sexta-feira, 27 de abril de 2012

O futuro da história

Reuters / Reuters

Fukuyama: "Fiquei extremamente desapontado com o ex-presidente Lula, que virou as costas para a Revolução Verde no Irã"

Uma das vozes conservadoras influentes, e também controversas, da academia e da política americanas, Francis Fukuyama defende a criação de uma organização multilateral no nordeste da Ásia, incluída a China - cujo modelo econômico e político considera insustentável -, capaz de harmonizar interesses nacionais e que, ao mesmo tempo, funcionaria como uma espécie de fórum para discussão de questões também presentes na agenda geopolítica dos Estados Unidos. Essa é a tese central do livro "Multilateralismo na Ásia Oriental", coletânea de artigos organizada por Fukuyama e Kent E. Calder, agora publicada no Brasil.
Foi quando ainda era um dos jovens talentos da universidade Johns Hopkins - onde hoje ocupa posto de direção nas atividades do Centro de Estudos da Ásia Oriental -, que Fukuyama cunhou a expressão "fim da história". Referia-se, dessa forma, à queda do muro de Berlim e à desintegração da União Soviética como confirmação conclusiva, a seu ver, da supremacia do liberalismo econômico e político no mundo contemporâneo, que estaria então definitivamente estabelecida.
Vinte anos depois de "O Fim da História e o Último Homem" chegar às livrarias, Fukuyama publicou em janeiro, na revista "Foreign Affairs", um texto em que critica os exageros da liberalização econômica americana. Segundo ele, o ultraliberalismo proporcionou um cenário propício ao enfraquecimento da classe média e ao aumento das desigualdades sociais nos Estados Unidos. Um dos nomes responsáveis pela disseminação da chamada Doutrina Reagan, de apoio maciço aos movimentos anticomunistas (inclusive armados) como forma de esgotamento da União Soviética, Fukuyama se alinhou aos neoconservadores nos anos 90 e apoiou a invasão do Iraque.

"O Brasil precisa continuar a diversificar sua base econômica e multiplicar o investimento em educação"

O desencanto de Fukuyama com o governo de George W. Bush - chegou a comparar o neoconservantivismo ao leninismo - e o apoio, em 2008, a Barack Obama, são considerados por analistas de variados espectros uma evidência da radicalização da direita americana, na qual não haveria mais lugar para nomes conservadores como o dele.
Nesta entrevista, Fukuyama fala da exaustão, de certo modo já perceptível, do modelo chinês (recusou-se a comentar o fato de que parte da academia considera este o "século chinês"), comenta problemas de governabilidade das democracias liberais avançadas, valoriza a possível influência do Brasil em questões relacionadas aos direitos humanos e adverte para a importância de o país multiplicar o investimento em educação como primeira condição para acelerar o desenvolvimento.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Fukuyama ao Valor.

Valor: Na semana passada, a Índia testou com sucesso seu primeiro míssil nuclear de longo alcance, gerando protestos do Paquistão e da China. Há uma preocupação em relação à escalada da corrida armamentícia na Ásia Oriental, não por acaso região cada vez mais prioritária na estratégia militar americana. Dentro desse contexto, qual a real possibilidade para a criação, como o senhor defende desde a publicação do livro nos Estados Unidos, em 2008, da formação de uma organização multilateral de peso no Extremo Oriente?
Francis Fukuyama: Ainda penso ser importante a criação de uma organização voltada exclusivamente para a discussão de assuntos de segurança no nordeste da Ásia. É de fato possível que a Coreia do Norte entre em um súbito colapso e vai haver uma corrida para ocupar o vácuo. O principal interesse da China é evitar a reunificação da Coreia, um estado democrático aliado dos Estados Unidos. Os chineses não querem tropas americanas estacionadas na fronteira. Na teoria, Estados Unidos, Coreia e China deveriam ser capazes de desnuclearizar a Península Coreana ou mesmo de terminar oficialmente a aliança Estados Unidos-Seul no caso de uma unificação. Mas não é possível sequer iniciarmos iniciativas diplomáticas a esse respeito por causa das sensibilidades chinesas. Um fórum regular que pudesse cuidar desses tópicos seria extremamente desejável.


Valor: Mas ainda é possível conter a China? Pequim hoje conta com mais embaixadas na África do que Washington e já é o principal parceiro comercial de boa parte dos países da América Latina...
Fukuyama: Veja bem, os Estados Unidos não têm interesse algum em conter os investimentos chineses ou as relações comerciais de Pequim mundo afora. Não têm. Quando falamos em "conter" a China, estamos pensando em questões de segurança internacional, como, por exemplo, na visão de Pequim sobre o Mar da China, que eles querem controlar de forma absoluta. Ou nas relações com Taiwan. Especificamente quando pensamos nesses tópicos, é certamente possível para os países que se sentem ameaçados pela China trabalhar juntos para limitar a influência de Pequim.

Valor: O pré-candidato republicano à Casa Branca Mitt Romney defende práticas comerciais mais duras em relação a Pequim. Ele acusou o governo Obama de "tolerar a sujeição de nossos interesses comerciais a Pequim". É possível para os Estados Unidos, na atual conjuntura econômica, serem de fato mais duros com a China? Qual a sua avaliação sobre as relações Washington-Pequim no governo Obama?
Fukuyama: Creio que deveríamos tratar a desvalorização da moeda chinesa da mesma forma como se trata a exportação de produtos subsidiados. Deveríamos tê-los ameaçado com uma tarifa de entrada proporcional ao peso da desvalorização, o que certamente levaria o caso para a Organização Mundial do Comércio (OMC). Aliás, não há qualquer diferença conceitual entre subsídio e desvalorização artificial da moeda. Não acredito que tal atitude levaria a uma guerra comercial com Pequim e sim a uma situação de barganha, em que os chineses provavelmente seriam forçados a retroceder. Mas isso só seria possível de fato se outros países ameaçados pelas importações chinesas se juntassem ao clube. Estou pensando aqui especialmente no Brasil, que vem sofrendo com um processo de desindustrialização por conta da política monetária chinesa.

"Partidos políticos de centro-esquerda e centro-direita são indispensáveis como forma de representação das novas classes médias"

Valor: O senhor acredita que o crescimento econômico implicará naturalmente uma abertura democrática na China? Qual papel o Brasil, como um dos Brics, poderia exercer na questão do respeito aos direitos humanos na China?
Fukuyama: Creio que a China acabará por se democratizar. Nem o modelo político nem o econômico de Pequim são sustentáveis a longo prazo. O modelo exportador já começou a diminuir sua força substancialmente e há uma necessidade crescente de elevar o consumo, ao lado de pressões para a liberalização política. Neste exato momento, o modelo chinês se mostra vulnerável, como se vê no caso de Bo Xilai [principal líder do PC Chinês em Chongquing, preso no mês passado por causa de um escândalo de corrupção e abuso de poder] e nas crescentes dificuldades vividas pela elite política. Mas não acredito que Brasília poderia exercer um papel importante na China, especialmente por causa da ausência de uma oposição formal no país. Em outras partes do planeta, no entanto, a presença do Brasil seria muito importante. Fiquei extremamente desapontado com o ex-presidente Lula, que virou as costas para a Revolução Verde no Irã e chegou a dizer que não havia diferença entre o regime e a oposição democrática. O Brasil, por causa de sua própria história, com uma ditadura recente, tem a obrigação de ter uma atitude mais decisiva contra regimes totalitários.

Valor: Mesmo com a ascensão chinesa e a crise nos Estados Unidos e na Europa, o senhor segue acreditando que a única via para a modernização é através do liberalismo democrático?
Fukuyama: Sim, a sociedade moderna só é viável por meio da democracia liberal. O único competidor real é o modelo chinês. A China se moderniza de forma autoritária, mas trata-se de um modelo impossível de se exportar, intrínseco de sociedades asiáticas com determinadas especificidades culturais. Mas não estou dizendo que todos os países vão se desenvolver da mesma forma ou que as diversas formas de capitalismo democrático serão idênticas em todas as sociedades. O modelo capitalista da Europa setentrional é muito diferente do americano e, também, do da Europa meridional. Em meu livro mais recente, "As Origens da Ordem Política", procuro mostrar como foi acidental e fortuito o desenvolvimento da democracia liberal.

Valor: Não estaríamos vivendo uma crise do modelo democrático liberal que o senhor defende no livro? Não há uma crescente descrença, no Ocidente, em relação a instituições como o Congresso e o Poder Judiciário?
Fukuyama: Não, não há uma crise universal da democracia liberal. Na América Latina, tivemos três presidentes, Lula, Michelle Bachelet, no Chile, e Álvaro Uribe, na Colômbia, que deixaram o governo com aprovação acima dos 70%. Ou seja, algo está indo bem na região. Na Europa, há uma divisão entre facções pró e contra uma Comunidade Europeia clientelista. A Alemanha e os países escandinavos são exemplos de governos que conseguiram controlar seus déficits orçamentários enquanto mantêm bons níveis de confiança. Espanha, Grécia e Itália são estados capturados por partidos políticos, com níveis muito mais baixos de apoio popular. Ou seja, a crise não é universal.

Valor: Então vamos falar dos Estados Unidos. Em janeiro, o senhor escreveu o artigo "O futuro da história" para a revista "Foreign Affairs", que repercutiu fortemente no universo acadêmico. O senhor inicia seu texto com uma pergunta: "A democracia liberal pode sobreviver ao declínio da classe média?" O senhor já chegou a uma resposta? E quais são as forças que no momento ameaçam a democracia liberal americana?
Fukuyama: Concordo que as democracias avançadas estão experimentando uma crise de governabilidade. Todas demonstraram dificuldade na hora de tomar decisões duras. Também se revelaram frágeis, passíveis de serem capturadas por lobbies poderosos e grupos de interesses. Parte do problema se dá porque o público espera altos níveis de benefícios que algumas dessas sociedades certa vez foram capazes de gerar, mas que já não são sustentáveis do ponto de vista fiscal. E falta vontade política para se informar ao público sobre a nova realidade.

"A sociedade moderna só é viável por meio da democracia liberal. O modelo autoritário aplicado na China é impossível de exportar"

Valor: Em contrapartida, há uma explosão de populismo nos Estados Unidos, à direita, com o Tea Party, e à esquerda, com o Ocupem Wall Street. Qual papel esses movimentos terão nas eleições presidenciais de novembro?
Fukuyama: O Tea Party já passou do seu clímax de influência. Conseguiu mover o Partido Republicano para uma direção tão extremista e estreita que provavelmente custará esta eleição à oposição, com nova vitória de Obama, a não ser que tenhamos uma nova recessão até o fim do ano. O Ocupem Wall Street jamais foi um movimento de massas, mas um grupo pequeno de ativistas que encontraram um novo nicho. Não terão influência nas eleições, a não ser que se organizem melhor e aprendam a dialogar com a classe trabalhadora, na qual estão os cidadãos que de fato sofrem com o aumento da desigualdade social nos Estados Unidos.

Valor: No Brasil, vivemos a experiência oposta, com uma ascensão sem precedente histórico em direção à classe média. Como o senhor vê a era Lula?
Fukuyama: O crescimento da classe média é crítico para a estabilidade da democracia brasileira, única maneira de se evitar a polarização entre as elites e os pobres. O populismo pode ser utilizado de forma positiva, como no caso de Franklin Roosevelt nos anos 30, em que se construiu o estado de bem-estar americano, mas também pode ser uma força destrutiva, como no caso de Hitler, ou apropriado por demagogos autoritários, como Hugo Chávez. A América Latina precisa de partidos políticos de centro-esquerda e centro-direita cada vez mais fortes, representando as novas classes médias, que precisam se sentir incluída no sistema.

Valor: Também na "Foreign Affairs", no início do mês, o especialista em mercados emergentes Ruchir Sharma escreveu artigo em que alerta sobre a fragilidade da ascensão da classe média brasileira, dependente de um contexto de crescimento baseado nos preços altos das matérias-primas. O senhor concorda com esse ponto de vista?
Fukuyama: Concordo. A maior parte do crescimento brasileiro na última década deu-se por consequência da demanda global - especialmente a chinesa - por matéria-prima. Essa situação não vai durar eternamente. O Brasil precisa continuar diversificando sua base econômica. O que Brasília precisa fazer, na prática, é multiplicar o investimento em educação, para que o país suba de vez a ladeira.

Valor: Em entrevista ao jornal "Folha de S. Paulo", o senhor afirmou que os Estados Unidos estão começando a se parecer com a América Latina. O que quis dizer com isso?
Fukuyama: Tradicionalmente, a América Latina é uma das regiões com maior desigualdade social, que chega a níveis dos quais os Estados Unidos vão se aproximando. É isso. Também é importante lembrar que, como muita gente na América Latina, os americanos não querem pagar mais impostos. Eles também acreditam que os governos vão desperdiçar os recursos arrecadados. O resultado é a falta de investimentos em serviços públicos, o que acaba confirmando a impressão dos que não querem pagar mais impostos.

Valor: Em "As Origens da Ordem Política", o senhor usa o exemplo da Dinamarca como modelo de um Estado funcional. Esse é um modelo passível de exportação?
Fukuyama: A Dinamarca é um país pequeno, com população de 5,5 milhões. É um país relativamente homogêneo, cujas experiências não são facilmente reproduzíveis em outras realidades. Existem como um ideal, mas, como também destaco no livro, nem mesmo os dinamarqueses sabem bem como chegaram aonde chegaram. A Dinamarca é um ponto de referência.

Valor: O senhor já foi apresentado como uma "estrela do rock" da academia americana. Nunca se cansa de ser mencionado, até hoje, como o cientista político que cunhou a expressão "o fim da história"?
Fukuyama: Sim. Mas também aprendi que não há nada que se possa fazer a respeito. Sempre tenho a esperança de que as pessoas prestem mais atenção no que estou dizendo hoje e não no que escrevi há 30 anos.

"Multilateralismo na Ásia Oriental - Perspectivas para a Estabilidade Regional"
Organização de Francis Fukuyama e Kent E. Calder. Tradução de Nivaldo Montingelli Jr. Editora Rocco. 336 págs., R$ 48,50
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Reportagem  Por Eduardo Graça | para o Valor, de Nova York
Fonte: Valor Econômico on line, 27/04/2012

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