Letícia Freire, da Página 22
Em meio ao caos econômico-financeiro, a economia criativa resiste.
Bandeira da geração de riqueza por meio de negócios e atividades que
valorizam questões sociais e culturais, ela se fortalece setorialmente,
atraindo cada vez mais o interesse de investidores públicos e privados.
Para John Howkins, especialista mundial em economia criativa e espécie
de guru no assunto – convidado a palestrar no Seminário Internacional de
Economia Criativa, Cultura e Negócios, em abril, em São Paulo – esse
alargamento da visão econômica tradicional traz consigo o gene de um
desenvolvimento com mais equilíbrio. “Eu acredito que na economia
criativa é possível fazer um movimento por mais expressão, colaboração e
consciência do outro.” Garantia de estabilidade ou sustentabilidade?
Para Howkins, não se trata necessariamente de solução, mas de um bom
caminho para chegar lá.
Página 22 - Como a economia criativa pode ajudar
um mundo em crise, tanto a econômico-financeira, com crescente pressão
por reforma das bases predatórias do capitalismo, quanto a crise
ambiental, uma vez que já usamos mais de um planeta e meio em termos de
recursos naturais?
John Howkins - Essa é uma pergunta complexa, grande.
Tudo está conectado, mas vou abordar dois aspectos da questão. A
primeira coisa que temos a fazer é entender a natureza da crise e, além
disso, estar atento para o papel que a criatividade e a inovação estão
desenvolvendo dentro desse cenário. Digo isso porque a economia criativa
cresceu dramaticamente nos últimos 20 anos e está oferecendo os
produtos e serviços que as pessoas querem comprar. E muitos países,
pessoas e empresas se endividaram justamente para financiar essas
atividades. Esse endividamento é uma das razões para a crise e para a
recessão que vemos atualmente, principalmente na Europa e nos Estados
Unidos. Mas esta não é a principal razão da crise. A partir daí, temos
de observar como os princípios da inovação e da criatividade podem nos
ajudar a mover para um novo estágio de desenvolvimento econômico e
social – uma nova forma de capitalismo, digamos assim. Acredito que
podemos fazer isso de duas formas.
A primeira, concentrando-se em investimentos e atividades produtivas.
É fundamental mover os recursos em nossa sociedade para aquelas
atividades que geram investimento em produtividade para o futuro.
A segunda é olhar muito cuidadosamente para as características de
trabalho das pessoas criativas. Trata-se, normalmente, de um trabalho em
pequena escala, sustentável, com considerável nível de responsabilidade
e com alto grau de engajamento, envolvimento e comprometimento.
Parece-me que muitos padrões de trabalho em economia que vemos se
desenvolver ao redor do mundo criativo são bons modelos para o futuro.
P22 – Mas como a indústria criativa está respondendo à crise?
JH – Ainda estaremos em dificuldades por mais alguns
anos. Minha sensação é de que a recuperação e o crescimento vão
acontecer em velocidades diferentes em diferentes setores. O setor de
design foi duramente atingido, principalmente na Europa e nos Estados
Unidos. Acredito que esse setor ainda vai continuar sofrendo queda.
Os setores de anúncios em jornais e revistas, que já apresentavam
baixa, continuarão caindo. Mas isso faz parte, porque seus negócios
estão migrando dos produtos físicos para serviços on-line. Anúncios em
televisão e rádio já estão em processo de recuperação e é esperado um
forte crescimento do setor para 2012.
A indústria da publicação, as editoras de livros estão sofrendo com a
competição do e-book e encontram margens muito estreitas para atuação.
Essas empresas estão enfrentando muitos e diversos problemas. Mas isso
não tem nada a ver com a recessão, isso está ligado ao sucesso da mídia
on-line, seja ela texto, música, filme, seja televisão. Nesse caso,
observa-se um crescimento cada vez mais rápido que se vem tornando –
também de forma cada vez mais veloz – rentável. O setor de artesanato,
profundamente dependente do turismo, já está apresentando melhorias.
No mais, é difícil dizer. As consequências da recessão, o tempo e a
natureza da recuperação acontecerão de forma diferente de setor para
setor.
P22 – A época nos mostra que as bases
financeiras do sistema capitalista estão frágeis. A quebradeira geral
levou milhares de pessoas às ruas, em diversas partes do globo,
indignadas. A pressão social é forte e há uma demanda clara por novas
regras para o sistema financeiro e seus atores. De certa forma, estamos
todos falando e debatendo sobre valores éticos e morais, o que é bom.
Então, pensando nessa questão dos valores, qual é a proposta da economia
criativa? Quais valores ela apresenta?
JH – A economia criativa, tanto em termos de
produção, que é o “fazer”, como em termos de consumo, que é o “usar”,
depende de que as pessoas usem a imaginação, expressem-se e normalmente
trabalhem em grupo. A economia criativa move-se, por si mesma, ao
encontro de uma sociedade mais justa.
Os princípios da economia criativa são de que todo ser humano nasceu
criativo e que ele tem o direito desenvolver livremente esse potencial.
Então, você observa imediatamente que esse é um tipo diferente de
sociedade, seja ela baseada em agricultura, seja em manufaturados. É
diferente de uma estrutura que aprisiona o ser humano, onde ele não é
autorizado a desenvolver sua personalidade, sua individualidade.
Eu acredito que, na economia criativa, é possível fazer um movimento
por mais expressão, colaboração e mais consciência do outro. Isso,
contudo, não é garantia de estabilidade ou sustentabilidade, mas é um
caminho.
P22 – Se a ideia da economia criativa está ligada ao capital cognitivo, então estamos falando de conhecimento.
JH – Sim.
P22 – E isso me faz pensar na questão da
propriedade intelectual, que é o oposto do compartilhamento e
colaboração. É como “prender” uma ideia ou se apropriar de um
conhecimento, que, por essência, é livre. Há um sério debate acontecendo
sobre essa questão. Qual a sua opinião sobre isso?
JH – O copyright está em crise. E essa
crise se dá largamente devido ao tempo que ele dura e à complexidade das
regras, as quais a internet e a mídia on-line começaram a destruir. Mas
nós precisamos de algum método por meio do qual as pessoas que
necessitam de um grande volume orçamentário para seu empreendimento,
seja um filme, televisão, seja música, possam ter expectativas razoáveis
de que eles terão um retorno justo por seu investimento. Nós precisamos
de algum sistema e no momento o que temos é o copyright. E os
princípios do copyright são bons. Mas ao longo dos anos a ideia foi
capturada por empresas que não entendem a necessidade do equilíbrio
entre propriedade intelectual e acesso público ao conhecimento.
Precisamos fundamentalmente repensar, não muito os princípios, mas a
forma pela qual isso está sendo implementado. Por exemplo, o Creative
Commons. Ele é uma licença simples do copyright que me permite publicar
minhas coisas on-line e que, ao mesmo tempo, as pessoas interessadas
copiem e compartilhem o conteúdo. Essas pessoas não precisam negociar
comigo, não precisam me pedir. E essa é uma forma maravilhosa e
inventiva de resolver um dos problemas que temos com o copyright.
Precisamos de mais soluções e de soluções mais inventivas como essa,
porque, como eu disse, o copyright é muito duro, pesado, dura muito
tempo. Embora ele sirva para um monte de coisa que fazemos, também serve
para um monte de coisas que não queremos mais fazer. É preciso
reformular isso, e urgentemente, a fim de preservar o acesso das pessoas
à cultura.
P22 – Quais os erros mais comuns que podem ser observados no desenvolvimento da economia criativa?
JH – Não sei se diria erro, mas tenho um exemplo
para te dar. A fórmula do governo britânico para a economia criativa,
que ainda está forte pelo mundo, em minha visão, é muito restritiva. Ela
dá muita atenção para uma pequena seleção de grandes indústrias
criativas, que não inclui um monte de gente. Muita gente mesmo, e gente
que tem sido muito criativa em suas próprias vidas, empresas e
organizações.
Em outras palavras, o governo britânico presta muita atenção nas
indústrias criativas e pouca atenção nos indivíduos. E meu trabalho é
analisar e pesquisar a capacidade do indivíduo em sua vida pessoal,
social e profissional de expressar suas próprias ideias e criatividade.
Mas reforço que não se trata de um erro, é uma questão de ênfase, de
foco. O meu olhar está no indivíduo, não importa onde ele ou ela
estejam.
P22 – O Brasil e os brasileiros são
frequentemente associados à criatividade. Em sua opinião, quais são os
recursos naturais da criatividade? Seria a diversidade? E como fazer bom
uso desse potencial?
JH – A diversidade é muito importante, sem dúvida.
Mas toda vez que vou ao Brasil sou capturado pelo estilo visual das
cidades, a arquitetura, os lugares públicos, o senso de cor e música que
vocês têm. Não vou falar de futebol, mas, acredite, os brasileiros
também têm uma habilidade extraordinária para fazer um design
sustentável. Existem milhares de brasileiros que trabalham com material
simples e local e produzem coisas belíssimas e inventivas. E vou
reforçar a questão da música. Vocês têm uma tradição musical muito forte
e músicas lindas da época da Tropicália. A todo tempo vocês estão
criando estilos e provocações musicais. Vocês vivem da música, isso é
fantástico.
Agora, como fazer bom uso disso? Bem, vocês terão grandes
oportunidades para explorar e mostrar todo esse potencial criativo em
dois eventos nos próximos dez anos, a Copa do Mundo e os Jogos
Olímpicos.
Este ano, você sabe, teremos em Londres os Jogos Olímpicos. Muitas
pessoas, incluindo eu mesmo, comentam sobre a questão dos altos gastos
em uma competição atlética de curta duração. Mas o que a cidade está
fazendo é colocar a ênfase do evento na cultura, em nossa cultura
olímpica.
Sei que teremos uma ótima festa e que a festa continuará por um longo
tempo, e será muito mais longa que a duração dos Jogos. E é possível
que, daqui a 10 ou 20 anos, os Jogos sejam mais conhecidos pelos eventos
culturais que acontecem durante as Olimpíadas.
Cada vez mais as pessoas se mostram interessadas na cultura do lugar,
não apenas nos Jogos. Assim, minha mensagem para vocês no Rio de
Janeiro, em São Paulo, na Bahia e em todas as outras cidades é que
apliquem algum dinheiro para ter um festival cultural extraordinário. O
mundo inteiro volta os olhos para esse momento, então, trata-se de uma
oportunidade de mostrar que tipo de país vocês querem ser.
P22 – Para além dos holofotes da Copa e das
olimpíadas, nós ocupamos posição de destaque no cenário internacional da
economia criativa?
JH – Vocês estão indo bem e, conforme a economia
cresce, a fatia da economia criativa também tende a crescer. Reforço que
vocês têm indivíduos extremamente criativos nas mais diversas áreas.
Claro que há dificuldades, especialmente pela competição internacional,
e, em alguns setores específicos, pela concorrência da mídia on-line.
Mas existe, em minha opinião, um subaproveitamento dessa capacidade
criativa e inventiva e são muito os fatores para isso, mas, no geral,
vocês são muito conhecidos e respeitados pela habilidade criativa.
P22 – E quando foi, na sua vida, que você começou a olhar a economia com olhos criativos?
JH – Eu acredito que sempre tive a percepção da
criatividade, mas foi na juventude que fiquei realmente interessado na
mecânica, no funcionamento da atividade. No começo, eu estava muito
envolvido com o conceito da internet e com processos computacionais, mas
sempre achava que faltava algo. Faltava ali algum ativo criativo
individual, algo que todos nós temos. Comecei, então, a pesquisar essa
demanda criativa, essa resposta inventiva do conhecimento. Minha
intenção era saber como as pessoas respondem ao conhecimento, não sobre o
conhecimento em si mesmo. Eu também queria saber mais sobre essa
dinâmica de resposta ao conhecimento – entender como as pessoas se
expressam diante desse know-how. A partir daí, essa multiplicidade faz
parte da minha vida.
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Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/caminhos-mais-criativos/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje
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