Leonardo Boff*
Convidado oficialmente, tive a oportunidade de fazer um
pronunciamento durante a 63ª sessão da Assembléia Geral da ONU no dia 22
de abril de 2009 para fundamentar o projeto a ser votado de transformar
o Dia Internacional da Terra em Dia Internacional da Mãe Terra. O
projeto foi acolhido por unanimidadade pelos 192 representantes dos
povos. Eis o texto pronunciado na ocasião.
Senhoras e Senhores, representantes dos povos da Terra.
Desejo começar recordando a séria advetência feita pela Carta da
Terra ainda no ano 2000: “Estamos num momento crítico da história da
Terra, no qual a humanidade deve escolher o seu futuro…A nossa escolha é
essa: ou formamos uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos
outros ou então arriscamos a nossa própria destruição e a da diversidade
da vida”(Preâmbulo).
Se atual crise econômico-financeira é preocupante, a crise da
não-sustentabilidade da Terra, revelada no dia 23 de setembro de 2008,
se apresenta ameaçadora. Os cientistas que estudam a pegada ecológica da
Terra chegaram a usar a expressão The Earth Overshoot Day,
quer dizer, o Dia da Ultrapassagem da Terra. Exatamente, neste dia 23 de
setembro, foi constatado que a Terra ultrapassou em 30% sua capacidade
de reposição dos recursos que necessitamos para viver. Agora precisamos
mais de uma Terra para podermos atender as demandas dos seres humanos e
aqueles da comunidade de vida. Mas até quando?
Cumpre garantir previamente a sustentabilidade da Terra, se quiseros
fazer face aos aos problemas mundiais que nos afligem como a crise
social mundial, a alimentária, a energética e a climática. Agora não
dispomos de uma Arca de Noé que pode salvar alguns e deixa perecer a
todos os demais. Ou nos salvamos todos ou pereceremos todos.
Neste contexto, recordemos as prudentes palavras do atual Secretário
Geral da ONU, Ban-Ki Moon, num artigo, mundialmente difundido, escrito
em parceria com Al Gore: “não podemos deixar que o urgente comprometa o
essencial”. O urgente é resolver o caos econômico e o essencial é garantir a continuidade das condições ecológicas da Terra para que ela possa nos oferecer tudo o que precisamos para viver.
Para reforçar esta nova centralidade que visa a salvar o essencial e a
mostrar nosso amor a todos os humanos e à própria Terra é que se propõe
à esta Assembléia Geral da ONU a resolução de celebrar o dia 22 de
abril não mais simplesmente como o Dia Internacional da Terra, mas como o
Dia Internacional da Mãe Terra (International Mother Earth Day).
Se esta resolução for acolhida, como espero, aumentará em toda a
Humanidade o cuidado, o respeito, a cooperação, a compaixão e a
responsabilidade face ao nosso Planeta e ao futuro do sistema-vida.
Não dispomos de muito tempo nem possuímos suficiente sabedoria
acumulada. Por isso, temos que, juntos e rápidos, elaborar estratégias
de sobrevivência coletiva.
Em nome da Terra, nossa Mãe, de seus filhos e filhas sofredores e
de todos os demais membros da comunidade de vida ameaçados de extinção,
vos suplico veementemente: aprovem esta resolução.
Para fundmentar esta aprovação me tomo a liberdade de
apresentar-lhes, senhores e senhoras, representantes dos povos, algumas
razões que nos concedem chamar a Terra de verdadeiramente nossa Mãe.
Antes de mais nada, falam os testemunhos mais ancestrais de todos os
povos, do Oriente e do Ocidente e das principais religiões. Todos
testemunham que a Terra sempre foi venerada como Grande Mãe, Terra
Mater, Inana, Tonantzin e Pacha Mama.
Para os povos originários de ontem e de hoje, é constante a convicção
de que a Terra é geradora de vida e por isso comparece como Mãe
generosa e fecunda. Somente um ser vivo pode gerar vida em sua imensa
diversidade, desde a miríade de seres microcópicos até os mais
complexos. A Terra surge efetivamente como a Eva universal.
Durante muitos séculos predominou esta visão, da Terra como Mãe, base
de uma relação de respeito e de veneração para com ela. Mas irromperam
os tempos modernos com os mestres fundadores do saber científico,
Newton, Descartes e Francis Bacon, entre outros. Estes inauguraram uma
outra leitura da Terra. Ela não é mais vista como uma entidade viva, mas
apenas um realidade extensa (res extensa), sem vida e sem
propósito. Por isso, ela vem entregue à exploração de seus bens e
serviços por parte dos seres humanos em busca de riqueza e de bem estar.
Ousadamente afirmou alguém: para conhecer suas leis devemos submetê-la a
torturas como o inquisidor faz com o seu inquirido até que nos
entregue todos os seus segredos.
A Terra-mãe que devia ser respeitada, se transformou em Terra
selvagem a ser dominada. Ela não passa, segundo eles, de um baú de
recursos infinitos a serem utilizados para o consumo humano.
Neste paradigma não se colocava ainda a questão dos limites de
suportabilidade do sistema-Terra nem da escassez de seus bens e serviços
não renováveis. Pressupunha-se que eles seriam ilimitados e poderíamos
infinitamente progredir em direção do futuro.
Hoje tomamos consciência de que a Terra é finita e seus bens e
serviços são limitados. Já encostamos nos limites físicos da Terra. Um
planeta finito não pode suportar um projeto infinito. Os dois infinitos,
dos recursos e do futuro, imaginados pela modernidade se revelaram
ilusórios. Os bens e serviços não são infinitos nem o progresso poderá
ser infinito porque não é universalizável para todos. Se quiséssemos
generalizar para toda a humanidade o bem estar que os países opulentos
desfrutam – já se fizeram os cálculos para isso – precisaríamos dispor
de pelo menos de três Terra iguais a nossa.
A preocupação que sempre orientou a relação dos modernos para com a
Terra foi esta: como posso ganhar mais, no menor tempo possível e com o
mínimo de investimento? O resultado desta voracidade gerou um
arquipélago de riqueza rodeado por um oceano de miséria.
O PNUD de 2008 o confirma: os 20% mais ricos consomem 82,4% de todas
as riquezas mundiais, enquanto os 20% mais pobres tem que contentar-se
com apenas 1,6%. É uma injustiça clamorosa e criminosa que uma ínfima
minoria monopolise o consumo e controle os processos produtivos de
praticamente todos os países. Estes implicam a devastação da natureza, a
criação de escandalosas desigualdades e a falta de solidariedade para
com as gerações presentes e futuras. E por fim, a condenação à miséria e
à morte prematura das grandes maiorias da humanidade. Nenhuma sociedade
poderá revindicar ser humana, justa e pacífica quando assentada sobre
tanta iniquidade social e perversa inumanidade.
Não é sem razão que o aquecimento global e os desequilíbrios do
sistema-Terra sejam atribuidos principalmente a esse tipo de organização
social e econômica montada pelos seres humanos.
Se queremos conviver humanamente precisamos de um outro estilo de
habitar o planeta Terra que tenha como centro a vida, a Humanidade e a
Mãe Terra. Para este modelo, a preocupação central é: como viver e
produzir em harmonia com a Terra, com os ecossistemas e com os outros
seres vivos, buscando o “bem viver” das atuais e das futuras gerações.
Como viver mais com menos?
Somente esse novo paradigma civilizacional respeita a Mãe Terra e garante sua integridade e vitalidade.
É neste contexto que se resgatou a visão da Terra como Mãe. Já não se
trata da percepção ancestral dos povos originários mas de uma
constatação científica. Foi mérito de James Lovelock e de Lynn Margulis
nos anos 70 do século passado e antes deles, do russo Wladimir
Vernadski ainda nos idos de 1920, terem comprovado que a Terra é um
superorganismo vivo que permanentemente articula todos os elementos
necessários para a vida de forma que ela sempre se mostra apta a
produzir e a reproduzir vida.
Durante milhões e milhões de anos o nível de oxigênio na atmosfera,
essencial para a vida, se manteve em 21%; o nitrogênio, responsável pelo
crescimento, em 79%; e o nível de salinização dos aceanos em 3,4% e
assim todos os demais componentes que garantem a subsistência do
sistema-vida.
Não somente há vida sobre a Terra. Ela mesma é viva, um
superorganismo que se autoregula para manter um equilíbrio favorável à
existência e à persistência da vida. Foi denominada de Gaia, deusa
grega, responsável pela fecundidade da Mãe Terra.
Para mostrar como a Terra é realmente viva, aduzamos um exemplo do
conhecido biólogo Edward Wilson: “num só grama de solo, ou seja em menos
de um punhado de terra, vivem cerca de 10 bilhões de bactérias,
pertencentes a seis mil espécies diferentes”(A criação, 2008, 26). Efetivamente, a Terra é Mãe e é Gaia, geradora de toda a biodiversidade.
O ser humano representa aquela porção da própria Terra que, num
momento avançado de sua evolução e de sua complexidade, começou a
sentir, a pensar e a amar. Com razão, para as linguas neolatinas, homem
vem de humus que significa terra fecunda e Adão, na tradição hebraico-cristã se deriva de adamah
que em hebraico quer dizer terra fértil. Por isso o ser humano é a
Terra que anda, que ri, que chora, que canta, que pensa, que ama e que
hoje clama por cuidado e proteção.
A visão dos astronautas comprova esta simbiose entre Terra e
Humanidade. De suas naves espaciais, exclamavam: “daqui de cima, olhando
este resplandecente planeta azul-branco, não há diferença entre Terra e
Humanidade; formam uma única entidade; e nós, mais que como povos,
nações e raças, devemos nos entender como criaturas da Terra, como
filhos e filhas da Terra”. Somos a própria Terra consciente e
inteligente.
Entretanto, olhando a Terra não de fora e de longe, mas de perto e de
dentro nos damos conta de que nossa Mãe está crucificada. Possui o
rosto do terceiro e quarto mundo, porque vem sistematicamente agredida e
violada. Quase a metade de seus filhos e filhas padecem fome, estão
doentes e são condenados a morrer antes do tempo.
Por isso, significa um sinal de amor concreto para com a Mãe Terra as
políticas sociais que muitos paises estão realizando em favor dos mais
necessitados. Podemos referir como exemplar o projeto Fome Zero e a Bolsa Família
do governo do Presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva. Em menos
de 8 anos devolveu dignidade a 50 milhões de pessoas que agora podem
comer três vezes ao dia e sentir-se cidadãos incluídos.
É nossa obrigação baixar a Terra da cruz, tratá-la, curá-la e
ressuscitá-la. Está em nossas mãos um documento precioso, um dos mais
belos e inspiradores dos iníncios do século XXI, a Carta da Terra.
Ela nasceu da consulta de milhares e milhares de pessoas de 46 paises e
de sugestões surgidas de todos os grupos, desde indígenas, comunidades
pobres, igrejas, universidades e centros de pesquisa e outros.
Concluída no ano 2000 foi assumida em 2003 pela UNESCO como “instrumento
educativo e uma referência ética para o desenvolvimento sustentável”
A Carta da Terra compreende a Terra como viva e como nosso
Lar Comum. Apresenta pautas concretas, valores e princípios que podem
garantir-lhe um futuro de esperança desde que a cuidemos com
compreensão, com compaixão e com amor, como cabe à nossa Grande Mãe.
Oxalá, esta Carta possa um dia, não muito distante, ser apresentada,
discutida, enriquecida por esta Assembléia Geral e ser incorporada à
Carta dos Direitos Humanos. Assim teríamos um documento único sobre a
dignidade da Terra com seus ecosistemas e a dignidade de cada ser
humano.
Para que tudo isso se torne realidade não nos basta a razão funcional
e instrumental da tecnociência. É urgente enriquecê-la com a razão
emocional e cordial. É a partir deste tipo de razão que se elaboram os
valores, o cuidado essencial, a compaixão, o amor, os grandes sonhos e
as utopias que movem a humanidade para inventar soluções salvadoras.
Esta razão emocional nos fará sentir a Terra como Mãe e nos levará a
amá-la, a respeitá-la e a protegê-la contra violências e exterminações.
Nossa missão no conjunto dos seres é a de sermos os guardiães e os
cuidadores desta herança sagrada que o universo nos confiou.
Para terminar, me permito, Senhor Presidente, uma sugerência.
Aprovada esta resolução de celebrar todo o dia 22 de abril como o Dia
Internacional da Mãe Terra, sugiro que se ponha na cúpula vazia no alto
da sala desta Assembleia, um globo terrestre, uma destas imagens
belíssimas da Terra, feitas a partir de fora da Terra. Esta imagem nos
suscita sempre um sentimento profundo de comoção, de sacralidade e de
reverência. Ao olhá-la, recordamos que ai está nossa única Casa Comum,
a nossa generosa Mãe Terra. Ela continuamente nos olha, nos acompanha e
nos ilumina para buscar os melhores caminhos para ela, para nós, para
toda a comunidade de vida e para todos os seres que nela habitam.
Minha sugestão vai ainda mais longe: que no dia 22 de abril de cada
ano, em todos os lugares, nas escolas, nas fábricas, nos escritórios,
nos laboratórios, nas empresas, nos parlamentos, se parasse e se fizesse
um minuto de silêncio para pensarmos em nossa Mãe Terra e renovarmos
nosso agradecimento por tudo aquilo que ela nos propicia e renovarmos
nossa propósito de cuidá-la, de respeitá-la e de amá-la como amamos,
respeitamos e cuidamos de nossas mães.
Estou convencido de que assim como está a Terra não pode continuar. Ela continuará seu curso evolucionáro mas sem nós.
A solução para a Terra não cairá do céu. Ela será resultado de uma
coalizão de forças ao redor de valores e princípios éticos e
humanitários que poderão devolver-lhe o equilíbrio perdido e sua
vitalidade original.
Podemos e devemos transformar a eventual tragédia coletiva numa crise
que nos acrisola e purifica. Esta crise nos tornará mais maduros e
sábios para vivermos dignamente nesse pequeno e belo planeta pelo curto
tempo que nos for concedido. Assim nos sentiríamos como filhos e filhas
da alegria, no seio da Grande Mãe que nos acolhe e nos dá vida.
Muito obrigado pela atenção.
Leonardo Boff
Representante do Brasil e da Iniciativa Carta da Terra.
Edifício das Nações Unidas em Manhattan, 22 de abril de 2009.-------------------
* Teólogo. Escritor.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2012/04/22/discurso-no-onu-por-que-a-terra-e-nossa-mae/
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