Ruy Carlos Ostermann*
Ele nunca suspeitou de que os livros deixados
quietos nas suas estantes envelhecessem. Capas retorcidas, folhas
esbranquiçadas, margens encurtadas. As traças sempre foram detectadas com seu
traçado incerto nas folhas de dentro, abrindo trilhas, redobrando os buracos.
Mas traças são seres vivos, ínfimos, desagradáveis nos livros e nas roupas mais
adocicadas, mas previsíveis. As bibliotecas ou simples estantes de livros
envelhecem com elas, tornam-se apropriados uns aos outros. Mas os livros,
pensava, por que se desmanchavam até mesmo antes das traças?
Montou uma pequena teoria usando letras
e obedecendo a um velho hábito desenvolvido para entender a realidade em torno. Foi
pesquisar as janelas e as duas portas: estavam bem fechadas, passava ar e mais
nada. Acendeu todas as luzes que estavam dependuradas do alto, duas em cada
ambiente. Uma só, mas de canto, estava queimada. Era uma boa iluminação de
biblioteca, quase nada fica às escuras, num canto. E, em cima da mesa de
trabalho, havia um lampião grande, imitando folhas secas ao redor e suportando
uma grande lente fluorescente centralizada. O que seria então?
Sentou-se na poltrona, afastou-a com os pés da mesa
e ficou quieto de braços cruzados pensando nos seus livros que se
destruíam. A Divina Comédia, por alguma razão antiga, estava em dois volumes ao
alcance da mão. Encadernação bonita, quase luminosa e recente. Nada se via que
pudesse desmerecer a inteireza dos dois livros. Reservou-se um pouco mais na
poltrona. E então passou lentamente a mão na superfície da mesa como se fosse
alisá-la.
Deu um salto e quase gritou:
- Água!
Era a umidade que destruía os livros, não o tempo
nem a luz ou o calor. E não soube mais o que fazer naquela biblioteca,
além de sua teoria...
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* Jornalista. Escritor. Colunista da ZH
Fonte: http://www.encontroscomoprofessor.com.br/16/04/2012
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