EUGÊNIO BUCCI*
"A escola pátria de promiscuidade está com os dias contados.
Seu modo vicioso de se fazer negócio, algo entre o cangaço, a acumulação
primitiva, o patrimonialismo
e o chamado “crony capitalism”,
caiu na
obsolescência."
A escola de promiscuidade bilionária
entre grandes empreiteiras e autoridades governamentais no Brasil não é
uma questão de decência ou indecência. Não é uma questão de honestidade
ou banditismo. Não é uma questão moral. É só uma questão de tempo: vai
mudar porque vai ter de mudar.
Pode parecer ingênuo afirmar uma coisa dessas em frases tão categóricas. Pode parecer wishful thinking,
um devaneio de Poliana. Não obstante, se o improvável leitor tiver um
tempinho para se distanciar dos argumentos apaixonados mais em voga,
esses que voam como mísseis balísticos de cá para lá e de lá para cá,
poderá entender que, sim, a forma brasileira de corrupção é uma questão
de tempo.
Deixemos um pouco de lado, por alguns minutos, o histriônico
furor moralista com que se deblatera sobre o assunto. Deixemos de lado
as exacerbações um tanto apalhaçadas, com sua comicidade de ópera-bufa e
pastelão ideológico, com que os políticos e seus bajuladores se acusam
de larápios, de vigaristas, de sacripantas (a melhor, porque a pior, de
todas as palavras ofensivas; parece nome de verme intestinal). Deixemos
de lado a presunção dos tucanos incultos que falam da gatunagem estatal
como se fossem eles mesmos seres angelicais e não tivessem a primazia da
invenção da tecnologia contábil que tornou viáveis os mensalões.
Deixemos de lado as lúlicas veleidades dos que consagram ao PT a glória
imensa de ter “equipado” a Polícia Federal, dando-lhe independência
funcional e miras telescópicas. Se o PT deu uma alguma contribuição
exclusiva às investigações que desbaratam quadrilhas de assaltantes dos
cofres públicos, essa contribuição tem vindo na forma de população
carcerária. Mas deixemos isso de lado também. Se pudermos elevar os
olhos um pouco acima das paixões (baixas) de um lado e de outro,
poderemos divisar um cenário menos conflagrado e mais nítido. Poderemos,
talvez, compreender por que a corrupção é uma questão de tempo.
Existe o crime, sem dúvida. Existe o ilícito. Existem as
péssimas intenções dos agentes. Existe o vício e existe a desonestidade.
Existe ainda a necessidade de punir os malfeitos e existem méritos
comoventes dos que batalham contra a ladroagem na trincheira doméstica.
Tudo isso é fato, não se nega, mas o maior empuxo anticorrupção vem do
exterior. Com a globalização, o mundo dos negócios mudou. A legislação
dos países centrais já mudou. A mentalidade internacional mudou. Se o
Brasil está mudando também, isso se deve a pressões (positivas) que vêm
de fora para dentro. O Brasil tem de mudar para não perder a
compatibilidade com a linguagem do mercado global e para estar em linha
com os novos protocolos do comércio mundializado.
Recapitulemos uns poucos lances dessa grande transformação.
Nos Estados Unidos, o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), adotado em
1977, elegeu como alvo os executivos de empresas americanas que
subornavam autoridades fora do país. A lei já sofreu várias emendas
(1988, 1998, 2012) e segue influenciando o comportamento dos chamados players internacionais. Do outro lado do Atlântico, o UK Bribery Act (UKBA), aprovado em 2010, deu novo impulso na mesma direção.
Acordos multilaterais vieram, em 1997, com a Anti-Bribery
Convention, da OCDE, e, logo depois, em 2003, com seu equivalente na
ONU, a UN Convention Against Corrption (Uncac). O Brasil aderiu à
convenção da OCDE em 2000 e desde então, por força desse e de outros
dispositivos internacionais, está constrangido a mostrar serviço e
apresentar resultados efetivos no combate à corrupção. Sem esses
resultados a legislação nacional e o setor empresarial privado ficariam
no atraso, no anacronismo, no acostamento, desconectados do mercado
externo. O combate aos negócios escusos de antigamente é um imperativo
de um novo marco temporal.
A mudança, aqui ou fora daqui, não é obra de vestais. Os
vetores que impeliam (e impelem) as organizações internacionais a
combater a propina e a prevaricação não se devem a dramas de consciência
de especuladores e financistas feitos de pura ganância. O problema
estava (e está) no bolso deles. O capitalismo declarou guerra à
corrupção à moda antiga porque os peixes grandes se cansaram de perder
dinheiro e clientela para os gatunos cafonas e seus amigos aboletados em
cargos públicos. E também porque as autoridades dos países centrais não
querem mais saber de instituições financeiras que sirvam de abrigo às
fortunas do terrorismo, do tráfico de drogas e da sonegação fiscal.
Aliás, foi a evasão fiscal nos Estados Unidos que levou as
autoridades americanas a brigar com os bancos suíços, que logo trataram
de se adaptar às novas regras. Nos anos 1990 acabaram com as contas
numeradas (secretas). Deixaram de ser bons esconderijos para
traficantes, terroristas e, repitamos a tal palavra, sacripantas em
geral. Não dava mais. Agora, até mesmo na visão da própria Justiça de
seu país, as instituições bancárias da Suíça andam exagerando em
solicitude. Ontem mesmo os jornais noticiaram que a Justiça suíça
considerou “desproporcional” (“entraîde sauvage”) a quantidade de dados
remetidos às autoridades brasileiras dando conta de supostos pagamentos
de suborno por corruptores ligados a empreiteiras da nossa terra.
Foi em função das novas regras desse novo ambiente que as
empresas multinacionais com escritórios no Brasil passaram a combater,
aqui dentro, os esquemas de propina de seus próprios executivos. Tinham
as autoridades da matriz no seu encalço. É também por isso que as
empreiteiras nacionais terão de mudar sua cultura. É questão de tempo. E
de sobrevivência.
A escola pátria de promiscuidade está com os dias contados.
Seu modo vicioso de se fazer negócio, algo entre o cangaço, a acumulação
primitiva, o patrimonialismo e o chamado “crony capitalism”, caiu na
obsolescência. Mais cedo ou mais cedo ainda, vai ser aposentada.
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* EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USPFonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-corrupcao-entre-o-passado-e-o-futuro,10000014897
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