Morar sozinho já foi castigo ou sinal de fracasso social. Agora, tornou-se um prêmio para quem pode investir em si mesmo
A tradição ocidental não deixa dúvida: a solidão é a pior das experiências. A Bíblia diz
que Adão, sozinho, foi incapaz de usufruir o paraíso. Pediu a Deus que
lhe desse uma companheira. Na Grécia Clássica, 500 anos antes de Cristo,
a punição reservada aos políticos que conspiravam contra a república
era a “morte em vida”, o exílio, que os atenienses chamavam de
ostracismo. Com base nessa percepção, criou-se, ao longo dos séculos,
uma imagem profundamente negativa das pessoas que viviam sozinhas. Era o
ermitão atormentado, geralmente louco, de quem gente normal tinha medo
de se aproximar. Ou o misantropo, que se refugiava na solidão por
desconfiança e medo daqueles que o cercavam. Até recentemente, pessoas
normais, em quaisquer circunstâncias, preferiam morar em grupo – na
família, no clã, entre os amigos – a viver apenas com elas mesmas.
Jean-Paul Sartre, o filósofo francês, sentenciou que “o inferno são os
outros”, mas, para a maioria, o sofrimento supremo costumava ser a
ausência dos outros.
Por várias razões, isso mudou.
Quando fecha a porta de sua casa, a arquiteta Camila Klein entra numa
espécie de santuário. Liga o som, acende os abajures, deita-se para ler
e, assim, recarrega devagar as baterias. Ela tem 32 anos e mora sozinha
desde que deixou a família em São Sebastião do Caí, no interior do Rio
Grande do Sul, para tentar carreira em São Paulo, seis anos atrás. Por
alguns meses, chegou a compartilhar um apartamento com uma amiga e,
depois, com o marido. Durou pouco. Hoje, está divorciada, é dona de um
escritório com 20 funcionários e diz que, morando sozinha, aprendeu a
olhar para dentro e a entender seus sentimentos, necessidades e
propósitos. “Hoje, cuido mais de mim, reflito sobre o que me faz bem e
seleciono melhor as pessoas com quem quero conviver”, diz Camila.
Essa pausa solitária – uma espécie de contraponto à rotina estressante e
hipersocial da vida urbana – é um dos motivos que têm levado milhões de
pessoas, no mundo inteiro, a optar por viver sós. Ao contrário do
estigma do passado, que associava isso a alguma espécie de incapacidade
social, agora se trata de uma escolha soberana, determinada por desejos
ou por circunstâncias que se tornam cada vez mais comuns. Viver em sua
própria casa sem a presença compulsória dos outros converteu-se numa
espécie de prêmio à individualidade que apenas alguns podem se dar, mas
muitos almejam. “Morar sozinho, livre das demandas dos outros, permite
dar mais atenção a si mesmo, fazer o que quer, na hora e do jeito que
achar melhor”, afirma Eric Klinenberg, professor de sociologia da
Universidade Nova York. “É um estilo de vida que nos ajuda a descobrir
mais sobre nós mesmos e a apreciar o prazer de uma boa companhia.
Paradoxalmente, morar sozinho pode ser exatamente do que uma pessoa
precisa para se conectar consigo mesma e com os outros.”
Klinenberg investigou as motivações dos adultos que vivem sozinhos em
diferentes países – foram 300 entrevistas, com pessoas de idades e
classes sociais diferentes. Com base nisso e numa revisão da literatura
acadêmica sobre o assunto, escreveu o livro Going solo: the extraordinary rise and surprising appeal of living alone (Editora Penguin, US$ 18, disponível na Amazon), ainda inédito no Brasil. O título aproximado em português seria Vida solo: o extraordinário crescimento e o apelo surpreendente de viver só.
Em entrevista a ÉPOCA, Klinenberg disse que as pessoas estão
encontrando equilíbrio e felicidade na solidão e isso representa uma
transformação radical em relação ao passado. Nas sociedades modernas,
diz ele, o culto ao individualismo encoraja as pessoas a morar sozinhas,
e a riqueza econômica torna possível essa experiência – algo que outros
profissionais já perceberam, inclusive no Brasil. “Morar sozinho é
sinal de status, não uma declaração de rejeição”, afirma Sérgio Lage
Carvalho, sociólogo da Universidade de São Paulo, autor de uma tese
sobre solidão e modernidade. Ana Bock, professora de psicologia social
da PUC de São Paulo, também registrou a mudança. “Agora, as pessoas que
vivem sozinhas são vistas como bem-sucedidas, responsáveis e
descoladas”, diz ela.
Klinenberg classifica os moradores solitários em quatro tipos básicos:
· Jovens em fase de “adultescência”
Eles já são grandinhos o suficiente para morar na casa da família, mas ainda se consideram jovens demais para pensar em casamento. Querem cuidar do próprio nariz e pensar em seus objetivos de vida. Não se sentem solitários, mas donos de um espaço prazerosamente livre para desfrutar o amadurecimento pessoal e profissional. Trabalham muito, ficam pouco em casa e encontram amigos com frequência. Mas sabem que essa é uma fase transitória.
Eles já são grandinhos o suficiente para morar na casa da família, mas ainda se consideram jovens demais para pensar em casamento. Querem cuidar do próprio nariz e pensar em seus objetivos de vida. Não se sentem solitários, mas donos de um espaço prazerosamente livre para desfrutar o amadurecimento pessoal e profissional. Trabalham muito, ficam pouco em casa e encontram amigos com frequência. Mas sabem que essa é uma fase transitória.
· Solteiro por convicção
Adora fazer o que quer, quando quer, como quer. Não gosta de abrir mão das próprias vontades e manias para se adequar às dos outros, sejam eles filhos, marido/mulher ou companheiros de apartamento. Mas não são antissociais. Pelo contrário: adoram ir a eventos, curtir a cidade, participar das redes sociais na internet. E, sobretudo, receber. Acreditam que a solidão traz autoconhecimento e valorizam o tempo em que estão acompanhados.
Adora fazer o que quer, quando quer, como quer. Não gosta de abrir mão das próprias vontades e manias para se adequar às dos outros, sejam eles filhos, marido/mulher ou companheiros de apartamento. Mas não são antissociais. Pelo contrário: adoram ir a eventos, curtir a cidade, participar das redes sociais na internet. E, sobretudo, receber. Acreditam que a solidão traz autoconhecimento e valorizam o tempo em que estão acompanhados.
· Divorciado bem resolvido
Diz que é possível se sentir mais sozinho num casamento falido do que num apartamento vazio. Não quer mais o desgaste da convivência. Seu estoque de tolerância sob o mesmo teto acabou. Sua ideia é usufruir apenas a parte gostosa dos próximos namoros, com limites territoriais bem definidos. Receia que seu espaço e sua independência sejam tolhidos pelo outro.
· Viúvo independente
Na maior parte dos casos, são mulheres que sobrevivem a seus maridos. Elas não aceitam morar na casa dos filhos, batem o pé para preservar a autonomia conquistada. Não querem cuidar dos netos ou de tarefas domésticas. Adoram ser voluntárias em projetos beneficentes, passear com as amigas e se sentir produtivas. A relação social se amplia para além da família. Vizinhos e a comunidade atuam como apoio para que essa idosa continue independente.
Diz que é possível se sentir mais sozinho num casamento falido do que num apartamento vazio. Não quer mais o desgaste da convivência. Seu estoque de tolerância sob o mesmo teto acabou. Sua ideia é usufruir apenas a parte gostosa dos próximos namoros, com limites territoriais bem definidos. Receia que seu espaço e sua independência sejam tolhidos pelo outro.
· Viúvo independente
Na maior parte dos casos, são mulheres que sobrevivem a seus maridos. Elas não aceitam morar na casa dos filhos, batem o pé para preservar a autonomia conquistada. Não querem cuidar dos netos ou de tarefas domésticas. Adoram ser voluntárias em projetos beneficentes, passear com as amigas e se sentir produtivas. A relação social se amplia para além da família. Vizinhos e a comunidade atuam como apoio para que essa idosa continue independente.
No Brasil, ainda estamos aprendendo a viver sem dividir a cozinha e o
banheiro. Apenas 12,8% dos brasileiros moram sozinhos, contra 28% nos
Estados Unidos e 47% na Suécia. Os dados, porém, sugerem que o fenômeno é
crescente e irreversível. No ano passado, pela primeira vez na história
do Brasil, o número de “domicílios unipessoais” ultrapassou o de
famílias com cinco integrantes. De acordo com o censo de 2010, são quase
7 milhões de pessoas (na maioria mulheres) que vivem sozinhas – um
salto de 30% em relação à década passada e três vezes mais que 1991 (leia o quadro abaixo).
O boom dos domicílios com apenas um morador começou há pouco mais de
dez anos, com o crescimento econômico do país e o aumento no grau de
instrução. “Essas duas tendências aceleraram o movimento migratório para
os centros urbanos”, afirma Jefferson Mariano, analista socioeconômico
do IBGE. Segundo ele, há indícios de que a tendência a morar só seja
permanente.
O censo brasileiro (e mundial) dos que vivem sozinhos
Nas últimas duas décadas, triplicou no Brasil o número de pessoas que moram sozinhas
Nas últimas duas décadas, triplicou no Brasil o número de pessoas que moram sozinhas
Os arquitetos reunidos num grupo chamado SuperLimão atendem clientes em
busca de soluções para moradias com poucos metros quadrados. Os pedidos
mais recorrentes são painéis que isolam ou integram ambientes, além de
móveis flexíveis (uma mesa de jantar com rodinhas pode virar um bufê
encostado na parede). “As pessoas que moram sozinhas adoram receber
amigos em casa”, afirma o sócio do escritório, Thiago Rodrigues. Ele diz
que o mercado imobiliário deveria ser mais agressivo para acompanhar
essas mudanças. Sugere que se troque o (normalmente) ocioso salão de
festas por um lounge, parecido com um lobby de hotel, onde os moradores
sozinhos possam receber amigos como se estivessem na sala da casa. Há
base demográfica para esse tipo de sugestão: um estudo coordenado por
Duane Alwin e Philip Converse, da Universidade de Michigan, concluiu que
aqueles que moram sozinhos têm uma vida social mais ativa, para
contrabalançar a casa vazia.
A farmacêutica goiana Lúcia Carvalho, de 60 anos, está aí para provar.
Duas vezes divorciada e com filhas casadas, ela poderia ser uma daquelas
sogras de caricatura que fincam raízes na casa da prole. Em vez disso,
Lúcia mora sozinha, virou síndica de seu condomínio, inscreveu-se num
curso de fotografia, associou-se a um grupo de dança de salão com três
encontros semanais e faz viagens ao exterior com os amigos. O último
namorado forçou a barra para morarem juntos, e a fila andou. “Já gastei
minha cota de paciência para conviver”, diz Lúcia. “É gostoso ter um
companheiro, mas não vale a pena abrir mão de minha independência.”
Klinenberg afirma que quatro acontecimentos (que ele chama de
revoluções) ajudam a explicar a tendência global a morar sozinho: (1) a
independência da mulher e sua presença no mercado de trabalho, (2) a
melhoria das comunicações, (3) a onda migratória para os centros urbanos
e, finalmente, (4) o aumento da longevidade. Desses, a entrada das
mulheres no mercado de trabalho e a longevidade são os mais marcantes.
Com independência financeira, as mulheres passaram a dedicar mais tempo
aos estudos e ao trabalho. Adiaram o casamento e a maternidade – ou até
desistiram deles. Desde 1960, cresceu o número de divórcios e caiu a
taxa de natalidade. A pílula anticoncepcional também deu mais liberdade
às mulheres jovens, ao mesmo tempo que empurrou as curvas de fertilidade
para baixo. Isso tudo se reflete na escolha cada vez mais comum de
morar sozinha. Klinenberg diz que os jovens ganharam impulso para sair
da casa dos pais com a onda libertária dos anos 1970. Assumir
responsabilidades e ter seu espaço particular passou a ser o marco da
transição para o mundo adulto. Essa mudança de costumes, somada à
prosperidade brasileira dos últimos anos, faz com que, gradualmente,
comece a ser malvista por aqui a opção de viver sob as asas dos pais (ou
em clima de república universitária) depois de certa idade.
Além da revolução feminina e da onda jovem de sair de casa, o outro
fator estatístico que ampara o crescimento das moradias de uma alma só é
a longevidade. Em um século, o mundo ganhou 30 anos a mais na
expectativa de vida média. A grande maioria das mulheres sobrevive aos
maridos e não aceita perder a autonomia. As pesquisas mostram que idosos
que vivem sozinhos são mais felizes e satisfeitos que aqueles obrigados
a se mudar para a casa de um parente ou viver num asilo. A empresária
Maria Fernanda Salles ilustra essa tendência. Ela tem 83 anos e ficou
viúva 15 anos atrás. Recusou todos os convites da filha para que
morassem juntas. Maria Fernanda dirige uma confecção e uma lavanderia
para roupas de cama, mesa e banho – e adora o sossego de sua própria
casa. “Então, para que largar o meu cantinho?”, diz ela.
Ao longo das 288 páginas de seu livro, Klinenberg faz a mesma pergunta
retórica – e chega, repetidamente, à conclusão de que não é o caso de
voltar atrás. Ele observa que morar sozinho dá tempo e espaço para
apreciar a companhia dos outros. O encontro com familiares e amigos
ganha outra dimensão porque tem hora para acabar. Quando as visitas
saem, é hora de colocar um pijama velho, retomar o livro ou ver um filme
sem interrupções. Felipe, Camila, Lúcia e Maria Fernanda – cujos
depoimentos ilustram esta reportagem – sentem falta de alguém em casa em
situações específicas, como a hora de fazer as tarefas domésticas ou
quando acordam doentes e gostariam de receber um mimo. Mas são momentos
de exceção. Em geral, quando apagam as luzes de casa estão tranquilos
com sua escolha. Ela mostra que a sociedade está se organizando de novas
formas. Isso não representa a dissolução da família ou o triunfo de um
modo egoísta de viver. As pessoas estão apenas usufruindo as
possibilidades abertas pela liberdade e pela prosperidade. “Optar por
morar sozinho é uma conquista coletiva”, diz Klinenberg. “Viver sozinho
não tem nada a ver com a decomposição da vida coletiva e o fim dos
compromissos sociais. Estar só nos faz pensar em como podemos viver
melhor juntos. Essa não é uma tendência transitória. As nações que
perceberam isso antes estarão preparadas para as necessidades de seus
cidadãos.”
---------------------------------
NATHALIA ZIEMKIEWICZ (TEXTO) E FILIPE REDONDO (FOTOS)
Fonte: Revista ÉPOCA on line, 12/04/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário