Leonardo
Boff sugere uma mudança de comportamento da sociedade global a fim de
que a vida na Terra
fique ainda mais comprometida/Foto: Divulgação
Em entrevista exclusiva ao EcoD, o teólogo, escritor e professor Leonardo Boff afirmou que
a sustentabilidade real supõe um outro paradigma de relação para com a
natureza. "A prosseguir esta voracidade, vamos ao encontro de um
colapso", alertou o pensador, que é um dos redatores da Carta
da Terra.
Sobre a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável
(Rio+20), Boff destacou que "não espera nada" dos chefes de Estado.
Na opinião dele, as discussões mais importantes serão promovidas na Cúpula dos
Povos, evento paralelo à conferência marcada para junho, no Rio de Janeiro.
Recentemente, Leonardo Boff lançou o livro Sustentabilidade: o que é
o que não é (Editora Vozes), no qual expõe o que pensa sobre o tema, além
de analisar as visões deturpadas de governos, empresas e demais organizações
que tornaram o desenvolvimento sustentável como mais um objeto do senso comum,
de acordo com seus interesses. O autor também faz um histórico do conceito
desde o século 16 até os dias atuais, submetendo a uma rigorosa crítica os
vários modelos existentes acerca do assunto.
EcoDesenvolvimento.org: O título do seu mais novo trabalho, Sustentabilidade:
o que é e o que não é, sugere que muitas pessoas e organizações deturpam o
verdadeiro conceito de desenvolvimento sustentável. De que forma o senhor
entende a sustentabilidade?
Leonardo Boff: A sustentabilidade real supõe um outro paradigma
de relação para com a natureza. Hoje predomina ainda a relação meramente
utilitarista, como se ela apenas existisse para atender às nossas necessidades.
Esquecemos que nós somos parte da natureza e que ela não é composta apenas
pelos seres humanos. Todos os seres são interdependentes e formam a comunidade
de vida. A rede, que desta conectitividade se deriva, é responsável pelo
equilíbrio da vida e do planeta.
A sustentabilidade só ocorre quando garantimos esse equilíbrio de forma
que nossas demandas e aquelas dos demais seres vivos sejam atendidas, os bens e
serviços naturais possam ser mantidos e até enriquecidos e ainda entreguemos às
gerações futuras um planeta habitável. Nesse sentido, quase nada do que fazemos
em nossa atual sociedade é sustentável, pois implica sempre estresse da natureza
e dificulta que ela se regenere.
O senhor concorda que o meio ambiente tem sido comumente tratado como
algo secundário e periférico?
Para as empresas e para os grandes projetos, os custos ambientais, a
poluição do ar, a contaminação das águas e outros danos à natureza são
considerados externalidades - vale dizer, não entram na contabilidade dos
negócios. Hoje, o nível de degradação geral do sistema-vida e do sistema-Terra
é de tal ordem que pode impossibilitar a reprodução dos negócios e, no limite,
pôr em risco a própria existência humana. A maioria das pessoas, especialmente
os empresários e gente de governo são analfabetos ecológicos.
Como assim?
Eles vivem na ilusão de que a Terra é uma espécie de baú inesgotável.
Porém já tocamos nos limites dela. A Terra precisa de um ano e meio para repor
o que tiramos para o nosso consumo de um ano. A prosseguir esta voracidade,
vamos ao encontro de um colapso. A Terra é um superorganismo vivo, Gaia, que se
autoregula. Ao contrário, começam fenômenos extremos que estamos assistindo
pelo mundo afora, grandes estiagens de um lado e severos invernos de outro ou
verdadeiros tsunamis de enchentes devastadoras.
No artigo Sustentabilidade: tentativa de definição, o senhor
defende que a sustentabilidade precisa ser ampla e integradora, sob o risco de
não passar de pura retórica sem consequências. Onde nós podemos identificar
exemplos de que estão tratando a sustentabilidade dessa forma deturpada?
Praticamente grande parte daquilo que vem apresentado como sustentável
não o é. Não basta apresentar um produto sustentável apenas na fase final do
ciclo de vida. Geralmente o processo de extração, produção, consumo e descarte
são insustentáveis. O etanol, por exemplo, é limpo apenas na hora do
abastecimento. O processo de produção, que exige pesticidas, transporte que
queima energia fóssil, os rejeitos não aproveitados e a contaminação das águas
revelam que é altamente poluente. As empresas
se entendem sustentáveis porque conseguem se manter no mercado e resistir à
concorrência, mas não computam os estragos que fazem na natureza para
produzir seus produtos, os salários baixos que pagam aos funcionários (ecologia
social) e a forma como tratam os dejetos.
E o quê o senhor sugere?
Mudar a forma de produção, respeitando os ciclos da natureza. Buscar uma
economia da não acumulação, mas sim de uma produção suficiente e decente para
todos.Esta exigência supõe um outro paradigma de civilização, uma forma
diferente de habitar o planeta, não estando em cima dele dominando-o, mas ao pé
dele, convivendo. Ou fazemos tal mudança ou então iremos irrefragavelmente ao
encontro do pior, de uma situação sem retorno. A questão é de vida ou de morte
para a espécie humana.
"A maioria das pessoas, especialmente os empresários e gente de
governo são analfabetos ecológicos. Vivem na ilusão de que a Terra é uma
espécie de baú inesgotável"
- Leonardo Boff.
Estamos a cerca de dois meses da Rio+20. De que forma o senhor vê a
realização desta conferência 20 anos após a Rio-92? Existem avanços e regressos
que mereçam ser destacados nesse intervalo de duas décadas?
No que diz respeito aos chefes de Estado eu não espero nada. Os países
centrais estão em profunda crise econômico-financeira e então protelarão as
decisões, como as que já foram anunciadas em Cancún [COP-16] para 2020. Ocorre
que a situação global pode se deteriorar de tal forma, especialmente, se
ocorrer o temido aquecimento abrupto anunciado por inteiras comunidades científicas,
como a norte-americana, segundo a qual a temperatura da Terra, nos próximos
decênios, poderá se elevar 4 graus Celsius. Se isso ocorrer, advertem, grande
parte da vida como a que conhecemos não vai subsistir e porções imensas da
humanidade poderão desaparecer.
O importante será a Cúpula dos Povos e o encontro dos movimentos sociais
mundiais que ocorrem paralelamente ao evento oficial, pois aí se farão as
verdadeiras discussões e serão apresentadas experiências bem-sucedidas, que
mostram que o mundo pode ser diferente. De todos os modos haverá um crescimento
notável da consciência de nossa responsabilidade pelo futuro comum, da espécie
humana e da natureza.
Há quem defenda que a Rio+20 deva privilegiar o aspecto ambiental, sob
pena de perder o foco nas discussões. Outra corrente, defendida pelo próprio
governo brasileiro, prega que os fatores econômicos e, sobretudo, sociais,
também precisam ser abordados com grande ênfase. Qual é a sua opinião?
Precisamos superar o reducionismo que ocorreu na discussão de assuntos
ecológicos. existe também a ecologia social, quer dizer, as formas como as
sociedades se relacionam com a natureza e garantem o acesso aos bens e serviços
necessários à vida nossa e dos demais seres vivos. Aqui vivemos tempos de
barbárie. Pois está ocorrendo uma corrida desenfreada para pôr preço em tudo,
especialmente, nos commons, bens comuns como água, sementes, alimentos,
ar puro, energia, educação, saúde, fibras e outros, privatizando-os. A vida e o
que pertence diretamente à ela não pode virar mercadoria e estar à mercê da
especulação. Hoje ocorre uma acumulação de riqueza em poucas mãos como nunca
houve antes na história. Praticamente não existem países ricos, mas grandes
corporações riquíssimas que detém mais renda que países inteiros. Três grandes
multinacionais detém mais ingressos que 46 países onde vivem 600 milhões de
pessoas. Essa questão da justiça social combinada com a justiça ecológica tem
que ser posta, como o faz inteligentemente Ladislau Dowbor e Ignacy Sachs.
"Enquanto não mudarmos nossa forma de produção, não teremos uma
sustentabilidade garantida"
- Leonardo Boff.
Como funcionam as ecologias mental e integral?
A ecologia mental é o tipo de visão de mundo, de valores e princípios
que regem nossas práticas. Os conteúdos são antropocêntricos, utilitaristas,
individualistas, materialistas, muito pouco cooperativos e altamente
competitivos. Com esses valores, dificilmente se construirá uma sociedade com
rosto humano. Por fim, há uma ecologia integral que percebe a Terra como parte
de um vasto universo em evolução e que estamos sustentados pelas energias que
ordenam o universo e nossas vidas. Tomar isso em conta faz com que nos sintamos
parte de um todo maior. Desenvolvemos o sentimento de reverência e de respeito,
fundamentais para uma relação não agressiva para com a natureza. Essa visão
mais abrangente está praticamente ausente nas discussões, o que mostra como nos
falta a consciência necessária para equacionar os problemas globais da Terra e
da humanidade.
O senhor já escreveu que o "mundo vive uma crise de ética" e
que precisamos "reinventar um novo modo de estar no mundo". O que
sugere para evitarmos as tragédias ambientais e humanitárias?
Ninguém possui uma fórmula salvadora. Ela deverá nascer das experiências
positivas dos povos e das muitas tradições culturais da humanidade. O que
podemos sempre fazer é começar conosco mesmo. Se não podemos mudar o mundo
todo, podemos, no entanto, mudar este pedaço de mundo que sou eu mesmo. O que eu fizer corretamente não fica restrito a mim.
Qual é a sua opinião sobre a postura do governo brasileiro em relação ao
desenvolvimento sustentável?
Vejo que o governo brasileiro não toma suficientemente a sério a questão
ecológica mundial. Não há consciência de nossa importância. Persegue-se um
sonho já envelhecido e refutado pela prática de um crescimento sem limites
implicando a devastação de nossas florestas e a contaminação de nossas águas e
a destruição de nossa imensa biodiversidade. É lamentável constatar esse fato.
A Terra pode continuar sem o Brasil e sem nós. Mas nós não podemos continuar
sem a Terra.
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Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=66033
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