Escritor colombiano fala sobre 'Livro de Receitas para Mulheres Tristes'
Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
O escritor colombiano Héctor Abad nunca se importou com gêneros ou
fronteiras entre gêneros literários. O exemplo mais radical dessa
transgressão fronteiriça chama-se Livro de Receitas para Mulheres Tristes
(Companhia das Letras, tradução de Sérgio Molina e Rubia Prates
Goldoni, 144 págs., R$ 32). É um livro inclassificável, no bom sentido.
Nele estão presentes gêneros desprezados por críticos e temas que
refletem os múltiplos interesses desse jornalista, escritor e tradutor
de 54 anos, nascido em Medellín, que se formou em letras pela
Universidade de Turim e estudou filosofia e medicina antes de se dedicar
à literatura e ganhar vários prêmios por essa atividade.
Como você considera Livro de Receitas para Mulheres Tristes, um esboço para adotar gêneros literários esquecidos pela modernidade?
Você tem razão quando diz que Livro de Receitas para Mulheres Tristes é uma volta a gêneros literários aos quais a modernidade não se acostumou muito. Seu modelo mais direto é A Arte de Amar, de Ovídio. Quando escrevi esse livro, tinha acabado de ler, em verso, uma tradução de Ars Amatoria.
Além disso, estava doente, convalescendo, e vivia o tempo todo trancado
no quarto, em minha casa. Via o mundo da minha cama. Foi a leitura de
Ovídio, misturada ao 'modo' mental da doença quando não é grave, que me
deu a chave para essa experiência. A primeira redação ficou marcada
pelos versos de Ovídio em latim, mas logo resolvi dissolver esses
excessos poéticos numa prosa digerível. Outro modelo do livro são as
obras de autoajuda, muito modernas. Só que as uso numa chave irônica:
dou conselhos de amor, de cozinha e de sexo, mas não quero enganar
ninguém. Os livros de autoajuda não servem para nada. O meu tampouco
"serve" num sentido utilitário, ainda que muita gente se console pelo
fato de saber que não há consolo.
Seu livro começa uma uma referência à felicidade.
Alguma circunstância em particular o levou a escrever essas receitas
mágicas de felicidade e fórmulas para seduzir?
Creio que foi, como disse, o fato de estar doente. Quando um
doente confia que sua dor vai aliviar, sente uma espécie de leve euforia
porque, sem poder levantar-se, já começa a sentir que a felicidade está
à espera. Um doente que se recupera não vê a hora de voltar a comer, a
caminhar, a fazer sexo, a tudo o que a doença o impede de fazer. Ficar
doente é bom por um único motivo: ajuda a valorizar muito mais a saúde. E
o livro pretende dar receitas suculentas para aproveitar mais a vida.
Não digo para alcançar a felicidade, que é uma palavra e uma sensação
superestimada - e, inclusive, um pouco ridícula: ao que podemos aspirar é
a um certo bem estar que dá a ausência de dor e enfermidade, o que já é
muito.
"Gostaria também de escrever uma utopia pós-moderna em que
ninguém seria emigrante ou imigrante: todos nos movemos pelo vasto mundo
e não estamos condenados a nascer e morrer no mesmo lugar. Nascer na
Ucrânia e morrer no Brasil, como Clarice Lispector, ou nascer em Buenos
Aires e morrer em Genebra, como Borges, esse é o modelo a seguir: viver
onde nos leve o vento, a gana, o ar."
Ser invisível é um dos grandes problemas de que sofrem as mulheres, segundo as leitoras de Livro de Receitas para Mulheres Tristes,
mas isso não se aplica à sua mãe, nada invisível e autora até famosa de
um verdadeiro livro de receitas. Você acredita que sua vocação é fazer
uma literatura dedicada a provocar uma revisão no papel das mulheres na
literatura e na vida?
Todos somos mulheres. Os embriões, inclusive, começam como
mulheres. De repente um cromossomo desenvolve testítulos e a
testosterona nos masculiniza, nos converte numa anomalia. Os homens são
prescindíveis. Inclusive, desde Dolly, já nem mesmo somos necessários
para a reprodução. Ao menos em teoria, as mulheres poderiam ser
autosuficientes. Mas uma humanidade de um sexo só seria muito
aborrecida: isso sabem as mulheres e nós, homens. E agora, inclusive,
aceitamos com alegria outras opções: bissexuais, hermafroditas,
transexuais. O mundo é divertido porque é diverso. Mas me parece normal
que a um escritor homem lhe fascinem as mulheres, e que a uma escritora
mulher fascinem os homens. Decifrar o enigma do outro sexo: nisso nos
vai metade de nossa vida. Eu cresci rodeado de mulheres, vivo com
mulheres e, no entanto, não as entendo. Mas, pelo menos, aprendi uma
coisa: a ouvir o que me dizem.
A literatura colombiana não tem do que reclamar. Há
Ballesteros, Héctor Abad. Qual a sua relação com seus contemporâneos? O
que tem a literatura colombiana de específico?
Temos a sorte de escrever numa língua muito antiga, o
castelhano, com uma grande tradição literária. Além disso, no século 20,
os escritores adquiriram certo prestígio social e cultural: ser
escritor já não é um ofício desprestigiado de bêbados e maricas.
Milhares de pessoas se dedicam à literatura e, como são tantos a tentar,
alguns acabam se destacando. Para formar um grande enxadrista, é
preciso colocar todo o país a jogar: era o que se fazia na antiga União
Soviética.
O que significa para você o Livro de Receitas para Mulheres Tristes?
Para mim, o livro não passava de um divertimento, uma forma
de rir da vida, da doença, da infidelidade, da morte. Nessa época era
uma pessoa bastante triste que não queria escrever sobre coisas tristes.
Quando me tornei mais sereno e alegre, escrevi um livro triste como El Olvido Que Seremos.
Quando era triste de verdade, escrevia livros alegres como esse, porque
pensava que o ditado espanhol estava certo: quem canta, seus males
espanta. Outro precedente eram os manuais de instruções de Julio
Cortázar. Seu jogo irônico sempre me encantou, e tratei de usá-lo também
no livro. Mas, a ironia não impede que existam receitas que funcionem
(do ponto de vista culinário) e conselhos que possam ajudar a resolver
problemas tão sérios como a virgindade, a impotência dos maridos etc..
Você falou certa vez que uma das características do
romance contemporâneo é o hibridismo, a transmutação de gêneros. Como
analisa esse fenômeno literário? Seria apenas um artifício formal ou uma
questão do desejo da nova geração de dialogar com tempos passados e
esquecer o compromisso moderno da transgressão?
Quando alguém lê a literatura anterior ao advento do romance,
um gênero hesitante que se tornou quase obrigatório, se dá conta de que
nos tempos de escassa liberdade política havia uma grande criatividade
textual: fábulas, rimas, romances, sonetos, conselhos amorosos, poéticas
em verso, manuais de cosmética, diatribes políticas em rima - Günther
Grass acaba de tentar mais uma, sem muito êxito poético, há que se
dizer. A modernidade nos presenteou com gêneros estupendos como a
divulgação científica, da qual Steven Pinker e Bill Bryson são exemplos
brilhantes, mas se esqueceu da versatilidade e das possibilidades
infinitas das literatura. Além disso, também esqueceu de escrever contos
sobre como podemos refletir, aconselhar, disputar, rir, seduzir,
combater. Seria necessário reviver muitas coisas, como, por exemplo, os
panfletos e as novelas filosóficas, como as de Voltaire.
Você viveu em Berlim como bolsista. Como vê a
situação dos estrangeiros na Europa e analisa o problema das corrrentes
migratórias no século 21?
O mundo não se parece nada aos esquemas sociológicos do
século 19 com os quais tentamos entendê-lo. O mundo terá de chegar a ser
uma espécie de Europa Comunitária Mundial, com liberdade de circulação,
uma economia complementar e uma legislação trabalhista igualitária.
Primeiro haverá blocos continentais, suponho, e logo esses blocos terão
de se ajudar mutuamente. Chegaremos, então, algum dia, a um governo
mundial e à paz mundial de Kant. Mas estou sonhando, escrevendo uma
utopia : a propósito, outro dos gêneros anteriores à modernidade que se
perdeu. Gostaria também de escrever uma utopia pós-moderna em que
ninguém seria emigrante ou imigrante: todos nos movemos pelo vasto mundo
e não estamos condenados a nascer e morrer no mesmo lugar. Nascer na
Ucrânia e morrer no Brasil, como Clarice Lispector, ou nascer em Buenos
Aires e morrer em Genebra, como Borges, esse é o modelo a seguir: viver
onde nos leve o vento, a gana, o ar.
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FONTE: Estadão on line, 14/04/2012
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