Paulo Moreira Leite*
O placar de 10 a 0 no Supremo Tribunal Federal representa uma
condenação irrevogável à noção de que vivemos numa democracia racial – e
é um convite a reflexão dos brasileiros sobre um dos mitos mais
danosos de nossa cultura.
O mito mais recente envolve a noção de racialismo. Contrariando a
opinião de 90% da população brasileira, que reconhece que o Brasil é um
país racista, os advogados da democracia racial dizem que as “tensões”
entre brancos e negros só vão começar com a aplicação de políticas de
ação afirmativas.
A ilusão que querem nos vender é a seguinte: brancos e negros sempre
viveram num ambiente de paz e amizade, quem sabe desde 1580, quando os
primeiros escravos foram trazidos para os engenhos de açucar, e agora
esses intelectuais, esses aparelhados, esses comunistas, esses …, querem
criar confusão e estragar tudo.
O esforço para dar legitimidade à “democracia racial” inclui uma
tentativa de se atribuir ao pensamento de Gilberto Freyre uma visão
fechada e coerente que o mestre de Apicucos nem sempre cultivou.
A importância de Gilberto Freyre, em seu devido tempo, foi defender
os direitos da população negra – e não considerar que ela já estivesse
em posição de igualdade no mundo dos brancos.
Embora capaz de idealizar as relações entre portugueses, negros e
indígenas, Gilberto Freyre não levava sua ideologia ao delírio, como se
vê no trecho a seguir, onde fala de crueldade e sadismo. Citando uma
passagem especialmente cruel de Machado de Assis, o antropólogo
reconhece:
“Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo nascido e criado
depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado
do menino Brás Cubas na malvadeza e no gosto de judiar (*) com o negro.
Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com o animais é
bem nosso: é de todo menino brasileiro atingido pela influência do
sistema escravocrata.” (Página 370).
Confesso que tive de ler isso mais de uma vez para compreender, registrar e avaliar.
Aquele pensador que é apontado como pai da democracia racial afirma
que “mesmo depois da oficialmente (reparem no termo restritivo,
‘oficialmente’) abolida a escravidão” os brasileiros de “classe mais
elevada” se sentiam aparentados “na malvadeza com o negro. “ Para
Gilberto Freyre “todo menino atingido pela influencia do sistema
escravocrata” possui o “mórbido deleite de ser mau com os inferiores e
com os animais.” Freyre diz ainda que isso “é bem nosso.”
Para ele, há mais que tensão racial. Há raiva, desprezo, vontade de
submissão e destruição, morte. Isso quer dizer “mórbido deleite.”
Desculpem, mas é e chocante ler esta passagem e não questionar o
esforço de quem se esconde atrás do mestre de Apicucos para dizer que
medidas de ação afirmativa é que irão criar uma “tensão racial”
inexistente. Como é que pode?
Em que país essas pessoas vivem? Não leram nem Gilberto Freyre? Não andam na rua?
Nós sabemos que pais é este.
A sociedade brasileira possui, a respeito da questão racial, um
discurso branco, dominante e unilateral. A voz do negro é uma
dissidência raramente ouvida, muito menos considerada. Tivemos vários
discursos sobre o negro ao longo da história. Alguns de caráter
reacionário, outros progressistas e assim por diante. Ele próprio
raramente pode falar com sua voz.
Apenas um monólogo branco pode sustentar que somos um país sem “tensões raciais”. Eles são os donos da palavra.
É o ponto de vista branco, como disse o psicanalista Contardo Calligaris.
É uma situação reveladora do caráter não-democrático do debate em
torno de algumas ideias no Brasil. Algumas partes — no caso, as mais
interessadas — não tem direito a palavra. Admite-se, apenas, o discurso
sobre eles. Não são sujeitos, nem pessoas emancipadas.
São objetos de uma nova forma do “mórbido deleite?”
O 10 a 0 mostra a credibilidade dessa visão.
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* Jornalista desde os 17 anos, foi diretor de redação de ÉPOCA e do Diário
de S. Paulo. Foi redator chefe da Veja, correspondente em Paris e em
Washington.
Fonte: http://colunas.revistaepoca.globo.com/paulomoreiraleite/2012/04/28/
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