Marcelo Coelho*
"A luta desesperada contra a tentação e a
reincidência
adianta pouquíssimo, exatamente por ser desesperada,
sem
amor nem redenção possível."
Sou dos que se dão bem com a rotina. O superego já se aquieta quando a gente cumpre um horário dividido em tarefas simples, mesmo que não necessariamente virtuosas.
Só que o Diabo não se engana com tão pouco. Se Deus é vida, como dizem os religiosos, a mesmice tem algo de mortífero quando diminui as chances do espanto e da descoberta.
Proust dizia que o hábito funciona como uma anestesia. Sendo uma "segunda natureza", argumenta, o hábito nos desvia da "primeira", a nossa natureza real, capaz de mais encantos e de mais crueldades.
Não é à toa que, quando se considera a natureza humana uma coisa degradada e propensa ao vício, a disciplina de um mosteiro pareça uma boa solução. Seria necessário a ajuda de muita graça divina, entretanto, para continuar vendo a maravilha do mundo entre as quatro paredes de uma cela.
Digo isso pensando em dois filmes recentes sobre a pedofilia na Igreja Católica: "Spotlight", de Tom McCarthy, atualmente em cartaz, e "O Clube", do chileno Pablo Larraín, exibido no ano passado e ainda não disponível em DVD.
Pena, porque é o melhor dos dois. "Spotlight" é muito bom para quem quer conhecer as emoções, coisas banais, mas contagiantes, de uma investigação jornalística. Como quase sempre no cinema americano, há uma vasta trabalheira antes de se chegar ao final feliz.
A profundidade do mal, o abismo da pedofilia e de seu encobrimento, fica por conta de "O Clube". Feita aos gritos por um bêbado na rua, a mera narração de abusos sofridos na infância já deixa a nossa alma esborrachada no tapete.
Debaixo do tapete as coisas são muito piores. Não há só pedófilos na bem administrada casa à beira-mar que a igreja chilena utiliza como lugar de "retiro e reflexão" para padres desgarrados.
Cada recluso cometeu faltas diferentes. O resultado é que todos se odeiam e desprezam mutuamente. A beleza do mar, dos penhascos e do céu do Chile, só os espectadores do filme podem ver.
A rotina dos reclusos é confortável e pouco exigente; que importa? Eles não veem sequer a si mesmos. A luta desesperada contra a tentação e a reincidência adianta pouquíssimo, exatamente por ser desesperada, sem amor nem redenção possível.
O hábito se torna o demônio, a "Górgona" de que falava Proust, transformando cada pessoa em estátua de sal.
Mas os acontecimentos, como bem sabem os jornalistas, nunca param. E aqui surge um paralelo entre "O Clube" e "Spotlight". Nos dois filmes, um personagem novo entra em cena.
São parecidíssimos, até fisicamente. Na produção chilena, um jovem jesuíta, de barba preta e curta, quieto e implacável, aparece para dar fim àquela infeliz colônia de férias.
Em "Spotlight", a rotina do jornal "Boston Globe" sofre mudanças com a intervenção de um diretor de barba cerrada, frio, silencioso e sistemático, trazido de outra cidade.
O ator Liev Schreiber consegue a proeza de dar vida ao sequíssimo granito de Marty Baron. "Não é exatamente um saco de risadas, não é mesmo?", comenta um jornalista do "Globe" depois de travar conhecimento com o recém-chegado.
Judeu e sem contatos com os milionários católicos de Boston, o novo chefe representa para o jornal a novidade que o jesuíta culto e gélido terminou impondo para a comunidade de "O Clube" -mas aqui as resistências são muito maiores, e novidades mais terríveis caem o tempo inteiro sobre a cabeça do espectador.
A salvação não tem cara boa em "O Clube", e Deus não é um tema na história de "Spotlight". O demônio da rotina está presente, entretanto, nos dois filmes.
Por que o jornal não investigou direito os casos de acobertamento católico de pedofilia, logo quando surgiram os primeiros sinais? Ninguém sabe responder, mas todo jornalista sabe do que se trata.
É o "buraco negro", como escreveu Otavio Frias Filho em sua crítica a "Spotlight", que existe na vida de todas as Redações. Um assunto diferente aparece, alguém trocou de telefone, o repórter ligado ao caso mudou de profissão, o vespeiro era grande, havia outros maiores por perto.
Critica-se com frequência a moda da diversidade cultural, do "politicamente correto" e coisas parecidas. Mas o "outro" vê coisas que não vemos, ou vê as mesmas com relevo diferente. Abrir os olhos não é tão fácil como parece.
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* É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelocoelho/2016/02/1740199-habitos-do-demo.shtml
Imagem da Internet: "El Club", del cineasta chileno Pablo Larraín
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