Carlos Eduardo Rebello de Mendonça*
No clássico de Erich Auerbach sobre a evolução da representação da realidade na tradição literária ocidental, Mimesis, é citado um trecho das Memórias do
Duque de S. Simon em que este conta o encontro reservado que teve em
Versalhes com o confessor de Luis XIV, o jesuíta Tellier, que lhe pedia
apoio político a uma perseguição religiosa, episódio este que o Duque
descreveu , muitos anos mais tarde, horrorizado diante da sua recordação
de um jesuíta que, “nada podendo esperar para sua família, nem, pelo
seu estado e votos, para si mesmo, nem uma maçã ou um copo de vinho a
mais que outros; que, pela sua idade mesma, estava a ponto de prestar
contas a Deus, mas que, deliberadamente e através de grandes artifícios,
lançaria o Estado e a religião na mais terrível combustão, e começaria
uma perseguição terrível por questões que não lhe diziam respeito [...]
Tudo isto me lançou num tal êxtase, que, subitamente percebi-me
perguntar enquanto o interrompia: ‘Meu padre, que idade tendes?’ [Mon Père, quel âge avez vous?]”.
O Duque descobre, então, que o jesuíta tinha então 73 anos – o que, no
século XVIII, era obviamente uma idade mais do que provecta. E Auerbach
comenta: quando S. Simon olha Tellier de tous ses yeux,ele percebe , para além do indivíduo, “a essência de qualquer comunidade solidária rigidamente organizada” – a noção da ideologia como algo que “torna-se uma força material ao tomar a mente das massas”.
Quando, no Rio de
Janeiro, três séculos após o encontro de S.Simon, vê-se uma comunidade
de velhos torcionários, dos quais, pela idade igualmente provecta,
poder-se-ia esperar que estivessem concentrados no seu memento mori , e ainda mais necessitados que o bom Padre Tellier em compenetrarem-se do julgamento divino (ou da posteridade, c’est égal)
; um bando de octogenários , muitos com dificuldades de locomoção,
dirigirem-se , mesmo trôpegos, a um lugar público para aí darem vivas,
da maneira mais acintosa, numa provocação meticulosamente preparada, a
um atentado contra a mera legalidade burguesa, à tortura e ao homicídio,
e encontrarem apoio na repressão policial para provocarem , num breve
espaço de tempo, uma combustão que pouco faltou para concluir-se com uma
morte entre seus opositores – diante de tal espetáculo, cabe novamente a
pergunta do Duque: qual, afinal, a idade dessa gente? Pois tanto
endurecimento no prazer perverso na extrema velhice não pode ser
considerado como justificativa, e sim como agravante…
Seja como for, em si
mesma, tal comemoração deveria suscitar mais a repugnância do que a
cólera, e o maior paradoxo da manifestação de 29 de março de 2012 estava
em que os mais encarniçados na denúncia aos golpistas eram, na maioria,
pessoas que, pela idade, não eram nem nascidas quando terminou a
ditadura. Só que, em política, nenhuma evocação do passado existe “em si
mesma”; quando o morto “ressurge”, é porque ele não estava , de fato,
morto… ou porque se trata de outra coisa.
De certo modo, o
Golpe de 1964 e os vinte e um anos de ditadura que a ele se seguiram
representaram a conclusão da nossa Revolução Burguesa, a “Revolução
Brasileira” dos isebianos – apenas (três)lida pela ótica do interesse
mais reacionário. Neste processo, tudo que havia sobrevivido de
pré-capitalista na nossa cultura e política – as tradições
paternalistas, a “cordialidade” privada temperando a brutalidade das
relações econômicas, a democracia informal dos botequins cariocas ,
etc.etc. – tudo isto, entre 1964 e 1985, foi extirpado, eliminado , aniquilado – em função do simples interesse econômico mais grosseiro, o pagamento a vista doManifesto Comunista. De
lá para cá, chegamos finalmente à modernidade – mas uma modernidade
inteiramente reacionária, e daí o nosso sentimento difuso de habitarmos
uma sociedade profundamente embrutecida.
Já que estamos
falando de política por meio da literatura, vem a propósito lembrar a
sátira do falecido Millôr Fernandes, que, diante do deserto do
pós-ditadura e do governo Sarney, fazia um pasticho de Manuel Bandeira
para falar do Brasil como país da falsa modernidade , onde “Telefone não telefona/A droga é falsificada/E prostitutas aidéticas/ Se fingem de namoradas”.
Estava, lamentavelmente, errado: trinta anos depois, ainda que os
telefones (privatizados) telefonem (a preços extorsivos) e as drogas
talvez possam ser mais confiáveis, o grande problema da modernidade
brasileira presente é que ela nada tem de “ideológico” no seu sentido de
senso comum, de mistificação; as prostitutas não “se fingem” mais de
namoradas – ou de qualquer outra coisa; o interesse capitalista nu e cru
mostra em toda parte a sua cara. Os tempos não se prestam mais à sátira
– e é precisamente por isso que enquanto os octogenários da repressão
fanfarroneiam na rua, dos octogenários da Turma de Ipanema, “os que teimam em viver, estão entrevados” (ou aderiram…). No Brejal dos Guajajaras high-tech , o “latifúndio feudal” virou agribusiness e imperialismo “globalização”.
A Direita neoliberal,
quando quer se dessolidarizar da ditadura, adora dizer que esta foi “de
Esquerda” (i.e., nacionalista e estatista). O que há de falso neste
sofisma é considerar que o nacionalismo e a intervenção estatal, possam,
em si mesmos, serem de “Esquerda”. Mas uma coisa é certa: a ditadura
foi desenvolvimentista; de certa forma, ela confirmou Álvaro
Vieira Pinto e Guerreiro Ramos quando estes, no ISEB, escreviam que a
consciência da necessidade do desenvolvimento econômico era algo que
penetrava todas as classes da sociedade brasileira. Estavam
completamente corretos: no meio século seguinte, o que caracterizou todos os
atores políticos brasileiros foi compartilharem da crença no
desenvolvimento econômico como supremo dissolvente do “atraso” , em
versões mais ou menos “igualitárias” – a trajetória do PT, por exemplo,
só faz sentido se vista por esta ótica.
O erro, se erro houve
(pois, bem ou mal, uma teoria passada não pode dar conta das tarefas do
futuro) estava na incapacidade de prever que a “base” econômica, em si
mesma, não é capaz de dar direção aos eventos; o desenvolvimento
econômico, superposto a relações sociais e políticas atrasadas, só é
capaz de gerar um desenvolvimento ….atrasado: a promessa dos arcos de
Brasília encontrou sua realização prática… no ecocídio de Belo Monte.
Num certo sentido, trata-se de algo que já estava anunciado no aforisma
de outro isebiano, Roland Corbisier : “na Colônia, tudo é colonial”. Ou,
mais exatamente: desenvolvimento desigual e combinado. Chegamos
a um ponto em que temos de reconhecer o simples fato de que nossa
modernidade está completa – e, por isso mesmo, desprovida de todo e
qualquer elemento progressista (com a exceção recente de um
distributivismo limitado, que começa a dar sinais de esgotamento).
E assim, quando em
2012 vemos uma repetição em miniatura das batalhas de rua de 1968, o que
faz com que esta repetição não seja uma “farsa” à maneira do 18
Brumário, é que, quando os jovens de 2012 tentam reabrir o processo de
1964, não é apenas o processo de 1964, mas o processo de 1964 e de toda a dominação burguesa a ele subsequente, que está em jogo. E, como não se podem criticar os subsequentes sem os precedentes, podemos concluir dizendo que, no limite é toda a nossa história que está em jogo.
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* Doutor em Sociologia, IUPERJ.
Fontes: blog Outro Olhar – Revista Forum
http://hannaharendt.wordpress.com/2012/04/15/
Imagem da Internet
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