sexta-feira, 13 de abril de 2012

A nova conspiração de Pynchon

Em Contra o dia, o mais notório dos escritores reclusos vivos volta a destilar obsessões

RODRIGO TURRER
O escritor americano Thomas Pynchon, de 74 anos, não tem leitores. Tem devotos. Os “pynchonmaníacos” costumam organizar clubes de leitura para fazer a exegese de cada linha dos romances bissextos do autor – em 49 anos, Pynchon publicou oito livros. Desde 1993, seus fãs mantêm uma lista internacional de troca de correspondência para organizar enciclopédias e glossários e relacionar personagens e temas nas obras do autor. Como os livros de Pynchon estão atulhados de alusões históricas, fatos obscuros, fórmulas matemáticas e princípios da física, seus fãs esmiúçam cada detalhe. Parte disso pode ser encontrada na enciclopédia virtual Pynchon Wiki (pynchonwiki.com).
Tamanha idolatria é alimentada não só pela qualidade da obra, mas por cinco décadas de reclusão. A postura de Pynchon em relação à exposição pública é quase tão radical quanto a de um de seus principais ídolos, o americano J.D. Salinger, que morreu aos 91 anos, em janeiro de 2010. Salinger não foi o primeiro autor a buscar na reclusão um atalho para o sossego, mas foi o mais famoso deles (leia o quadro abaixo). Pynchon também se nega a dar entrevistas, a aparecer em fotos e a comparecer a eventos desde que lançou seu primeiro livro,V., em 1963. Sua reclusão virou um fetiche literário americano. Seus fiéis devotos reconstruíram a árvore genealógica de Pynchon e desencavaram uma rara foto dele, aos 18 anos, na Universidade Cornell, onde ele estudou física e literatura.
Alimentar o mistério em torno de si é um dos passatempos prediletos de Pynchon. O cartunista americano Farley Katz relatou certa vez que o encontrou num bar em Nova York. Ele usava uma camiseta com os dizeres: “Eu não sou Thomas Pynchon”. Em 2004 e 2006, virou personagem do desenho animado Os Simpsons. Ele aparece em dois episódios com um saco de papelão na cabeça.
Na verdade, furar o cordão de isolamento em torno dele não é tão difícil quanto parece – se você não é jornalista ou fotógrafo. Pynchon troca cartas com alguns de seus fãs e com inúmeros escritores, entre eles o britânico de origem indiana Salman Rushdie e o americano Don De Lillo. Aficionado de idiomas, ele costuma responder, por fax ou carta, às dúvidas de seus tradutores. Fala espanhol, entende um pouco de português e colaborou com o tradutor brasileiro Paulo Henriques Britto em algumas das passagens indecifráveis de seus últimos romances publicados no Brasil, inclusive o recém-lançado Contra o dia (Companhia das Letras, 1.088 páginas, R$ 98).
Os reclusos famosos (Foto: Bettmann/Corbis, Hulton Archive/Getty Images,  Tiziana Fabi/AFP e Derek Shapton/AP)
 

A linguagem inventiva e a narrativa obscura e caudalosa são problemas não apenas para o tradutor, mas também para o leitor de Pynchon. É impossível ler suas obras na praia ou à beira da piscina. Assim como seus outros livros, Contra o dia exige concentração e dedicação. Se o leitor não estiver disposto a sofrer um pouco, não avançará. Sou um leitor habituado às dificuldades do texto literário, mas só consegui entender do que tratava Contra o dia depois da página 350. Em tese, a narrativa se concentra na história de Webb, um mineiro anarquista revoltado com o capitalismo industrial, que se transforma em terrorista. Ele é assassinado por matadores profissionais contratados por um capitalista inescrupuloso. Os quatro filhos de Webb, partem então em busca de vingança. Ao mesmo tempo, um grupo de jovens denominado Amigos do Acaso viaja o mundo em balões cumprindo missões sem saber o objetivo delas. O pano de fundo são os anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial.
ATRASO Contra o dia, lançado em 2006. Agora traduzido no Brasil (Foto: Divulgação)

 

Esse esqueleto de história é simplório demais para abarcar as infinitas circunvoluções e digressões do quebra-cabeça de Contra o dia. O anúncio do lançamento do livro, escrito pelo próprio autor, em 2006, é uma sinopse melhor: “Será um elenco de anarquistas, balonistas, apostadores, magnatas corporativos, entusiastas das drogas, inocentes e decadentes, matemáticos, cientistas loucos, físicos, ilusionistas, espiões, detetives, aventureiras e assassinos profissionais. Com participações especiais de Nikola Tesla, Bela Lugosi e Groucho Marx”. Agora sim. Os cerca de 50 personagens saem pelo mundo em aventuras misteriosas e deparam com aventuras misteriosas de outras pessoas em outros contextos. As linhas narrativas se entrelaçam à exaustão, em ações que correm do passado para o futuro em eventos prodigiosos: a inauguração da roda-gigante na Exposição Universal de Chicago em 1893, o surgimento de uma “estranha figura” no Ártico, uma convenção de aficionados dos dirigíveis, a busca por uma “arma do tempo”. Em meio aos trocadilhos, versinhos, piadas e alusões que vão de Einstein a Harry Potter, os temas que sempre animaram a obra de Pynchon: ordem versus caos, destino versus liberdade. 

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A cada novo livro de Pynchon ressurgem as divisões entre quem o tem como um dos maiores escritores vivos e os que o consideram o mais ilegível de todos os autores – vivos e mortos. A revista Time disse que a diferença de Contra o dia e uma torradeira é que “ao menos a torradeira faz torradas”. Exagero. Contra o dia não é brilhante como V., de 1963, ou O arco-íris da gravidade, de 1973, lançados no Brasil. Mas a habilidade de Pynchon para entremear histórias conspiratórias e mostrar as múltiplas camadas da realidade está lá, assim como seu sarcasmo e sua erudição. A compreensão é uma recompensa que ele oferece apenas a quem se esforça em decifrá-lo.


  thomas pynchon 

Contra o dia 

Tradução
Paulo Henriques Britto

 
Copyright © 2006 by Thomas Pynchon
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009. Proibida a venda em Portugal.
Título original
Against the day
Capa
Elisa V. Randow
Preparação
Carlos Alberto Bárbaro
Revisão
Renata Del Nero Carmen T. S. Costa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Pynchon, Thomas
Contra o dia / Thomas Pynchon ; tradução Paulo Henriques

Britto. 1a ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2012. Título original: Against the day.
isbn 978-85-359-2039-0
1.Ficção norte-americana i. Título. 12-01304
Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana 813.5
[2012]
Todos os direitos desta edição reservados à
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cdd-813.5
 
 
É sempre noite, senão a gente não precisaria de luz.
Thelonius Monk 

 
um
A luz acima da serra
 
“Agora, reduzir todo o cordame!”
“Ânimo... com jeito... muito bem! Preparar para zarpar!”
“Cidade dos Ventos, lá vamos nós!”
Foi em meio a tais exclamações animadas que o aeróstato de hidrogênio
Incon­
veniência, sua gôndola enfeitada com bandeirolas patrióticas, levando uma tripula- ção de cinco rapazes pertencentes à célebre agremiação aeronáutica denominada Amigos do Acaso, ascendeu célere no céu matinal e logo foi levado pelo vento sul.
Quando a nave atingiu a altitude de cruzeiro, e todos os acidentes geográficos deixados para trás na terra já haviam se reduzido a dimensões quase microscópicas, Randolph St. Cosmo, o comandante, ordenou: “Forme-se o Destacamento Especial de Voo”, e os rapazes, todos eles envergando seus elegantes uniformes de verão túnica com listras vermelhas e brancas e calça azul-celeste —, obedeceram com entusiasmo.
Naquele dia, seguiam em direção à cidade de Chicago, onde recentemente fora inaugurada a Exposição Internacional Colombina. Desde que fora dada a ordem, não se falava de outra coisa naquela tripulação empolgada e curiosa que não da célebre “Cidade Branca”, sua enorme roda-gigante, templos alabastrinos do comércio e da indústria, lagoas reluzentes e muitos milhares de maravilhas tais, de natureza tanto científica quanto artística, que lá os aguardavam.
“Oba!”, gritou Darby Suckling, debruçado sobre os cabos-guias para contem- plar o interior do país, transformado num borrão confuso e esverdeado, muitos metros abaixo, enquanto seus cabelos cacheados cor de estopa balançavam-se ao vento que
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atravessava a gôndola, como se formassem uma bandeira desfraldada a sota-vento. (Darby, como meus leitores fiéis hão de se lembrar, era o “caçulinha” da tripulação, atuando ao mesmo tempo como faz-tudo e mascote, e além disso assumia a difícil voz de soprano sempre que esses aeronautas adolescentes não conseguiam reprimir o ím- peto de cantar.) “Não vejo a hora de nós chegar lá!”, exclamou ele.
“Pelo qual você acaba de perder mais cinco pontos!”, ralhou uma voz severa bem próxima a seu ouvido, no momento exato em que ele foi de súbito agarrado por trás e arrancado dos cabos-guias. “Ou então, digamos, dez? Quantas vezes”, prosse- guiu Lindsay Noseworth, o subcomandante, famoso por sua impaciência para com todas as manifestações de frouxidão, “você já não foi advertido, Suckling, a respeito de formas gramaticais informais?” Com a destreza advinda de longa prática, virou Darby de cabeça para baixo e segurou o rapazinho peso-mosca pelos tornozelos, de- pendurado no espaço vazio estando a terra firme, naquele momento, tranquila- mente um quilômetro abaixo e pôs-se a lhe passar um sermão a respeito dos mui- tos males que advêm da frouxidão verbal, sendo um dos piores deles a facilidade com que tal prática pode levar ao uso de obscenidades, e coisas piores ainda. Como, po- rém, o tempo todo Darby gritava de terror, é duvidoso que aqueles conselhos provei- tosos tenham surtido algum efeito.
“Já chega, Lindsay”, aconselhou Randolph St. Cosmo. “O rapaz tem trabalho a fazer, e se você o assustar desse jeito, ele certamente não vai conseguir fazer muita coisa.”
“Está bem, baixote, ao trabalho”, murmurou Lindsay, recolocando em pé, com relutância, o apavorado Darby. Na qualidade de contramestre, responsável pela disci- plina a bordo, ele executava suas funções com uma severidade desprovida de humor que, a um observador imparcial, poderia muito bem parecer uma forma de mono- mania. Considerando-se, porém, a facilidade com que esta tripulação alegre encon- trava pretextos para fazer traquinices que mais de uma vez só por um triz não ha- viam resultado em desastre, o tipo de incidente que deixa um aeronauta paralisado de terror —, Randolph normalmente preferia que seu subordinado imediato pecasse mais pelo excesso.
Da outra extremidade da gôndola veio agora um estrondo prolongado, seguido de uma imprecação murmurada que fez Randolph, como sempre, franzir o cenho e levar a mão ao ventre. “Eu só tropecei numa dessas cestas de piquenique”, gritou o aprendiz de encarregado de manutenção, Miles Blundell, “aquela onde estava toda a louça, é o que parece... Acho que eu não vi a cesta, professor.”
“Talvez sua familiaridade”, arriscou Randolph, desolado, “a tenha tornado tem- porariamente invisível para você.” Essa repreensão, embora se aproximasse do cáus- tico, não era infundada, pois Miles, ainda que munido de boas intenções e possuidor do melhor coração de todo aquele pequeno grupo, sofria por vezes de uma confusão em seus processos motores, o que com frequência resultava em animação, mas em outras tantas vezes comprometia a segurança física da tripulação. Enquanto Miles
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catava os cacos da porcelana danificada, ria-se um certo Chick Counterfly, o mais novo membro da tripulação, que estava apoiado num estai, observando-o.
“Ah, ah”, exclamava o jovem Counterfly, “eu nunca vi ninguém mais desajeitado não! Ah, ah, ah!” Uma réplica irada subiu aos lábios de Miles, porém ele a conteve, dizendo a si próprio que, como os insultos e as provocações eram naturais em meio à classe da qual provinha o recém-chegado, era a seu passado insalubre que se deviam atribuir seus hábitos verbais.
“Por que é que você não me dá esses talheres chiques, Blundell?”, prosseguiu o jovem Counterfly. “Aí, quando nós chegar em Chicago, vamo lá no prego e...”
“Gostaria de chamar a sua atenção”, retrucou Miles, polido, “que todos os utensílios de mesa com a insígnia dos Amigos do Acaso são de propriedade da or- ganização, devendo ser mantidos a bordo da nave para utilização nas refeições oficiais.”
“Isso aqui tá parecendo uma escola dominical”, murmurou o jovem maganão.
Numa extremidade da gôndola, indiferente aos que iam e vinham pelo tom- badilho, batendo de vez em quando a cauda de modo expressivo contra as tábuas do assoalho, o focinho enterrado nas páginas de um volume do sr. Henry James, um cão de nenhuma raça em particular parecia absorto no texto à sua frente. Desde o dia em que os Amigos, no decorrer de uma missão na capital da nação (ver Os Amigos do Acaso e o pateta perverso), salvaram Pugnax, na época ainda um mero filhote, de um conflito furioso, à sombra do Monumento a Washington, entre duas matilhas rivais de cães sem dono, ele tinha o hábito de perscrutar as páginas de qualquer material impresso que porventura encontrasse a bordo do Inconveniên­ cia, desde abordagens teóricas das artes aeronáuticas até leituras bem menos apro- priadas, como folhetins sensacionalistas embora, ao que parecia, ele gostasse mais de narrativas sentimentais a respeito de sua própria espécie do que de histó- rias que destacassem os extremos do comportamento humano, que lhe pareciam um tanto extravagantes. Ele aprendera, com aquela facilidade característica dos cães, a virar as páginas do modo mais delicado, utilizando o focinho ou as patas, e todo aquele que o visse entretido dessa forma não podia deixar de perceber as mudanças de expressão em seu rosto, em particular as sobrancelhas excepcional- mente articuladas, que contribuíam para o efeito geral de interesse, envolvimento e impossível evitar a conclusão compreensão.
Já havendo se tornado um aeróstata experiente, Pugnax também aprendera, como o resto da tripulação, a sempre fazer as suas “necessidades” do lado da gôndola a favor do vento, o que resultava em surpresas para a população que habitava a super- fície lá embaixo, mas isso não se dava com frequência suficiente, e sequer despertava atenção suficiente, para que alguém tentasse registrar essas agressões celestiais excre- mentícias, muito menos coordenar os relatos a seu respeito. Elas simplesmente pene- travam a esfera do folclore, da superstição ou talvez, se ninguém se importar com o alargamento da definição, do religioso.
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Darby Suckling, havendo se recuperado de sua recente excursão na atmosfera, dirigiu-se ao canino estudioso: “Diz lá, Pugnax o que é que você está lendo agora, meu velho?”.
“Rr Rff-rff Rr-rr-rff-rrf-rrf”, respondeu Pugnax sem levantar a vista, e Darby, que como os outros tripulantes já se acostumara com a voz de Pugnax na verdade, mais fácil de entender do que alguns dos sotaques regionais que os rapazes ouviam em suas viagens —, interpretou aquela fala como “A princesa Casamassima”.
“Ah. Uma espécie de... romance italiano, imagino?”
“O livro”, ele foi prontamente informado pelo sempre alerta Lindsay Noseworth, que entreouvira aquele colóquio, “versa sobre o crescimento inexorável do Anarquis- mo Internacional, o qual, aliás, parece estar particularmente vicejante no destino desta viagem trata-se de um mal sinistro que espero não termos oportunidade de conhecer de algum modo mais imediato do que, tal como ocorre com Pugnax no momento, o contato inofensivo com um relato ficcional num livro.” Dava à palavra “livro” uma ênfase cujo nível de desprezo talvez só possa ser encontrado nas falas dos oficiais comandantes. Pugnax farejou rapidamente em direção a Lindsay, tentando detectar aquela combinação de “notas” olfativas que estava acostumado a encontrar em outros seres humanos. Porém, como sempre, aquele cheiro lhe escapava. Talvez houvesse uma explicação para o fenômeno, mas ele não sabia se deveria insistir até encontrá-la. As explicações, ao que lhe parecia, não eram coisas que os cachorros procurassem, ou mesmo tivessem direito de procurar especialmente os cães que passavam tanto tempo no céu, muito acima do inesgotável complexo de odores que floresce na superfície do planeta abaixo.
O vento, que até então vinha se mantendo constante, soprando a estibordo, começou a mudar de direção. Como tinham ordem de seguir diretamente até Chica- go sem atrasos, Randolph, após examinar uma carta aeronáutica do terreno que estavam a sobrevoar, gritou: “Suckling consulte o anemômetro Blundell e Counterfly, vão para o Parafuso”, referindo-se a um dispositivo de propulsão aérea do qual meus jovens leitores mais interessados em ciência talvez se lembrem, por terem lido as aventuras anteriores dos nossos rapazes (Os Amigos do Acaso em Krakatoa, Os Amigos do Acaso em busca de Atlântida), usado para aumentar a velocidade de cru- zeiro da nave Inconveniência inventado pelo velho amigo da turma, o professor Heino Vanderjuice de New Haven, sendo movido por um engenhoso motor de turbi- na cuja fornalha era aquecida queimando-se o excesso de hidrogênio extraído do balão através de certas válvulas especiais —, embora a invenção, como era de se esperar, fosse criticada pelos inúmeros rivais do dr. Vanderjuice, os quais alegavam que ela não passava de um moto-perpétuo, que claramente violava as leis da termodinâmica.
Miles, com seus problemas de coordenação motora, e Chick, cuja falta de em- penho não era menos conspícua, ocuparam seus postos diante dos painéis de contro- le do aparelho, enquanto Darby Suckling, nesse ínterim, galgava os enfrechates e as enxárcias do gigantesco envelope elipsoidal do qual pendia a gôndola, até chegar ao
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alto, onde o fluxo aéreo corria sem interrupção, para obter, num anemômetro de Robinson, informações precisas a respeito do vento, para calcular a velocidade da na- ve, transmitindo essas informações à ponte de comando via um bilhete colocado dentro de uma bola de tênis amarrada a uma linha. Os leitores hão de lembrar que esse método de transmitir informações fora adotado pela tripulação durante sua pas- sagem rápida, ainda que inconclusiva, pelo território mexicano, onde a viram ser utilizada pelos maus elementos que desperdiçam suas existências fazendo apostas em partidas de pelota basca. (Para os leitores que estão tendo seu primeiro contato com nosso grupo de jovens aventureiros, é preciso deixar claro desde já que talvez com exceção de Chick Counterfly, ainda não suficientemente conhecido nenhum deles jamais adentraria a atmosfera moralmente envenenada de um “frontón”, o nome dado a tais antros naquelas paragens, se isso não fosse essencial para as atividades de levantamento de informações que os Amigos haviam sido contratados para realizar pelo Ministério do Interior do presidente Porfirio Díaz. Para mais detalhes a respeito dessa aventura, ver Os Amigos do Acaso no Velho México.)
Embora o perigo extremo fosse evidente para todos, o entusiasmo de Darby na execução de sua tarefa criava, como sempre, uma aura mágica em torno de seu vulto infantil, que parecia protegê-lo, ainda que não do sarcasmo de Chick Counterfly, o qual gritava para o mascote enquanto ele subia: “Ê, Suckling! Só mesmo um boboca arrisca a vida pra ver a velocidade do vento!”.
Ao ouvir isso, Lindsay Noseworth franziu o cenho, perplexo. Mesmo fazendo-se os descontos necessários para um rapaz com tal passado a mãe, dizia-se, desapare- cera quando ele ainda era um bebê o pai se tornara um vagabundo que caminha- va sem rumo pela antiga Confederação —, a insistência de Counterfly em lançar insultos gratuitos começara a constituir uma ameaça à sua situação de novato nos Amigos do Acaso, se não ao moral do grupo.
Duas semanas antes, à margem de um rio de águas negras no extremo Sul, quando os Amigos tentavam resolver uma questão dolorosa e jamais resolvida desde os tempos da Rebelião, de trinta anos antes sobre a qual ainda não seria aconselhá- vel registrar-se nada nesta página —, Chick aparecera uma noite no acampamento dos rapazes em estado de pavor extremo, sendo perseguido por um grupo de cavalei- ros envoltos em vestes brancas e sinistros capuzes pontudos, que foram de imediato reconhecidos pelos Amigos como membros da temível “Ku Klux Klan”.
Sua história, no que foi possível compreender de sua típica voz de adolescente e suas abruptas mudanças de registro, exacerbada pelo perigo da situação, era a que se segue. O pai de Chick, Richard, mais conhecido como “Dick”, originário do Norte, havia alguns anos atuava na antiga Confederação, envolvendo-se numa série de pro- jetos comerciais, nenhum dos quais, lamentavelmente, tivera sucesso, e muitos dos quais, há que registrar, haviam-no levado até bem próximo, como se diz, dos portões da penitenciária. Por fim, quando estava prestes a chegar um grupo de cidadãos orga- nizado pelo xerife, que ficara sabendo de seu plano de vender o estado do Mississippi
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a um misterioso consórcio chinês sediado em Tijuana, México, “Dick” Counterfly escafedeu-se mais que depressa e desapareceu na noite, deixando para o filho uma pequena quantia em espécie e um conselho amoroso: “Vou ter que ‘vispar-me’, mo- leque se arranjar emprego, escreva”. A partir daí, Chick passou a viver com uma mão na frente e outra atrás, até que, no lugarejo de Thick Bush, não muito longe do acampamento dos Amigos, alguém, reconhecendo-o como filho de um famigerado aventureiro nortista, o qual estava sendo procurado por toda parte, sugeriu que lhe fosse aplicada a tradicional punição de ter o corpo coberto de piche e depois ser obri- gado a rolar sobre penas de galinha.
“Por mais que nos inclinemos a oferecer nossa proteção”, disse Lindsay ao jo- vem assustado, “quando estamos em terra firme somos obrigados a seguir os termos da nossa Carta, segundo a qual jamais podemos interferir nos costumes legais de qualquer localidade onde por acaso tenhamos pousado.”
“Vocês não é mesmo daqui”, replicou Chick, um tanto áspero. “Aqui quando eles quer pegar alguém, não tem nada a ver com legal, não é sebo nas canelas, nortista, porque se ficar o bicho come.”
“As pessoas educadas”, Lindsay mais que depressa o corrigiu, “dizem ‘vocês não são’ e ‘eles querem’.”
“Noseworth, por piedade!”, exclamou Randolph St. Cosmo, que o tempo todo olhava de relance para os vultos encapuzados que circundavam o acampamento, levando na mão archotes que iluminavam cada dobra e ruga de suas túnicas toscas com uma precisão quase teatral, projetando sombras fantasmagóricas entre os pés de nissa, cipreste e cária. “Não há mais o que discutir este rapaz deve receber asilo e, se assim o desejar, ser admitido em caráter provisório como membro de nossa Unidade. Não há dúvida de que ele não terá futuro algum aqui.”
Todos passaram aquela noite em claro, para evitar que fagulhas oriundas dos archotes da turba caíssem perto do aparelho gerador de hidrogênio, o que resultaria em devastação. Com o tempo, porém, os labregos de traje macabro, talvez por temor supersticioso àquela maquinaria, foram se dispersando para suas casas. E Chick Coun- terfly, para o bem ou para mal, permaneceu...
O Parafuso em pouco tempo acelerou a nave de tal modo que sua velocidade, acrescida à do vento que soprava diretamente à popa, tornava-a quase invisível para os observadores situados no solo. “Estamos voando a quase dois quilômetros por mi- nuto”, disse Chick Counterfly do console de controle, sem conseguir disfarçar um tom de admiração temerosa.
“Desse jeito podemos chegar a Chicago antes do anoitecer”, calculou Randolph St. Cosmo. “Você está bem, Counterfly?”
“Supimpa!”, exclamou Chick.
Como ocorria com a maioria dos “calouros” da organização, no início a maior dificuldade para Chick era menos a velocidade do que a altitude, e também as mudan- ças de pressão atmosférica e temperatura por ela acarretadas. Durante seus primeiros
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voos, ele cumpriu suas obrigações sem se queixar, porém um dia foi encontrado remexendo sem autorização um armário que continha diversas peças de indumentá- ria ártica. Quando Lindsay Noseworth o surpreendeu, a única coisa que o rapaz pôde balbuciar em defesa própria foi: “F-f-frio!”.
“Não vá você pensar”, esclareceu Lindsay, “que a bordo do Inconveniência você está na esfera do contrafactual. Aqui pode não haver mangues nem linchamentos, mas não obstante somos obrigados a conviver com as exigências do mundo real, entre as quais se destaca a diminuição da temperatura com o aumento da altitude. Aos poucos, a sua sensibilidade com relação ao frio haverá de se moderar, e enquanto isso” jogando-lhe um abrigo preto de pele de cabra japonesa, em que se liam as palavras propriedade dos a. do a., num tom vivo de amarelo, em estêncil, nas cos- tas —, “isso deve ser considerado um traje de transição, até o momento em que você se adaptar a essas altitudes e, se tiver sorte, aprender as lições ensinadas pela vida em tais condições.”
“Resumindo”, confidenciou-lhe Randolph mais tarde, “subir é como ir para o norte.” E ficou piscando, como quem aguarda um comentário.
“Mas”, ocorreu a Chick, “quem segue sempre pro norte acaba passando por ci- ma do polo, e aí começa a voltar pro sul.”
“É.” O comandante do aeróstato deu de ombros, constrangido.
“Isso quer dizer que quem sobe muito acaba
descendo?”
“Shh!”, alertou-o Randolph St. Cosmo.
“Chegando perto da superfície de
outro planeta, seria isso?”, insistiu Chick. “Não exatamente. Não. Outra ‘superfície’, sim, porém terrestre. Muitas vezes,
para infelicidade nossa, terrestre até demais. Agora, mais do que isso, eu não gosta- ria —”
“São os mistérios da profissão”, arriscou Chick. “Você vai ver. Com o tempo, é claro.” 
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Fonte:  http://revistaepoca.globo.com/Mente-aberta/noticia/2012/04/nova-conspiracao-de-pynchon.html

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