Dorrit Harazim*
‘Respeito
Gloria Steinem, Madeleine Albright e
todas as pioneirasfeministas. Ainda assim,
voto em Bernie Sanders’
O
resultado das primárias desta terça feira em New Hampshire doeu muito, ainda
dói e vai continuar a doer bastante para Hillary Clinton — pelo menos até ela
conseguir (ou não) consolidar-se como a candidata única do Partido Democrata à
sucessão de Barack Obama nas eleições de novembro próximo.
A
temida rejeição neste início da disputa diante do septuagenário socialista
Bernie Sanders e seu ruidoso séquito de jovens foi agravada por um fogo amigo
que não fora calculado. Na verdade, foram dois os tiros contra, ambos com o
mesmo potencial para ferir a campanha de Hillary numa das pilastras eleitorais
que a candidata contabilizava como lhe pertencendo de direito: o voto democrata
feminino e feminista.
Madeleine
Albright, como se sabe, foi a primeira secretária de Estado dos Estados Unidos
(precursora de Hillary no cargo, portanto), ainda nos anos 1990, além de
embaixadora dos EUA junto à ONU. Nomeada por Bill Clinton, foi adepta de uma realpolitik
dura e deixou um rico glossário de frases memoráveis.
Agora,
às vésperas das prévias em New Hampshire, ela subiu no palanque de Hillary,
exigiu votos para a amiga e advertiu em tom tonitruante para seus 78 anos: “Há
um lugar especial no inferno para mulheres que não ajudam umas às outras!”.
Poucas
horas mais tarde, foi a vez de Gloria Steinem, a cultuada cofundadora da
revista “Ms.” e líder feminista histórica dos anos 1970 ser entrevistada num
programa de grande audiência e forte repercussão entre eleitores de tendência
liberal. Indagada sobre o impacto do senador socialista junto ao eleitorado
jovem feminino, Steinem deu uma resposta da qual se arrependeria mais tarde:
“Quando você é jovem, você quer saber onde estão os garotos. E os garotos estão
com Bernie”. O estrago estava feito.
Ultrajada
por ter sua opção política atribuída a ímpetos dos feromônios, a brigada
Sanders inundou não apenas as redes sociais como as cabines de votação.
Resultado direto ou não, Hillary perdeu em New Hampshire não apenas entre
mulheres de menos de 30 anos (por mais de 60 pontos). Perdeu também por sete
pontos no voto feminino de todas as idades.
Nos
dias seguintes, a premiadíssima atriz Susan Sarandon, do alto de seus 69 anos,
cunhou uma frase durante um comício pró Sanders que se tornaria viral: “Não
voto com minha vagina”. Uma eleitora de Bernie bem mais jovem, Allison Glennon,
publicou uma carta aberta “às mulheres eleitoras de Hillary mais velhas” na
qual explicava como pensa sua tribo:
“Respeito
Gloria Steinem, Madeleine Albright e todas as pioneiras feministas. Ainda
assim, voto em Bernie Sanders. Obrigada por tudo o que nos legaram através de
suas lutas pelos direitos da mulher e dos direitos civis nos anos 50, 60, 70,
80. Como suas filhas, (...) sabemos da árdua luta que garantiu os direitos que
temos hoje. Jamais vamos esquecer. E vamos dedicar nossas vidas também a seguir
esse exemplo. Por causa de vocês, não deixaremos ninguém definir nossos limites
baseados no nosso sexo. Por causa de vocês, seremos fortes face àqueles que
querem nos julgar apenas por nosso gênero e não por nossos corações e mentes.
Por causa de vocês, prometemos não deixar ninguém nos roubar ou comprometer a
liberdade que temos hoje... nem mesmo vocês”.
A
sempre incisiva ensaísta e crítica cultural Camille Paglia também emergiu para
bater forte. “Steinem conseguiu insultar não apenas a inteligência e o
idealismo das jovens como vaporizar cada fã lésbica de Sanders numa não-pessoa
espectral”. Para Paglia, já era hora de o “politburo feminista” ser derrubado e
de o público perceber o quanto o que chama de elite do poder sequestrou e
manipulou a segunda geração do feminismo. “A refinada máscara humanitária de
Steinem caiu, revelando a fascista mumificada que havia por baixo”. Caramba.
Este
não é o primeiro nem será o último conflito geracional de mulheres
progressistas nos Estados Unidos. No fundo, o choque atesta a vitalidade do
debate em curso nas fileiras do Partido Democrata, totalmente ausente nos
dilemas que atormentam os eleitores e movimentam a bizarra plêiade de
candidatos do Partido Republicano.
Ainda
assim, trata-se de um momento singular da vida politica americana. Como
escreveu Ryan Lizza na “New Yorker” da semana anterior, na história moderna dos
Estados Unidos jamais houve candidato democrata favorito tão forte como Hillary
Clinton em 2016. Antes mesma da primeira prévia eleitoral, ela já tinha
garantido o endosso de 12 governadores, 39 senadores, 151 deputados, US$164
milhões em dinheiro de campanha, e mais de 60% das intenções de votos dos
democratas. Bernie Sanders, seu único adversário no partido, até agora só tem o
apoio oficial de dois deputados.
Por
que, então, às vésperas de Hillary ter chance real de tornar-se a primeira
mulher presidente dos Estados Unidos, a primeira comandante-em-chefe da maior
superpotência mundial, esse fator não está tendo o peso histórico que a
negritude de Barack Obama teve na eleição de 2008?
Em
parte porque Hillary já faz parte da cúpula do poder há mais de três décadas,
em diversas modalidades, e o último degrau a ser conquistado por ela não é mais
visto como prioridade única. Talvez isso, por si, seja a sua maior conquista.
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Dorrit
Harazim é jornalista
Imagem da Internet: Hillary Clinton
Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/ser-mulher-nao-basta-18669480
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