sábado, 28 de abril de 2012

A utopia dos índices de felicidade

A utopia dos índices de felicidade (Foto: Ilustração: Shutterstock)

Os estudos sobre o bem-estar como indicador de desenvolvimento florescem entre os economistas. Mas há muitas razões para duvidar que eles tenham aplicação prática

RODRIGO TURRER E JULIANO MACHADO

Pense no seguinte exemplo. Um país está em 18º no ranking de PIB per capita e tem o 12º melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. O outro, para os mesmos indicadores, ocupa respectivamente apenas a 53ª e a 84ª posições. É lógico deduzir que os cidadãos do primeiro país desfrutam melhores condições de vida. Agora, pegue esses mesmos países e os compare pelo índice de bem-estar do Relatório de Felicidade Global – coordenado pelo renomado economista americano Jeffrey Sachs e divulgado neste mês durante a Conferência de Bem-Estar e Felicidade das Nações Unidas. Nosso país inicial, o Japão, aparece num modesto 44º lugar. O outro, o Brasil, dá um salto de qualidade e figura em 25º. O ranking é uma média dos últimos sete anos de uma pesquisa feita pelo Instituto Gallup em 156 países. O estudo é baseado em entrevistas individuais com perguntas do tipo: “Tomando sua vida como um todo, você é feliz?”; “Você estava feliz ontem?”; e “Imagine uma escada que vá de 0 a 10, em que cada degrau seja uma melhora na sua vida. Em qual degrau você estaria?”. O.k., os brasileiros se dizem mais felizes que os japoneses, mesmo vivendo, na média, com um padrão de vida mais baixo. Mas para que serve esse tipo de dado?
A economia já foi conhecida como a “ciência lúgubre”, como a batizou o satírico ensaísta escocês do século XIX Thomas Carlyle. Mas os economistas parecem que se cansaram dessa alcunha. Em vez de se deprimir com tarefas inglórias como teorizar sobre a crise financeira, muitos deles, como Sachs, passaram a investir no caminho da felicidade. A proposta de um índice global de felicidade será um dos temas da Rio+20, a conferência da ONU sobre desenvolvimento sustentável que ocorrerá em junho, no Rio de Janeiro. Será o auge de um movimento que tem ganhado força nos últimos anos. Em 2008, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, encomendou um estudo sobre formas de medir o bem-estar da população, como uma alternativa ao que chamou de “culto ao mercado e aos resultados econômicos positivos a qualquer custo”. A equipe responsável pela pesquisa incluía dois ganhadores do Prêmio Nobel de Economia: o americano Joseph Stiglitz e o indiano Amartya Sen. O governo dos Estados Unidos também começou a elaborar seu próprio relatório de felicidade nacional, sob o aconselhamento de outro Nobel de Economia, Daniel Kahneman. No Brasil, os economistas Fabio Gallo e Wesley Mendes criaram o Núcleo de Estudos da Felicidade na Fundação Getulio Vargas e começaram as pesquisas para fazer um índice adaptado à realidade brasileira.
O argumento central de todos é que o desenvolvimento de uma nação e o planejamento das políticas públicas de um governo devem levar em conta o grau de satisfação das pessoas com sua vida. “Medir o bem-estar é importante porque os indicadores à disposição dos governos não são suficientes. Um novo índice pode suprir essa necessidade”, diz o economista canadense John Helliwell, um dos responsáveis pelo relatório da ONU, ao lado de Sachs e Richard Layard. Em resposta à difícil missão de definir as variáveis que devem ter mais peso na medição da felicidade, os teóricos do bem-estar dizem que é possível identificar fatores objetivos. O relatório da ONU divide as causas de uma vida feliz entre fatores “externos” e “pessoais”. No primeiro grupo estão a renda, o emprego e o nível de governança de um país. No outro constam a saúde física e mental, a educação, a convivência familiar e as influências de idade e gênero.
Qual lado tem mais importância? Os pesquisadores se debruçam com mais atenção sobre a relação entre dinheiro e bem-estar. Em 1974, um estudo do economista Richard Easterlin chegou a uma conclusão que ficou conhecida como Paradoxo de Easterlin. Até um determinado momento dentro de uma sociedade, os mais ricos são em média mais felizes que os mais pobres. Mas há um ponto em que os níveis de felicidade da população não aumentam, ainda que haja um enriquecimento geral. Easterlin se baseou em um fato: os Estados Unidos viveram um período de grande crescimento econômico nas décadas de 1950 e 1960, mas os americanos mais ricos não se declaravam mais felizes.
Uma das hipóteses para entender esse fenômeno é que as pessoas comparam sua riqueza com a das outras. A partir do ponto em que a prosperidade geral aumenta, a satisfação de ser mais rico é menor. Outra possível explicação está na capacidade humana de adaptação. As pessoas rapidamente se acostumam com as melhorias em sua qualidade de vida, e isso deixa de ser um motivo para ter mais felicidade. Isso não quer dizer que os países mais ricos sejam menos felizes. A comparação do início do texto entre Brasil e Japão também pode levar a essa suposição, mas é enganosa. Basta notar que, em geral, as nações mais desenvolvidas, onde a renda per capita é maior e o IDH é mais alto, ocupam o topo do ranking da felicidade (leia o quadro abaixo). E os países com os piores níveis de renda e acesso precário a educação e saúde estão entre os mais infelizes do mundo.
Apesar da proliferação de pesquisas sobre a economia da felicidade, há uma corrente expressiva de economistas que consideram a construção de um índice de felicidade uma mera perfumaria acadêmica. Uma das limitações do índice é justamente sua almejada transformação em instrumento de planejamento de políticas públicas. Nenhum pesquisador conseguiu até agora dizer, com clareza, de que maneira um Estado pode melhorar a assistência à população ao saber que o nível de felicidade é 2 ou 8 numa escala de 0 a 10.
“Os estudos sobre a felicidade não conseguem dizer o que deixa as pessoas felizes, mas mostram o que as deixa infelizes: desemprego, falta de oportunidades, doenças, incapacidade de educar os filhos. Para resolver a maioria desses problemas, as autoridades já têm mecanismos suficientes com os indicadores atuais”, afirma o economista americano Justin Wolfers, da Universidade da Pensilvânia, autor de uma pesquisa que associa a felicidade diretamente a um melhor padrão de vida. “Basta querer e agir no ponto certo.” Um índice de felicidade, pelo menos da maneira como as pesquisas vêm sendo conduzidas até agora, daria uma contribuição ínfima para a melhoria de serviços públicos, campo em que os governos têm capacidade de interferir diretamente na qualidade de vida de um cidadão – e indicadores socioeconômicos só justificam sua existência quando são úteis na formulação de políticas públicas.
Outro problema do índice de felicidade, segundo seus críticos, é a leitura errada que pode gerar a boa colocação nos índices de bem-estar de países com graves problemas sociais. É o caso da Venezuela. No 60º lugar em renda per capita e no 73º em IDH, o país sofre com a criminalidade fora de controle – a taxa de homicídios foi de 67 por 100 mil habitantes, a mais alta da América do Sul. Mesmo assim, os venezuelanos figuram como os 19ºs mais felizes do mundo. Essa discrepância é atribuída por alguns pesquisadores à ideia de que uma melhora nas condições de vida – ainda que pequena – em países de desenvolvimento intermediário pode gerar uma ascensão social capaz de elevar o nível de felicidade. Esse fenômeno pode levar a uma consequência perigosa: a acomodação do poder público desses países em relação à qualidade dos serviços oferecidos à população. “Um governo que aceite um dado nível de felicidade para desenvolver suas políticas pode considerar aceitável um padrão de vida miserável da população, desde que ela esteja feliz na miséria”, diz o belga Marc de Vos, professor da Universidade de Gent e um crítico contumaz dos teóricos da felicidade.
Até hoje, o único país que pôs a qualidade de vida como prioridade de governo foi o Butão, uma pequena nação asiática de 716 mil habitantes, encravada entre a Índia e a China, no limite oriental das cordilheiras do Himalaia. Em 1972, o então rei butanês, Jigme Singye Wangchuck, decidiu criar um método para medir a felicidade de seus súditos. Depois da realização de alguns estudos pontuais, o Butão oficializou em 2010 o índice de Felicidade Interna Bruta (FIB), que vai de 0 a 1. O país alcançou a marca de 0,743, e 41% dos butaneses entrevistados se declararam felizes. O questionário do FIB é composto de mais de 270 questões, organizadas em nove pilares, de saúde e educação a espiritualidade e ação comunitária. Na lista há questões como: “Você conhece as lendas de seu povo e a história de seus antepassados?”; “Você recicla?”; e “Quanto você confia nos seus vizinhos?”.
O Butão não está incluído na pesquisa global do Gallup. Outros levantamentos o apontam entre as nações mais felizes do mundo. Pelos indicadores tradicionais, a situação butanesa não é das mais animadoras: tem apenas o 127º PIB per capita e está em 141º no ranking de IDH. A renda média dos butaneses é de US$ 110 por mês. A maioria não ganha o suficiente para pagar impostos, só cobrados sobre rendas superiores a cerca de US$ 2 mil. Não parece ser o melhor dos parâmetros para dizer se o índice de felicidade vale ou não a pena. Mesmo que fosse possível medir o bem-estar social de forma objetiva, nenhum governo conseguiria agir em todas as áreas que determinam a felicidade individual. Por enquanto, a receita tradicional continua mais confiável. Se os Estados se preocuparem em oferecer melhores condições de vida a seus cidadãos para que eles busquem a felicidade, boa parte do problema estará resolvida. 
 

O que dizem os indicadores (Foto: reprodução) 
 
 
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2012/04/utopia-dos-indices-de-felicidade.html

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