "sim", analisado como uma resposta ao
autoritário "eu quero" masculino por outro tradutor de Joyce, Sérgio
Medeiros (leia na página ao lado). É de Molly o solilóquio do 18.º e
último episódio de Ulysses. Nele, a técnica literária de Joyce conhecida
como "stream of consciousness" (fluxo de consciência), introduzida no
terceiro episódio - dedicado às reminiscências de Dedalus - é levada ao
paroxismo. O leitor tenta acompanhar a corrente enlouquecida do monólogo
interior de Molly, que suspeita da infidelidade do marido e sonha com
possíveis novos parceiros (ela fantasia um encontro sexual com Dedalus,
que conheceu quando criança), imaginando ainda um emprego melhor para o
marido, capaz de garantir a ela roupas mais elegantes e um estilo de
vida menos ordinário.
Uma história como essa, escrita entre 1914 e 1921 e inicialmente
publicada em capítulos no jornal norte-americano The Little Review,
estava mesmo destinada a provocar barulho. Acusado de obscenidade pela
Sociedade para a Supressão do Vício, de Nova York, por causa de um
episódio em que Leopold Bloom se masturba, o livro foi levado a
julgamento, declarado obsceno e banido nos EUA, sendo apenas publicado
em 1922, em Paris (e em 1934, na América). A edição francesa é
considerada a oficial, embora com mais de 2 mil erros e ainda assim
diferente daquela que o professor alemão de literatura Hans Walter
Gabler apresentaria em 1984, supostamente baseada nos originais do autor
- ela foi muito criticada como um patchwork de manuscritos, um tanto
infiel a Joyce, por trocar nomes de personagens e desrespeitar a sintaxe
do autor.
Certo é que Joyce não gostava muito de vírgulas e detestava hifens,
como lembra o novo tradutor de Ulysses, Caetano Galindo, mas Gabler
teria exagerado em sua edição crítica e sinóptica do romance. Essa
recusa ao hífen, diz o brasileiro, "acaba gerando a criação de várias
palavras aparentemente novas mas que são apenas uma representação
gráfica de um composto conhecido ou mesmo uma junção de substantivo e
adjetivo totalmente normal". Galindo garante que não inventou palavras.
"O que pode ser que eu tenha feito, assim como outros tradutores, foi
forçar limites possíveis da língua portuguesa e da literatura
brasileira, para criar novas combinações e novas fusões." Assim, no
terceiro episódio, o personagem Kevin Egan é descrito como alguém
"senhamor" e "senterra". No episódio 12, em que um narrador não nomeado
tenta descrever o personagem "Cidadão", o preconceituoso senhor sardento
é chamado de "sardasmuitas", "boquimensa" e "ventasgrandes". Em tempo: o
"Cidadão" é um antissemita a quem Bloom, descendente de judeus húngaros
e convertido ao cristianismo (para casar com Molly), repreende num pub,
lembrando que Cristo era da mesma etnia de seus antepassados.
Essa fixação de Joyce pelo aspecto físico dos personagens é estudada
por Kiberd na introdução do livro. Ele alude particularmente à redução
estereotípica que T.S. Eliot não conseguiu suportar no irlandês. Joyce
suspeitava que a maioria das pessoas estaria mais para tipos do que para
indivíduos. Isso não excluía seus contemporâneos companheiros de
letras. "Houve um pouco de inveja entre os escritores experimentais e
muita recusa ao lado irlandês-beberrão-tosco de Joyce, como se ele não
fosse um membro daquela elite de que eles acreditavam fazer parte e,
mais ainda, houve muita negação moral, pois Joyce era indecente,
inadequado, grosso, e ainda insistia em misturar personagens e fatos
reais no texto", analisa Galindo.
A obsessão de Joyce em descrever detalhes físicos e escatológicos
levou o irlandês a fazer de Ulysses, segundo o professor Declan Kiberd, o
"épico do corpo". Não foi outro irlandês, Oscar Wilde, o pioneiro a
apresentar o "homem feminil" na literatura, anota Kiberd, mas Joyce,
que, segundo ele, "mudou para sempre o modo como os escritores tratavam a
sexualidade".
Nem todos os leitores de Ulysses, escreve Kiberd, viram a androginia
de Bloom pelo que era. Ela não seria sinônimo de bissexualidade
(interpessoal), mas um fenômeno intrafísico, na medida em que, no caso
de Leopold, a androginia representaria muito mais um estado da mente que
do corpo. Buck Mulligan, o estudante de medicina que abre o livro,
convidando Stephen Dedalus a subir ao altar de Deus (a torre onde
Mulligan, no topo da escada, faz a barba), pensa o contrário. Desdenha
de Bloom (por ciúmes), achando que ele teria uma atração homossexual
pelo amigo Dedalus, quando este busca no garoto um camarada com o qual
poderia estabelecer uma relação paternal, serena, impossível num
casamento como o dele e Molly.
"Ela é a personagem feminina mais exuberante do século 20, construída
a partir de um dos truques literários mais triunfantes da história do
romance, quando ele decide compensar as 800 páginas androcêntricas do
livro com um único episódio dedicado a Molly", analisa Galindo. "Ele
percebeu que a única maneira de fazer isso é com a total concentração e
densidade que o monólogo direto poderia lhe dar." Já Leopold, para o
tradutor, "é simplesmente o personagem mais completo da literatura desde
Hamlet, como disse Harold Bloom". Para quem ainda considera Ulysses
criptográfico, como o personagem de Shakespeare, uma última e boa
notícia: a Companhia das Letras publica em breve um guia de leitura da
obra-prima de Joyce.
A obra foi acusada de obscena e banida nos EUA; teve a primeira edição publicada na França, em 1922
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Fonte: Estadão on line, 29/04/2012
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