Os estudos sobre o bem-estar como indicador de desenvolvimento florescem entre os economistas. Mas há muitas razões para duvidar que eles tenham aplicação prática
Pense no seguinte exemplo. Um país está em 18º no ranking de PIB per capita e
tem o 12º melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. O
outro, para os mesmos indicadores, ocupa respectivamente apenas a 53ª e a
84ª posições. É lógico deduzir que os cidadãos do primeiro país
desfrutam melhores condições de vida. Agora, pegue esses mesmos países e
os compare pelo índice de bem-estar do Relatório de Felicidade Global –
coordenado pelo renomado economista americano Jeffrey Sachs e divulgado
neste mês durante a Conferência de Bem-Estar e Felicidade das Nações
Unidas. Nosso país inicial, o Japão, aparece num modesto 44º lugar. O
outro, o Brasil, dá um salto de qualidade e figura em 25º. O ranking é
uma média dos últimos sete anos de uma pesquisa feita pelo Instituto
Gallup em 156 países. O estudo é baseado em entrevistas individuais com
perguntas do tipo: “Tomando sua vida como um todo, você é feliz?”; “Você
estava feliz ontem?”; e “Imagine uma escada que vá de 0 a 10, em que
cada degrau seja uma melhora na sua vida. Em qual degrau você estaria?”.
O.k., os brasileiros se dizem mais felizes que os japoneses, mesmo
vivendo, na média, com um padrão de vida mais baixo. Mas para que serve
esse tipo de dado?
A economia já foi conhecida como a “ciência lúgubre”, como a batizou o
satírico ensaísta escocês do século XIX Thomas Carlyle. Mas os
economistas parecem que se cansaram dessa alcunha. Em vez de se deprimir
com tarefas inglórias como teorizar sobre a crise financeira, muitos
deles, como Sachs, passaram a investir no caminho da felicidade. A
proposta de um índice global de felicidade será um dos temas da Rio+20, a
conferência da ONU sobre desenvolvimento sustentável que ocorrerá em
junho, no Rio de Janeiro. Será o auge de um movimento que tem ganhado
força nos últimos anos. Em 2008, o presidente da França, Nicolas
Sarkozy, encomendou um estudo sobre formas de medir o bem-estar da
população, como uma alternativa ao que chamou de “culto ao mercado e aos
resultados econômicos positivos a qualquer custo”. A equipe responsável
pela pesquisa incluía dois ganhadores do Prêmio Nobel de Economia: o
americano Joseph Stiglitz e o indiano Amartya Sen. O governo dos Estados
Unidos também começou a elaborar seu próprio relatório de felicidade
nacional, sob o aconselhamento de outro Nobel de Economia, Daniel
Kahneman. No Brasil, os economistas Fabio Gallo e Wesley Mendes criaram o
Núcleo de Estudos da Felicidade na Fundação Getulio Vargas e começaram
as pesquisas para fazer um índice adaptado à realidade brasileira.
O argumento central de todos é que o desenvolvimento de uma nação e o
planejamento das políticas públicas de um governo devem levar em conta o
grau de satisfação das pessoas com sua vida. “Medir o bem-estar é
importante porque os indicadores à disposição dos governos não são
suficientes. Um novo índice pode suprir essa necessidade”, diz o
economista canadense John Helliwell, um dos responsáveis pelo relatório
da ONU, ao lado de Sachs e Richard Layard. Em resposta à difícil missão
de definir as variáveis que devem ter mais peso na medição da
felicidade, os teóricos do bem-estar dizem que é possível identificar
fatores objetivos. O relatório da ONU divide as causas de uma vida feliz
entre fatores “externos” e “pessoais”. No primeiro grupo estão a renda,
o emprego e o nível de governança de um país. No outro constam a saúde
física e mental, a educação, a convivência familiar e as influências de
idade e gênero.
Qual lado tem mais importância? Os pesquisadores se debruçam com mais
atenção sobre a relação entre dinheiro e bem-estar. Em 1974, um estudo
do economista Richard Easterlin chegou a uma conclusão que ficou
conhecida como Paradoxo de Easterlin. Até um determinado momento dentro
de uma sociedade, os mais ricos são em média mais felizes que os mais
pobres. Mas há um ponto em que os níveis de felicidade da população não
aumentam, ainda que haja um enriquecimento geral. Easterlin se baseou em
um fato: os Estados Unidos viveram um período de grande crescimento
econômico nas décadas de 1950 e 1960, mas os americanos mais ricos não
se declaravam mais felizes.
Uma das hipóteses para entender esse fenômeno é que as pessoas comparam
sua riqueza com a das outras. A partir do ponto em que a prosperidade
geral aumenta, a satisfação de ser mais rico é menor. Outra possível
explicação está na capacidade humana de adaptação. As pessoas
rapidamente se acostumam com as melhorias em sua qualidade de vida, e
isso deixa de ser um motivo para ter mais felicidade. Isso não quer
dizer que os países mais ricos sejam menos felizes. A comparação do
início do texto entre Brasil e Japão também pode levar a essa suposição,
mas é enganosa. Basta notar que, em geral, as nações mais
desenvolvidas, onde a renda per capita é maior e o IDH é mais alto, ocupam o topo do ranking da felicidade (leia o quadro abaixo). E os países com os piores níveis de renda e acesso precário a educação e saúde estão entre os mais infelizes do mundo.
Apesar da proliferação de pesquisas sobre a economia da felicidade, há
uma corrente expressiva de economistas que consideram a construção de um
índice de felicidade uma mera perfumaria acadêmica. Uma das limitações
do índice é justamente sua almejada transformação em instrumento de
planejamento de políticas públicas. Nenhum pesquisador conseguiu até
agora dizer, com clareza, de que maneira um Estado pode melhorar a
assistência à população ao saber que o nível de felicidade é 2 ou 8 numa
escala de 0 a 10.
“Os estudos sobre a felicidade não conseguem dizer o que deixa as
pessoas felizes, mas mostram o que as deixa infelizes: desemprego, falta
de oportunidades, doenças, incapacidade de educar os filhos. Para
resolver a maioria desses problemas, as autoridades já têm mecanismos
suficientes com os indicadores atuais”, afirma o economista americano
Justin Wolfers, da Universidade da Pensilvânia, autor de uma pesquisa
que associa a felicidade diretamente a um melhor padrão de vida. “Basta
querer e agir no ponto certo.” Um índice de felicidade, pelo menos da
maneira como as pesquisas vêm sendo conduzidas até agora, daria uma
contribuição ínfima para a melhoria de serviços públicos, campo em que
os governos têm capacidade de interferir diretamente na qualidade de
vida de um cidadão – e indicadores socioeconômicos só justificam sua
existência quando são úteis na formulação de políticas públicas.
Outro problema do índice de felicidade, segundo seus críticos, é a
leitura errada que pode gerar a boa colocação nos índices de bem-estar
de países com graves problemas sociais. É o caso da Venezuela. No 60º
lugar em renda per capita e no 73º em IDH, o país sofre com a
criminalidade fora de controle – a taxa de homicídios foi de 67 por 100
mil habitantes, a mais alta da América do Sul. Mesmo assim, os
venezuelanos figuram como os 19ºs mais felizes do mundo. Essa
discrepância é atribuída por alguns pesquisadores à ideia de que uma
melhora nas condições de vida – ainda que pequena – em países de
desenvolvimento intermediário pode gerar uma ascensão social capaz de
elevar o nível de felicidade. Esse fenômeno pode levar a uma
consequência perigosa: a acomodação do poder público desses países em
relação à qualidade dos serviços oferecidos à população. “Um governo que
aceite um dado nível de felicidade para desenvolver suas políticas pode
considerar aceitável um padrão de vida miserável da população, desde
que ela esteja feliz na miséria”, diz o belga Marc de Vos, professor da
Universidade de Gent e um crítico contumaz dos teóricos da felicidade.
Até hoje, o único país que pôs a qualidade de vida como prioridade de
governo foi o Butão, uma pequena nação asiática de 716 mil habitantes,
encravada entre a Índia e a China, no limite oriental das cordilheiras
do Himalaia. Em 1972, o então rei butanês, Jigme Singye Wangchuck,
decidiu criar um método para medir a felicidade de seus súditos. Depois
da realização de alguns estudos pontuais, o Butão oficializou em 2010 o
índice de Felicidade Interna Bruta (FIB), que vai de 0 a 1. O país
alcançou a marca de 0,743, e 41% dos butaneses entrevistados se
declararam felizes. O questionário do FIB é composto de mais de 270
questões, organizadas em nove pilares, de saúde e educação a
espiritualidade e ação comunitária. Na lista há questões como: “Você
conhece as lendas de seu povo e a história de seus antepassados?”; “Você
recicla?”; e “Quanto você confia nos seus vizinhos?”.
O Butão não está incluído na pesquisa global do Gallup. Outros
levantamentos o apontam entre as nações mais felizes do mundo. Pelos
indicadores tradicionais, a situação butanesa não é das mais animadoras:
tem apenas o 127º PIB per capita e está em 141º no ranking de
IDH. A renda média dos butaneses é de US$ 110 por mês. A maioria não
ganha o suficiente para pagar impostos, só cobrados sobre rendas
superiores a cerca de US$ 2 mil. Não parece ser o melhor dos parâmetros
para dizer se o índice de felicidade vale ou não a pena. Mesmo que fosse
possível medir o bem-estar social de forma objetiva, nenhum governo
conseguiria agir em todas as áreas que determinam a felicidade
individual. Por enquanto, a receita tradicional continua mais confiável.
Se os Estados se preocuparem em oferecer melhores condições de vida a
seus cidadãos para que eles busquem a felicidade, boa parte do problema
estará resolvida.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2012/04/utopia-dos-indices-de-felicidade.html
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