Pesquisa revela que a maioria dos estudantes do ensino médio não vê a fé como barreira à aceitação da teoria evolutiva de Darwin
Marcos Müller/AE
Futuro? Uma interpretação mais elástica das doutrinas religiosas e mais sensível à ciência
A maioria dos jovens brasileiros vive em paz com suas
crenças religiosas e a ciência da teoria evolutiva. Tem fé em Deus e, ao
mesmo tempo, concorda com as premissas estabelecidas por Charles Darwin
mais de 150 anos atrás, de que todas as espécies da Terra - incluindo o
homem - evoluíram de um ancestral comum por meio da seleção natural. É o
que sugere uma pesquisa realizada com mais de 2,3 mil alunos do ensino
médio no País, coordenada pelo professor Nelio Bizzo, da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (USP).
A conclusão flui de um questionário sobre religião e ciência
respondido por estudantes de escolas públicas e privadas de todas as
regiões do País, com média de 15 anos de idade. A base de dados e a
metodologia usadas na pesquisa foram as mesmas do Programa Internacional
de Avaliação de Alunos (Pisa), segundo Bizzo, para garantir que os
resultados fossem estatisticamente representativos da população
estudantil brasileira. “É o primeiro dado com representatividade
nacional sobre esse assunto para esta faixa etária”, diz o educador, que
apresentou os dados pela primeira vez neste mês, em uma conferência na
Itália.
“Ainda vamos fracionar e analisar mais profundamente as estatísticas,
mas já dá para perceber que os alunos religiosos brasileiros são bem
menos fundamentalistas do que se esperava”, avalia Bizzo, que também é
formado em Biologia e tem livros e trabalhos publicados sobre a história
da teoria evolutiva. “É surpreendente. Algo que sugere que no futuro
teremos uma população com uma interpretação mais elástica das doutrinas
religiosas e mais sensível à ciência.”
Aos 15 anos, diz Bizzo, os jovens estão passando por uma fase de
definição moral, em que consolidam suas opiniões sobre temas
fundamentais relacionados à ética e à moralidade. “É um período crucial.
Dificilmente os conceitos de certo e errado mudam depois disso.”
O questionário apresentava aos alunos 23 perguntas ou afirmações com
as quais eles podiam concordar ou discordar em diferentes níveis. Mais
de 70% disseram que se consideram pessoas religiosas e acreditam nas
doutrinas de sua religião (52% católicos e 29% evangélicos,
principalmente, além de 7,5% sem religião). Ao mesmo tempo, mais de 70%
disseram que a religião não os impede de aceitar a evolução biológica; e
58%, que sua fé não contradiz as teorias científicas atuais. Cerca de
64% concordaram que “as espécies atuais de animais e plantas se
originaram de outras espécies do passado”.
Só quando a evolução se aplica ao homem e à origem da vida, as
respostas ficam divididas. Há um empate técnico, em 43%, entre aqueles
que concordam e discordam que a vida surgiu naturalmente na Terra por
meio de “reações químicas que transformaram compostos inorgânicos em
orgânicos”. E também entre os que concordam (44%) e discordam (45%) que
“o ser humano se originou da mesma forma como as demais espécies
biológicas”.
Sensibilidade. Os pesquisadores chamam atenção para o
fato de que nenhuma das respostas que seriam consideradas
fundamentalistas, do ponto de vista religioso, ultrapassam a casa dos
29%, porcentagem de entrevistados que se declararam evangélicos
(denominação em que a rejeição à teoria evolutiva costuma ser mais
forte). Apenas em dois casos elas ultrapassam 20%: entre os alunos que
“discordam totalmente” que o ser humano se originou da mesma forma que
as outras espécies (24%) e que os primeiros seres humanos viveram no
ambiente africano (26%).
“A porcentagem dos que rejeitam completamente a origem biológica do
homem é menor que a de evangélicos da amostra, o que é uma surpresa, já
que os evangélicos no Brasil costumam ser os mais fundamentalistas na
interpretação do relato bíblico”, avalia Bizzo. “A teoria evolutiva é
talvez a coisa mais difícil de ser aceita do ponto de vista moral pelos
religiosos. Mesmo assim, os dados mostram que a juventude brasileira é
sensível aos produtos da ciência.”
Divulgada em 1859, com a publicação de A Origem das Espécies, a
teoria evolutiva de Charles Darwin propõe que todos os seres vivos têm
uma ancestralidade comum, e que as espécies evoluem e se diversificam
por meio de processos de seleção natural puramente biológicos, sem a
necessidade de intervenção divina ou de forças sobrenaturais - um
conceito amplamente confirmado pela ciência desde então.
Apesar de ser frequentemente (e erroneamente) resumida como “a lei do
mais forte”, a teoria evolutiva é muito mais complexa que isso. A
Origem das Espécies tinha 500 páginas, e Darwin ainda considerava isso
muito pouco para explicá-la. Desde então, com o surgimento da genética e
o desenvolvimento de várias outras linhas de pesquisa evolutiva, a
complexidade da teoria só aumentou, dificultando ainda mais sua
compreensão - e, possivelmente, sua aceitação - pelo público leigo.
“O problema é que a maioria dos estudantes - ainda mais com 15 anos -
não tem muita clareza sobre o que está envolvido na teoria darwiniana.
Com isso há o potencial de surgirem respostas contraditórias”, avalia o
físico e teólogo Eduardo Cruz, professor do Departamento de Ciência da
Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Isso não tem
a ver com a qualidade da pesquisa, mas com a pouca compreensão de temas
tanto científicos quanto teológicos. Além do que, quando se trata de
perguntas que envolvem a intimidade das pessoas, as respostas nem sempre
são confiáveis. É como perguntar a rapazes de 15 anos se ainda são
virgens.”
Aceitação. Uma pesquisa nacional realizada pelo Datafolha em
2010, com 4.158 pessoas acima de 16 anos, indicou que 59% dos
brasileiros acreditam que o homem é fruto de um processo evolutivo que
levou milhões de anos, porém guiado por uma divindade inteligente. Só 8%
acreditam que o homem evoluiu sem interferência divina. Os dados também
mostram que a aceitação da teoria evolutiva cresce de acordo com a
renda e a escolaridade das pessoas - o que pode ou não estar relacionado
a uma melhor compreensão da teoria.
“Há uma discussão se a aceitação depende do entendimento, e uma
análise mais precisa será realizada, mas uma análise superficial dos
dados não encontrou essa correlação”, afirma Bizzo sobre sua pesquisa,
financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e pela Faculdade de Educação da USP. “Há indícios de
que a compreensão básica seja acessível a todos e que a decisão de
concordar que a espécie humana surgiu como todas as demais não depende
de estudos aprofundados na escola.”
Para a filósofa e educadora Roseli Fischmann, os resultados da
pesquisa são “compatíveis com a capacidade dos jovens de viver o mundo
de descoberta da ciência sem abalar sua fé”.
“A fé, se bem sustentada, não é ameaçada pelo conhecimento
científico”, diz Roseli, coordenadora da Pós-Graduação em Educação da
Universidade Metodista e professora da USP. “Sozinhas, nem a ciência nem
a religião garantem que o ser humano seja bom e que o bem comum seja
alcançado. É preciso a presença da ética, do respeito a todo ser humano,
da consciência da responsabilidade individual na construção do bem
comum.”
Pensar de forma analítica reduz fé em Deus, diz estudo
Pensar de maneira mais analítica induz as pessoas a acreditar menos em Deus, segundo um estudo publicado na edição passada da revista Science. Os pesquisadores, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, submeteram cerca de 180 alunos de graduação a uma bateria de testes e questionários e descobriram que, ao forçar os estudantes a pensar de forma mais analítica sobre algum assunto, esse raciocínio influenciava a sua fé, tornando-os menos religiosos.
Acredita-se que o cérebro humano tem dois “modus operandi” para
processar informações e tomar decisões: um mais intuitivo e outro mais
analítico. Os resultados do estudo sugerem que a religiosidade flui do
modo intuitivo e perde força à medida que as pessoas são forçadas a
pensar de modo mais analítico.
Em um dos testes aplicados, os alunos eram apresentados com problemas
matemáticos que tinham uma resposta intuitiva errada e uma resposta
analítica correta. Depois, respondiam a um questionário sobre sua fé e
religiosidade. Os alunos que resolviam os problemas de forma analítica
relatavam acreditar menos em Deus.
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Reportagem por Herton Escobar, de O Estado de S. Paulo
Fontes: Estadão on line, 28/04/2012
IHU on line, 30/04/2012
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