Matheus Pichonelli*
Shame
Nas mãos do diretor, a realidade conhecida por quem vive nas grandes cidades
se transforma em prisão domiciliar
A
letra é a mesma. A cidade também. Mas há tanta dor na versão de “New
York, New York” interpretada por Sissy Sullivan, personagem de Carey
Mulligan no dilacerante “Shame”, que o som nem de longe remete à música
festiva imortalizada por Frank Sinatra.
A ideia da conquista, do alcance do topo do topo do mundo,
parece se dissolver numa melodia chorada, de quem sabe ter conseguido
tudo o que quis e confessa “abestalhado” a decepção – como em outra
música, em bom português, espécie de avesso do clássico nova-iorquino.
Enquanto ouve a irmã cantar, num piano bar de Nova York,
Brandon (Michael Fassbender) emite um dos raros sinais de uma
sensibilidade escondida em cada poro do corpo. É só a primeira das
muitas rachaduras de uma parede de concreto prestes a ser arrebentada no
filme de Steve McQueen.
Nas mãos do diretor, a realidade conhecida por quem vive nas grandes
cidades se transforma em prisão domiciliar – e deixa o filme mais
próximo do terror que de um drama em família.
Brandon é o típico modelo padrão das revistas para executivos –
daquelas que estampam nas suas capas os talentos promissores, vaidosos,
bem vestidos e bem penteados, posando no topo de um escritório de onde
se enxerga a cidade inteira. Que parece postada a seus pés.
Vendo-o, é possível imaginar as fileiras de executivos bem-sucedidos
que vemos todos os dias pelas ruas – que descem de suas baias, a certa
hora do dia, e saem para falar sobre trabalho em rodas de Bolinha e
Luluzinha nas mesas de bar e baladas de meio de semana. É o terreno onde
se reproduzem os yuppies que caíram no conto da Você S.A.
Brandon anda em grupo, é amigo do chefe e ainda está na fase da
“azaração”. Mas se revela, de perto, um ser incomunicável em plena
cidade grande – que, em tese, parece pouco propícia à solidão. É
daqueles jovens envelhecidos que ninguém sabe direito com que trabalha,
numa empresa que ninguém sabe para que serve, mas que rende, de alguma
forma inexplicável, rios de dinheiro (ou o suficiente para alugar uma
sede no alto de uma avenida principal).
Sissy Sullivan, personagem de Carey Mulligan, em sua versão de New York, New York
Mas a sensação é que em cada canto da cidade filmada por McQueen há uma pergunta gritando:
“Ok, vocês venceram, mas e agora?”.
A falta de propósitos de uma geração aparentemente obstinada com a
ideia de sucesso e rompimento com vínculos coletivos parece encarnada no
roteiro casa-trabalho-bar-azaração-casa de Brandon. Ele é
fruto de uma ordem social recente que diz: para ser alguém, é preciso
desatar os laços com uma vida de dependências afetivas, morais,
religiosas e financeiras.
No filme, Brandon se mostra um conquistador incorrigível, capaz
unicamente de encontrar prazer nos desafios que se propõe e mal duram um
dia. Quando alcança, é hora de propor novos desafios. Como um jovem
normal, embora na casa dos 40, ele gosta de revistas, filmes e programas
eróticos na internet; de vez em quando, sai para pirar e se envolver
com mulheres desconhecidas ou prostitutas. A virilidade é mantida à base
de poucas palavras, muito desprezo explícito por compromissos,
exercícios físicos rotineiros e carreiras de cocaína.
A obsessão do personagem pelos prazeres efêmeros das ruas
nova-iorquinas levou a crítica especializada a descrever Brandon como um
“viciado em sexo”. Pode ser – e muitos dirão que ele é só uma pessoa
normal filmada de perto. Mas o filme não é sobre essa obsessão, mas
sobre o vazio no qual Brandon está atolado, junto com sua incapacidade
de lidar com suas fragilidades, seus tédios, seus medos e suas
contradições. Incapacidade que vem à tona quando passa muito tempo ao
lado de qualquer pessoa; a única, além dele, que pode descobrir seus
próprios limites.
Brandon, como tantos, acreditou que poderia ser o super-homem em voo
solo, e sua rejeição a qualquer forma de vida fora a dele é nada mais
que o medo de se revelar um homem…comum.
Em seu famoso poema “Cidadezinha Qualquer”, Carlos Drummond de
Andrade descreve a frivolidade de uma vida devagar entre bananeiras,
laranjeiras e janelas. E, aparentemente longe da saudade daquela vida,
quando sua história era mais bonita que a de Robinson Crusoé, conclui:
“Êta vida besta, meu Deus”.
Na virada do século XX, a ordem era caminhar para as grandes cidades,
aceitar grandes desafios, promover grandes feitos. Criaram assim uma
multidão de gente solitária e carente como resultado do que o sociólogo
Eric Klinenberg, da Universidade de Nova York, chama de “inflexão
histórica”: a solidão, antes motivo de repulsa, hoje é cultivada como
valor (mais sobre o assunto na última coluna de Thomaz Wood Jr.).
O resultado é um isolamento voluntário em apartamentos locados (ou
financiados) para o convívio de uma pessoa só. E multiplicados em
multidões que toparam colocar os próprios voos e carreira em primeiro
plano, maldizendo as vontades que não podem ser adiadas, e queixando-se
da metade da vida em diante por não ter uma só ideia original que possa
fazer a vida de alguém melhor.
Numa das muitas cenas emblemáticas do filme, Brandon joga na cara da
irmã as suas conquistas: ele conseguiu tudo sozinho, enquanto ela, que
não tem para onde ir, é chamada de “parasita”. A ordem do mundo atual
parece resumida naquela fala: você pode ser desprezível, desde que não
incomode ninguém; mas depender de favores, jamais.
Há, no entanto, um preço caro a ser pago por termos aprendido demais a
cuidar da gente e de mais ninguém: a repulsa e o tédio um dia viram
contra o feiticeiro. E, de repente, ninguém consegue ficar mais de dois
minutos perto de nós sem se entediar ou sentir repulsa.
Parece uma boa troca.
Como Brandon, migramos para a cidade grande em busca de sonhos e desafios, a exemplo do eu-lírico
de Sinatra. Diferentemente dos cidadãos “comuns”, que acreditamos serem
desinteressantes e desinteressados, vivemos sob adrenalina, com um
mundo aberto ao redor, com seus movimentos próprios, fugacidades,
instabilidades e desafios ao alcance das mãos. Faltou alguém dizer: nada
disso evita o vazio dos fins de tarde. Êta vida besta, meu Deus.
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* Formado em jornalismo e ciências sociais, é subeditor do site e repórter da revista CartaCapital desde maio de 2011.
FONTE: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-exercito-de-homens-sos/ 11/04/2012
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