Carros particulares já ocupam 25% do espaço urbano de SP. Um
colapso é previsível e bastante provável, e tudo indica que devemos
mudar nossas mentalidades, assim como fizemos com o cigarro
Por Maristela Bleggi Tomasini
A quarta parte do espaço público da cidade de São Paulo é ocupada por
veículos particulares. Isso, sem dúvida, ocorre em detrimento da
utilização desse mesmo espaço para finalidades mais socializadoras e
menos individualistas. Contudo, a expectativa de que esse quadro possa
mudar parece estar na dependência de fatores pouco discutidos. Não se
trata apenas de criar regras que forcem a socialização dessa porção
física da maior cidade do Brasil; trata-se de mudar uma mentalidade que
reserva ao automóvel um espaço no imaginário talvez até bem maior do que
esses 25%.
Carro simboliza liberdade, independência; ele confere, ao seu feliz
proprietário, atributos altamente desejáveis. Não obstante tratar-se de
um bem indispensável ao desempenho das atividades profissionais de boa
parte da população, ser dono de um automóvel é um objetivo a ser
alcançado na vida, uma conquista não menos almejada que a casa própria
ou o diploma. Quanto mais sofisticado é o carro, maior o ganho social.
Ter um automóvel atesta competência, inteligência, sagacidade, dá status
e faz crer que seu possuidor é até mais atraente, mais bonito, mais
desejável.
“Que carro você tem?” – é uma pergunta que muita gente faz aos
outros, e até a si mesmo, simplesmente porque o automóvel exerce
fascínio, atrai, conquista, encanta, é fetiche. Seu carro define quem
você é. É, pois, objeto de desejo e, como tal, integra a própria
personalidade do adquirente. Aquele que se torna dono de um carro
adquire um diferencial social, cresce aos seus próprios olhos e aos
olhos dos outros. Há tempos, o carro desfruta de personalidade.
Tornou-se membro da família e reclama espaço, espaço este que vem
conquistando cada vez mais, até chegar a esta quarta parte de São Paulo
da qual estamos falando.
Pensar em fazer recuar essa conquista
espacial do automóvel implica numa mudança de mentalidade. Até lá, os
25% permanecem ou mesmo avançam, visto que refletem tão-só um espaço
imaginário, simbólico, que tem a ver com a própria imagem social
incansavelmente procurada em uma sociedade voltada ao consumo, uma
sociedade onde não ter carro nos expõe até mesmo à discriminação. Não
ter casa própria ou diploma é compreensível, mas não ter nem mesmo um
carrinho usado é imperdoável. Não dispor de uma Brasília amarela e,
naturalmente, a mina para levar à praia, é ser muito, mas muito pobre, é
algo que faz mal para a saúde social do sujeito: sua imagem e sua
autoimagem sofrem com isso. Daí as coisas serem como são: a quarta parte
do espaço urbano toda ela reservada para eles, os automóveis, e seus
felizes proprietários.
Cigarros e mentalidades
Tentador especular sobre isso. Mentalidades mudam, oras. É
complicado, mas mudam. Vejamos um caso. Com o cigarro aconteceu uma
mudança bastante significativa, mudança que se refletiu na diminuição do
espaço urbano reservado ao fumo. A lei ajudou, ao editar as proibições e
ao atribuir pesadas multas aos infratores. Contudo, lei é reforço, não
resolve nada sozinha, apenas pelo fato de vigorar. Caso contrário, não
haveria mais crimes, para os quais ela reserva as penas mais graves. A
lei ajuda, reforça, mas não transforma mentalidades.
O que mudou então em relação ao cigarro? A edição de leis, somente?
Não. Mudou a mentalidade. Esta nova mentalidade trouxe consigo uma
considerável diminuição no status social do fumante. Ele perdeu charme,
perdeu encanto, deixou de ser desejável, quando os atributos de
elegância e de refinamento associados ao hábito de fumar foram sendo,
pouco a pouco, alterados. Não demorou tanto tempo assim para que isso
viesse a se refletir justamente no espaço urbano reservado aos fumantes e
aos seus cigarros, uma vez que, até então, não se concebia um sem o
outro, assim como hoje não se concebe o proprietário sem o equivalente
espaço para seu automóvel. Ambos são como se fossem um, definindo-se
reciprocamente: o carro que você tem diz quem você é.
Assim como o automóvel desfruta hoje de um verdadeiro culto, o
cigarro também teve os seus dias de glória. Havia cinzeiros em aviões,
em restaurantes, havia refinadas cigarreiras, piteiras, designers
sofisticados para embalagens e mesmo cigarros 120 mm, coloridos,
envoltos em anéis dourados. Fumar era muito chique. Fumar fazia
diferença: era coisa de adulto, de gente grande, decidida, independente,
que se impunha socialmente. Fumar passava uma mensagem de firmeza,
decisão e determinação. Até o inesquecível 007 fumava antigamente. Que
fim levou tudo isso? Nem mesmo o saudosismo conseguiu restaurar o velho
charme de fumantes tão encantadores quanto os mais famosos astros de
cinema. Acabou. No máximo, a sociedade tolera os fumantes, esses
infelizes, coitados.
A mentalidade mudou. Não fumantes continuaram assim depois de
adultos, e adultos fumantes abandonaram o triste vício, tornando-se os
heróis que conseguiram “vencer” o hábito. Como todos os heróis, passaram
a ser imitados. A imitação se propagou, as campanhas publicitárias
fizeram outra vez o seu papel, agora na contramão, e finalmente a lei
veio como reforço, para dar um basta frente aos resistentes e aos
recalcitrantes, os que ainda insistem em desfrutar desse pequeno prazer.
E a indústria? Simples. Foi confrontada com o prejuízo que o cigarro
causava. Parece que funcionou. Ela sobrevive ainda, é verdade, mas
onerada com impostos, assediada com processos indenizatórios e ainda
pagando bem caro para publicar aquelas fotos nada atraentes nas
embalagens do produto que fabrica.
Carro: solução ou problema?
Ora, o cigarro, de solução que era, virou problema. Até então,
socializava-se o seu ônus. Contudo, uma vez a população persuadida de
que os inocentes não fumantes eram prejudicados pelos ora demonizados
fumantes, tudo mudou. A mentalidade vigente aos tempos áureos do cigarro
levava a pensar que um belo dia todos seriam fumantes, porque era
elegante ser assim. Com isso, o custo social do cigarro era absorvido.
Ninguém reclamava, e os espaços se abriam. O automóvel particular, no
entanto, permanece como uma solução, e uma solução altamente desejável.
Quem não tem carro, um belo dia, espera ter um, concentra nisso os seus
esforços, porque é altamente desejável que seja assim. Ora, como todas
as coisas que se tornam objeto de desejo, existe nesta escolha um ônus
significativo, só que, no caso, um ônus que toda a sociedade se mostra
pronta a assumir, tanto que assume, cedendo a quarta parte de seu espaço
urbano ao automóvel.
Em se tratando de São Paulo, seria interessante que alguém mais
afeito às matemáticas mostrasse, em reais, o valor de todos esses metros
quadrados, fora o custo da poluição e seu reflexo na saúde. Não seria
mesmo difícil demonstrar onde está o ônus implicado na adoção desse
modelo de desenvolvimento. Nossa sociedade de consumo, porém, é toda
voltada ao automóvel e à satisfação de seus felizes possuidores. Quanto
mais um bairro é nobre, menos os moradores dependem do transporte
público. O acesso aos melhores restaurantes, às melhores lojas, aos mais
requintados locais onde existe apelo ao consumo, passa pelo automóvel,
pois normalmente tudo isso funciona em lugares aonde só se vai de carro.
Quem não tem carro simplesmente não vai. Há nisso uma seleção de
públicos, e o exercício de uma sofisticada discriminação. Quem não tem
carro conta menos, e faz parte do grupo que depende do transporte
público. Essa condição, no entanto, é imaginada e vivida como
provisória, na medida em que se estimula o sonho de todo mundo, um dia,
ter um carro e, enfim, vir a ser feliz. Enquanto isso, o custo social
desse modelo econômico toma ares democráticos e vai sendo tolerado.
Como esperar, dentro de tal mentalidade, que alguma coisa mude? Será
possível algum dia pensar o transporte coletivo como desejável, e ver o
carro como algo que, afinal, não faz tanta falta assim? Optou-se por um
modelo econômico que gera essa mentalidade, alimentando o imaginário
popular que, por sua vez, atua no sentido de perpetuar o modelo matriz.
Diante dessa conjuntura, porém, seria muito difícil vencer as
implicações econômicas que atuam em prol de sua manutenção. No caso do
cigarro, não eram tantas; no caso da indústria automobilística, são
implicações bem mais complexas. De um jeito ou de outro, sabe-se que a
cidade não tem mais para onde se expandir. Um colapso é previsível e
bastante provável, tudo indicando que alguma coisa terá de mudar nessa
disputa por espaço vital. Em todo caso, enquanto isso tudo não muda,
afinal, que carro você tem?
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Fonte: http://rede.outraspalavras.net/pontodecultura/2012/04/27/que-carro-voce-tem/
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