HUMBERTO WERNECK *
Como tudo o mais na vida, o senso de humor não está
equitativamente distribuído entre os viventes. Ilustrações? Aqui vão
duas, ilustríssimas.
1.
Numa curva da conversa, Isabel Allende envereda pelo tema do
feminismo, e se põe a falar com veemência desproporcional ao físico de
quem mede um metro e meio. Entre cílios pesados de tanto delineador e
rímel, seus olhos brilham, e os braços se esgalham numa gesticulação
enfática. Não há como não concordar com o que ela diz - e não é, por um
segundo que seja, aquela arenga catequética dos militantes em geral, com
a qual você pode até estar de acordo, mas precisava ser chato assim
para defender uma boa causa? Não, o que a Isabel diz é não só
interessante como muito divertido.
O alvo, claro, são os machos, em geral predadores. Todas as religiões
tradicionais, por exemplo, são a seu ver orientadas e controladas por
homens, e tocadas de um jeito que beneficia os marmanjos e controla as
mulheres - sexualidade, fertilidade, poder, liberdade, corpos. Inveja do
pênis? Isabel ri da provocação - e repete o que disse ante engravatada
plateia ao receber do presidente chileno Patricio Alwyn o Prêmio
Gabriela Mistral: "Quem pode invejar esse pequeno e caprichoso apêndice?
Francamente, se eu tivesse um, não saberia onde colocá-lo..."
Isabel Allende não tem dúvida de que o grande problema da humanidade é
a violência - e, sacando obscuras porém verossímeis pesquisas, afirma
que 97% dos crimes violentos são cometidos por homens. Tudo culpa da
testosterona, hormônio tão daninho que deveria ser eliminado do corpo
assim que o menino chega à puberdade. Mas peraí, a testosterona,
exatamente, não é responsável por boa parte do prazer sexual que as
mulheres buscam? A autora de Afrodite não vacila: bem, de vez em quando a
gente poderia dar um sachezinho ou umas gotas para vocês botarem no
café...
2.
Com José Saramago, a conversa era outra. Volta e meia o escritor
português se punha sentencioso, e antes mesmo de ganhar o Nobel
(estávamos a uns meses disso, em 1998) me sugeria um desses homens
engomados que, de perfil, adornam moedas e medalhas. Definitivamente,
nossos sensos de humor não batiam - a não ser numas raras ocasiões, como
aquela em que me contou: na aldeia onde nasceu havia uma família
"Caralhana" e outra "Curroto" - "felizmente", sorriu, "não calhou-me
nenhuma dessas...". Ou quando falou do avô João: zelador de uma
propriedade rural, ele dormia numa cabana, e para não ter que ir lá fora
urinar, enfiava num longo canudo de madeira aquele penduricalho que
nenhuma inveja faz a Isabel Allende.
No mais, porém, nossos risos nunca estavam sincronizados. Agora, por
exemplo, ele me falava de um livro que vinha escrevendo, no qual
pretendia contar sua vida até o começo da adolescência, e que iria se
chamar O Livro das Tentações, título depois mudado para As pequenas
memórias. Como logo antes o assunto tinha sido seu primeiro romance,
Terra do pecado, indaguei, como quem pensa alto: não é curioso o sujeito
começar pelo pecado e meio século depois chegar à tentação? Eu mesmo me
diverti com a pergunta, mas Saramago fechou a cara, irritado com a
estultícia que acabara de ouvir: "Não", se pôs a explicar, "são outras
tentações, não as da carne!" - e por aí foi, num papo didático que era
bem o contrário de qualquer boa tentação.
Depois, gravador desligado, fizemos pausa para o café, e Saramago, na
sala, me apresentou seus três cães: a yorkshire Greta, o poodle Pepe e o
cão d'água português (espécie de poodle) Camões. Como o dono, este era
um devorador de livros, só que em sentido literal: ultimamente, andava a
roer um álbum com reproduções de Goya. Antes de se aplicar à pintura
espanhola, dera cabo de duas biografias de Nelson Mandela. A insistência
gastronômica de Camões no líder sul-africano me divertiu - mas nem um
pouco ao romancista, a julgar pelo piparote com que pôs para correr
aquele voraz e irreverente degustador das letras & artes.
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* Colunista do Estadão
Fonte: Estadão on line, 22/04/2012
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