Batizado de Delírio III, o veleiro classe Trinidad, de 37 pés, é usado por Golin em Porto Alegre
Foto:
Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Historiador fala sobre a formação do Rio Grande do Sul e a relação dos gaúchos com o restante do Brasil
Foram
forças navais, e não tropas terrestres baseadas no uso do cavalo, que
configuraram o Rio Grande do Sul atual entre a metade e o final do
século 18. Essa tese, provocativa como é do feitio de seu autor, o
historiador, professor e jornalista Tau Golin, é a pedra-de-toque do
livro A Fronteira — 1763-1778, terceiro tomo de uma trilogia dedicada às
guerras sulinas entre Portugal e Espanha.
O local escolhido por
Golin para falar a Zero Hora sobre esse e outros temas não poderia ser
mais significativo: o barco — o terceiro de sua propriedade — que
utiliza há oito anos para singrar a Lagoa dos Patos e o Atlântico.
O papel da navegação não é muito enfatizado na história rio-grandense. Como esse tema chamou sua atenção?
Não
existiria Rio Grande do Sul sem navegação. Ela forneceu uma plataforma
de ocupação, de povoamento e de movimentação na guerra. Do ponto de
vista geopolítico, o Rio Grande é uma realização da navegação. Depois da
navegação, houve o uso das armas da navegação em terra, que são a
artilharia e a infantaria. A cavalaria sempre foi, na história do Rio
Grande do Sul, uma arma auxiliar. Serviu para provocações de movimento e
não teve funções de conquista. O papel da navegação era transportar
tropas e assegurar pontos estratégicos, porque as distâncias eram muito
longas. Quem esteve melhor preparado na navegação conquistou território.
Quem baseou a ocupação no cavalo perdeu território — foi o caso dos
espanhóis, que deram mais importância à cavalaria do que à infantaria e à
artilharia em terra.
Se
tu pegares a história rio-grandense, desde as guerras ibéricas
coloniais até as guerras do Estado-nação e, principalmente, as guerras
civis do Rio Grande do Sul, quem apostou no cavalo perdeu a guerra. Isso
começa com o uso do cavalo na Guerra da Cisplatina (1825-1828), que se
deve muito a não pegar a experiência lusitana do período colonial — que
apostava na navegação, na artilharia, na infantaria e nos granadeiros,
que eram tropas de assalto, de elite — e entrar nesse devaneio
oligárquico da cavalaria, do bando de agregados, que na história
colonial sempre foi auxiliar, nunca teve papel estratégico. A primeira
perda significativa foi na Guerra da Cisplatina. Os farrapos perderam em
função do cavalo. Em 1893, os maragatos nem chegaram a ameaçar o
governo do Partido Republicano Rio-grandense (PRR). Usavam
cavalos de campo, imprestáveis para a guerra, sem resistência. O cavalo
militar é diferente, preparado para a guerra, a começar pela
alimentação. Esse cavalo a campo não tem resistência. Precisa de muita
peonada para levá-lo para o pasto. Não tem precisão na guerra. Tanto é
que a cavalaria maragata geralmente era enfrentada pela Brigada Militar
com formações antiquíssimas, como o quadrado romano, que vem da
Antiguidade — a diferença era que usavam armas de fogo em vez de flechas
e lanças. Na história contemporânea, o cavalo só se presta para
patrulhamento de grandes distâncias e para reprimir manifestações
públicas de estudantes e operários, numa mentalidade de covardia. Mas
com algumas bolitas, pregos e bombinhas, você anula essa força. É uma
arma completamente inútil. A cavalaria, contemporaneamente, é a arma dos
covardes, dos prevalecidos.
Ninguém apontou outro caminho?
Não,
por uma questão de classe social. O poder político e econômico da
oligarquia rio-grandense estabeleceu uma mentalidade estratégica de
defesa da propriedade. Militarmente, era um cérebro diminuto, que, em
primeiro lugar, tinha essa preocupação camponesa de defesa dos próprios
bens. Não tinha uma cultura totalizante voltada à formação do Estado, da
sociedade e do lugar das armas. O imaginário dessa oligarquia foi
historicamente reduzido ao universo do latifúndio escravista e, depois
da república, excludente. Esse acabou sendo o tamanho de sua imaginação:
o de um homem no lombo de um cavalo dentro de uma propriedade
latifundiária. Perdeu a cultura estratégica lusitana, que tinha barco,
infantaria, artilharia, com granadeiros, e foi se reduzindo ao universo
da defesa da propriedade, sem imaginação militar.
Ainda assim, o caudilho maragato Gumercindo Saraiva tomou Curitiba na Revolução de 1893.
O
universo de Gumercindo era esse: o da longa tradição da diversão e do
movimento, sem considerar a possibilidade de uma batalha final. Não foi
uma Revolução Federalista, e sim uma guerra civil, porque tinha apenas
uma reivindicação política. Não tinha nenhuma proposta que mexesse nas
estruturas da sociedade e das classes sociais. A cavalaria era algo
adequado a essa gente. E, na verdade, nem cavalo tinham. Eram infantes
sem a cultura dos infantes, sem a formação de regimentos, de pelotões,
mais dados às escaramuças. Mesmo quando andavam a pé, o seu universo
mental era o do cavalo. Essa foi a desgraça de todas as tropas que
apostaram na cavalaria.
Recentemente, um grupo de cidadãos
da Metade Sul divulgou um documento em favor da independência da Região
Sul. Esse imaginário continua contribuindo para o atraso econômico e
político do Rio Grande do Sul?
Sem dúvida. É o revir. Uso
a categoria do revir, que é imaginar o presente e o futuro como uma
reprodução do passado. São movimentos sociais sem devir.Isso vai levar a
tudo isso que presenciamos: imaginar que são melhores, especiais, que
fizeram parte de um passado glorioso. O ícone que abre essa plataforma
socialmente imagética é o cavalo. Infelizmente, temos uma cultura no Rio
Grande do Sul que tomou todos os setores públicos e que nos impede de
ter uma força reformadora. Os funcionários públicos em geral, as pessoas
que deveriam cuidar da modernização da infraestrutura, são prisioneiros
desse mito de uma idade do latifúndio, baseada no cavalo. As soluções
desse pessoal são todas tacanhas.
O que seria uma solução não tacanha?
Recuperar
a vocação naval do Estado. Temos grandes rios e lagoas, que nos
permitiriam ter, com investimento muito menor do que nas estradas,
canais de navegação naturais, com eclusas, e artificiais. É baratíssimo
frente às rodovias. Os franceses fizeram isso nos séculos 15 e 16,
estabelecendo conexões entre o Mar do Norte e o Mediterrâneo a pá e
picareta. O Estado não tem sequer uma secretaria que pense
estrategicamente o uso das águas. Esses movimentos ficam chafurdando
numa espécie de orgulho narcísico e purgam porque o Brasil e mesmo o
governo de Porto Alegre não reconhecem sua grandiosa contribuição às
fronteiras, à conquista dos territórios.
É uma brasilidade envergonhada?
Quem
tem assumido essas bandeiras são indivíduos que vieram tardiamente para
o Rio Grande do Sul. Esses movimentos querem ser gauchescos e, ao mesmo
tempo, ter uma raiz europeia. Têm uma dupla cidadania simbólica. O que
não querem ser é brasileiros. Esse gauchismo, em última instância, é um
recurso de lesa-pátria, porque impede uma relação afetiva e concreta com
a história brasileira. Ele aponta soluções fora da historicidade, como
se nós, brasileiros, fôssemos incapazes de construir uma sociedade com
um nível de civilidade superior. É por isso que, geralmente, as pessoas
que estão com essas plataformas, quando não são militantes, namoram
ideias de racismo e de preconceito. Essa cultura imobiliza e, ao mesmo
tempo, impede que se crie uma inserção real com o passado brasileiro do
Rio Grande do Sul. Possivelmente, o Rio Grande do Sul seja o Estado mais
brasileiro que existe. Do ponto de vista da sua ideia de destino e da
sua imaginação como sociedade, está muito vinculado ao povoamento por
meio da guerra. Todas as guerras foram alimentadas por militares e
recrutas buscados, às vezes com convocações não muito democráticas, em
todas as regiões do Brasil.
Desde sempre?
Desde
o início. O primeiro sujeito a trabalhar com arreios na vila de Rio
Grande era um baiano trazido por Silva Tavares. O charque foi trazido
por um cearense. Eram companhias de pernambucanos, baianos, mineiros e,
fundamentalmente, paulistas. O Rio Grande do Sul é uma ocupação paulista
e mameluca. Todas as formas de relação são muito mamelucas. A própria
forma de guerrear é mameluca. Depois, vêm regimentos da Europa — de
Moura, de Bragança, de Extremoz, dos Açores. Todos esses homens vão
ficando como povoadores, porque recebem terras. Todos os exércitos —
inclusive catarinenses, porque Santa Catarina, de certa forma, era
paulista no período colonial — vão ficando como povoadores.
A Coroa incentivava-os a ficar.
Sim,
com leis, com distribuição de quadras de sesmarias já com data.
Tornavam-se médios proprietários. Recebiam terras no que chamamos hoje
de zona rural e lotes nas vilas que iriam se formar. Mas o número desses
indivíduos do sexo feminino era muito pequeno, quase nulo. A única
possibilidade desse pessoal se estabelecer como povoador era se casando,
se amasiando ou formando famílias com índias — guaranis, caingangues,
choclengues, minuano, charruas. O próprio Pinto Bandeira tinha uma
mulher minuano, teve filhos reconhecidos. Menna Barreto tinha, como sua
amásia principal, uma índia guarani das Missões — foi um escândalo no
início do século 19, diversos dos seus filhos tinham formação militar.
Temos um Rio Grande do Sul povoado por representantes de todo o mundo
lusitano — e eram incorporados espanhóis na dança de fronteira, vinham
franceses em menor número. O Rio Grande foi um esforço lusitano e
brasileiro, que se concretizou regionalmente com base no ventre
indígena. Por isso, depois, vieram milhões de migrantes europeus, e
mesmo assim os traços indígenas continuam aí até hoje — basta andar pela
Metade Sul. Atualmente, há um fenômeno muito impressionante: migrantes
no Planalto e no Alto Uruguai com um número muito significativo de
mestiçagem com caingangues. Temos uma região que, do ponto de vista
antropológico e social, representa o Brasil e o mundo lusitano. Mas não
temos consciência disso, porque temos uma historiografia que não insiste
nisso e meios de comunicação que só repetem pastiches e não veem o Rio
Grande do Sul como um lugar em que a brasilidade se realizou de fato. É a
região mais brasileira porque misturou o Brasil no povoamento das
guerras de fronteira mantidas por paulistas, mineiros, baianos,
pernambucanos. Esse processo durou dois séculos no Rio Grande do Sul.
Invariavelmente, os que agenciam esse preconceito, essa ideia de um Rio
Grande do Sul especial, estão assassinando mais uma vez os seus avós.
Qual é o peso do africano nesse contexto?
O
africano é uma parte fundamental dos exércitos desde sempre. O exército
luso-brasileiro que veio para a Guerra Guaranítica de 1752-1753 tinha
em torno de 15% a 20% de negros, como escravos, e tinha uma vanguarda de
mamelucos de 200 pessoas. A representação dentro do exército lusitano
era expressiva. O próprio militar regular invariavelmente era mestiço.
Muitos eram oficiais ou suboficiais. A marinharia era majoritariamente
negra. Se a gente pegar a Guerra de 1776, a retomada dos fortes e da
Vila de Rio Grande, que eram o núcleo principal da posse espanhola, foi
feita sem nenhum cavalo. O que se usou para infiltrar os granadeiros
atrás dos fortes foi um pelotão de jangadeiros pernambucanos. Criaram um
estaleiro de jangadas em Rio Grande e, durante a madrugada, colocaram
200 granadeiros atrás das tropas inimigas. Não se usou nenhum cavalo.
Há um grande debate sobre o ensino da história no Brasil. Como vê isso?
Precisamos
fazer os alunos perceberem o que é um Estado-nação e vincular essa
ideia à utopia de comunidade de destino, em que todos são responsáveis
por todos. Isso depende da imaginação dessa comunidade de destino. Você
só forma uma sociedade com uma ideia de comunidade de destino, e para
isso você precisa imaginá-la. Para imaginá-la, você precisa saber quem é
a nação: quais as etnias, as culturas, as regiões. Isso permite
equalizar e estabelecer uma alteridade, em que um reconheça que é feito
no espelho do outro com respeito à diversidade. O problema maior que
vejo para entender o Brasil é decifrar como se formou e funciona o
Estado-nação. A primeira constatação é que o Estado brasileiro está
dissociado da nação. É formado na maldição portuguesa: é possuído por um
estamento que se autorreproduz e se autoalimenta na sua própria lógica.
O Estado brasileiro não está a serviço da nação, e sim a serviço desse
estamento que o ocupa e de seus negócios — estou deduzindo essa ideia
dos escritos de Raymundo Faoro. Esse patrimonialismo não é republicano.
Soldar essa dicotomia entre o Estado e a nação é fundamental para se ter
um país. Esse é o dilema brasileiro. O Estado alimenta essa dicotomia,
com a representação política, dos materiais historiográficos e das
comunicações, fomentando antagonismos regionais. Se as nações que
existem no país não se equalizarem numa comunidade de destino, não há
solução. Tenho de saber que a minha felicidade depende da do nordestino,
dos povos amazônicos, de Mato Grosso, de todos os lugares. É preciso
que tenhamos as referências básicas e elementares do brasileiro, que, de
certa forma, estão inscritas na Constituição, que não é obedecida.
Temos de ser absolutamente radicais na ideia republicana de
despatrimonializar o Estado, romper com condomínios das articulações
desse estamento que ocupa o Estado. Isso nos levou a ter vinculadas ao
Estado instituições, como a Brigada Militar e a Polícia Civil, que, para
especular com aumento de salário, deixam a população ao escárnio da
bandidagem.
O senhor se refere ao episódio do aquartelamento, em agosto do ano passado?
Sempre.
São instituições que não têm um pacto de destino com a nação. É um
produto do que existe de pior nesse estamento. Não se imaginam dentro de
um país, de uma nação, mas sim como uma profissão que ocupa o Estado.
Não têm nenhum vínculo afetivo. Se você pegar culturas tradicionais,
como a dos samurais, por exemplo — dou um exemplo do passado —, jamais,
diante da ameaça a uma população, se pensa em salário. Você tem de ter
uma ideia de história superior ao teu interesse corporativo. Não temos
nenhuma instituição no Brasil capaz de realizar um sacrifício pela
nação. Isso decorre dessa relação espúria com o estamento. Se você achar
que grandes massas que formam a nação não têm nada a ver contigo, esse
país é impossível. Ele tem de estabelecer um consenso mínimo de destino
para todos, uma ideia de piso mínimo, da qual não se pode baixar. Uma
boa referência é a Constituição de 1988, da qual forças poderosas estão
tentando revogar uma série de artigos e dispositivos.
A
Operação Lava-Jato e outras revelaram escândalos de corrupção com a
participação de grandes empresas e o Estado brasileiro. A catástrofe
ambiental em Mariana mostrou que essa relação coloca em risco os
próprios ecossistemas. Isso não está na raiz da inexistência do que o
senhor chama de comunidade de destino?
Sem dúvida. Não
abandono o conceito de estamento porque ele vai incluindo essas formas
contemporâneas de relações. Mas é um negócio que transfere grandes
recursos, que retira da esfera pública, não chega à nação, fica nas
lógicas do Estado e de quem domina o Estado, vai para os grandes crimes
ambientais. O país é esgotado por uma série de barbaridades que têm a
ver muito com essa ideia de estamento porque o Estado brasileiro tem uma
maldição. A maldição é que ele não se profissionaliza de maneira
republicana. Temos uma espécie de maldição de formação dos funcionários
públicos durante o período da República. Todos eram apadrinhados. Se
você é vereador e coloca 20 caras na máquina pública, tem 20 cabos
eleitorais. Estabelece-se uma relação de suserania na qual sabem que o
emprego deles depende dos votos que conseguirão para você na campanha
eleitoral. Quando os partidos chegam ao governo, em primeiro lugar, vão
tentar colocar na máquina pública os seus filiados, para ter um pouco de
respaldo. Mas isso não vai funcionar, porque, se dependerem desse
funcionalismo para fazer suas políticas, estarão fadados ao fracasso e
ao escárnio público. Por isso, aumentam o número de cargos em comissão
(CCs). Os partidos, hoje, administram por meio dos CCs. O funcionário
público, no Brasil, é inconfiável, lento, inoperante, caro, arrogante.
Acha que a nação lhe deve obrigações por ele fazer aquilo que é
obrigação dele. Temos gastos imobilizados que deviam estar na educação
porque há um funcionalismo que gasta e tem eficiência muito
questionável. Se o partido não se basear nos seus CCs, está perdido.
Estabelecemos duas lógicas perversas, mas alimentadas por um único
fundo: a poupança da população. É por isso que o Estado brasileiro é
caro e se joga tanto dinheiro fora. Esse dinheiro não chega aos serviços
que deveriam ser prestados à nação. Se não partirmos para políticas que
tenham ideia de alteridade e de busca afetiva de diferenças, não
teremos solução. Só vão aumentar a violência, a pobreza, a exclusão.
Essa lógica do estamento atingiu o PT?
Todos
os partidos. O PT afundou numa questão moral e política: a sua
inabilidade de compreender o país. Grandes contingentes do PT não
resistiram à força corupta dessa lógica estabelecida pelo estamento.
Para resistir a isso, o sujeito tem de ser muito forte, tem de ter
informações. Em primeiro lugar, tem de ter caráter, uma ideia de moral,
de ética. Mas, fundamentalmente, ter uma relação fraterna, afetiva, com o
povo brasileiro, saber quem são essas pessoas. Para mim, a coisa mais
nojenta é ver pessoas preocupadas em fazer concursos. Não têm nenhuma
preocupação com o sentido do cargo público. Já estão articulados, têm
padrinhos, transversalidades. Os que não têm acham que é mais uma
profissão do Estado, onde vão estar seguros. Conheço muitas pessoas,
principalmente da área do Direito, que não têm nenhuma relação de fundo,
politicamente formativa da sociedade brasileira, para o cargo que vão
exercer. Você vê isso entre os professores. É um tipo de relação que não
tem essa coisa sensível, moralmente afetiva, com o aluno, com o pai do
aluno, uma ideia mínima de coletividade, de país, de fraternidade da
nação.
Esse tipo de atitude não se manifesta em outras esferas da vida nacional?
Muito
disso é alimentado e desenvolvido do ponto de vista de massa no âmbito
do futebol. O futebol faz isso de forma muito efetiva por meio dos
discursos que alimentam rancores de torcida. É contra aquela ideia do
que é o esporte desde os gregos. O esporte, antes de buscar vencer, é o
reconhecimento da capacidade e do talento do outro. No Brasil, a
capacidade e o talento nunca são reconhecidos. Devem ser destruídos.
Não há, por trás dessa crise ética, a perda de referenciais políticos de construção do Brasil?
Sem
dúvida. Sem uma ideia de Brasil, que leve em conta aquelas
prerrogativas que estão inseridas na Constituição de 1988, imaginar um
futuro para o Brasil é chegar a uma conclusão desastrosa. Não temos, de
fato, forças culturais no momento que estabeleçam a base dessa
possibilidade. É preciso imaginar uma República de um ponto de vista
radical, com ideias republicanas, laica, mas fundamentalmente presidida
pela noção de alteridade. Isso tem de ser equalizado num patamar
superior. No Rio Grande do Sul, temos setores da máquina pública e do
Estado que só podem ser ocupados por algumas áreas. Temos uma série de
departamentos e secretarias que só podem ser ocupados por
tradicionalistas. As prefeituras alimentam esse tipo de imaginário
latifundiário, da estância, entre coitados e miseráveis a cultura de
gente entronizada no lombo de um cavalo. São coisas tão elementares, e
isso é levado a uma cultura de massa que estabelece uma perspectiva
pouco otimista sobre o Brasil. E temos a grande novidade na sociedade
brasileira, que apareceu na penúltima eleição, que é o ódio religioso. O
ódio religioso é um componente desesperador para imaginar o futuro
brasileiro. São coisas do século 18 ou até do período medieval, e estão
conduzindo os destinos de grandes populações.
Alguns
setores começam a ser ouvidos: afrodescendentes, indígenas, mulheres,
LGBT. Como o senhor avalia a contribuição desses setores para o país?
Desconfio
que há um componente populista muito grande nessas políticas, que, por
óbvio, podem ter até algum resultado eleitoral, mas não terão nenhum
resultado estruturante. Um exemplo são os sem-terra. Passado o processo
do movimento fundamental dos sem-terra, a segunda e a terceira geração,
grande parte em alguns já transformada em pequenos e médios
proprietários, já com automóvel, conta no banco, casa própria, hoje
estão num campo político diferente daquele que lhes deu essas
conquistas. Temos regiões em que filhos de sem-terra, transformados em
médios proprietários, já são de direita. As conquistas econômicas e
sociais precisam ser garantidas por um nível cultural e de uma leitura
da sociedade. Outra maldição brasileira é o populismo de direita, de
centro e de esquerda. Tivemos avanços na área indígena, mas esse ainda é
o setor mais penalizado no Brasil. Os indígenas fazem um esforço
extraordinário para assumir a possibilidade de serem sujeitos de sua
história. As forças conservadoras não querem reconhecer a história
indígena e sua diferença. Talvez o maior crime político do PT tenha sido
a ineficiência e a falta de cuidado de suas políticas indígenas. Ficou
no assistencialismo e não enfrentou, ao contrário de alguns ministros do
Supremo Tribunal. Não só o governo central, mas governos estaduais como
o do Rio Grande do Sul. Aqui, o governo se prestou a uma emboscada
contra as representações indígenas. Por quê? Porque ainda tem uma ideia
da política como luta de classe, onde o militante do partido tem a
prerrogativa de estabelecer os destinos da nação. É o refugo menor dessa
política do estamento: ocupa o Estado com especialistas, com a cúpula
partidária, e assim determina o destino da população como se fosse
reflexo da política do partido.
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