Paulo Moreira Leite *
Confesso que fico envergonhado com a insistência de muitos
advogados da democracia racial em apresentar a miscigenação da sociedade
brasileira como a demonstração definitiva de que os portugueses e seus
descendentes brancos não possuíam uma cultura de caráter racista.
Eu acho que a miscigenação criou pessoas bonitas, trouxe muitos
benefícios a população brasileira e deve ser celebrada pelos motivos
verdadeiros.
Ajudou a valorizar a cultura negra e enriqueceu nossa maneira de
olhar o mundo e perceber que somos parte de um universo mais amplo, que
envolve toda a humanidade.
Mas é absurdo tentar apresentar o acasalamento de brancos e negros
(em temos históricos, em 99,99% dos casos, brancos e negras, o que já
quer dizer alguma coisa) como “prova” que não somos um país racista.
Não há relação entre as coisas. O racismo e outros sentimentos de
ódio nunca impediram relações sexuais entre pessoas que de nações
diferentes e até inimigas.
A crônica final de todas as guerras da humanidade inclui milhares de
casos de estupro da população feminina pelas tropas vencedoras,
permitida por uma situação de força.
Alguém vai falar em miscigenação na Bósnia? Ou na Europa depois da chegada dos russos? Ou na Polônia após a invasão nazista?
Não. Mas falamos em miscigenação de forma positiva no Brasil. Dizemos
que é uma demonstração do espírito aberto e desprovido de preconceito
do branco brasileiro. A miscigenação seria, nessa visão, o ponto
essencial de nossa democracia racial, pois envolve a família. Bobagem.
Gostaria que alguém apontasse uma diferença, essencial, entre uma
escrava deitar-se com o seu senhor e uma mulher de um país vencido numa
guerra fazer o mesmo com tropas invasoras.
Além de costumes, comportamentos, geografias e etc, a verdadeira
diferença reside no olhar que compara os dois fenômenos. Fomos
habituados a olhar para a escrava negra como uma mulher disponível, que
gostava de seduzir o senhor. Não se enxerga aí uma relação determinada
por uma violência absoluta contra uma população arrancada de seu país de
origem, destituída de sua família e de sua cultura, sem direitos
elementares.
Imagina-se a sedução, o desejo, até amor, quando havia um massacre prolongado, permanente, que durou séculos.
Essa visão preconceituosa é um produto histórico do cativeiro, uma cultura criada pelo olhar do senhor.
Muitos senhores de cativos gostavam de culpar as mulheres negras por
deitar-se com elas. Diziam que eram provocantes, sedutoras,
irresistíveis. Em mais um gesto que prova que podia ter idéias erradas
mas não era desprovido de bom senso, Gilberto Freyre chegou a denunciar o
preconceito vergonhoso de um médico brasileiro que, num Congresso em
Paris, culpou a “lubricidade simiesca” das escravas negras pela expansão
das doenças venéreas no país.
Na verdade, lembrou o antropólogo, as doenças se espalhavam porque
muitos cidadãos brancos, contaminados por sífilis, gostavam de acreditar
na lenda de que precisavam deitar-se com uma “negrinha virgem” para
serem curados. Assim, justificavam suas investidas contra cativas ainda
adolescentes.
Celebrar a miscigenação como “prova” do espírito democrático implicar
em imaginar que, na cama, a escravidão pudesse desparecer por encanto.
Vamos combinar que nem Reich e outros profetas da revolução sexual
pensaram nisso….rsrsrsrsrsr
Do ponto de vista branco, a mulher escrava servia para o sexo. Mas não tinha direito a casamento nem a formar família.
Pode haver maior demonstração de preconceito?
Como assinala o professor Alfredo Bosi, “a libido do conquistador
teria sido antes falocrática do que democrática na medida em que se
exercia quase sempre em uma só dimensão, a do contacto físico: as
escravas emprenhadas pelos fazendeiros não foram guindadas, ipso facto, à
categoria de esposas e senhoras de engenho, nem tampouco os filhos
dessas uniões fugazes se ombrearam com os herdeiros ditos legítimos do
patrimônio de seus genitores. As exceções, raras e tardias, servem
apenas de matéria de anedotário e confirmam a regra geral. As atividades
genésicas intensas não têm conexão necessária com a generosidade
social. ( “Dialética da Colonização,” página 28).
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*Jornalista desde os 17 anos, foi diretor de redação de ÉPOCA e do Diário
de S. Paulo. Foi redator chefe da Veja, correspondente em Paris e em
Washington
Fonte: http://colunas.revistaepoca.globo.com/paulomoreiraleite/28/04/2012
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