BETSY APPLE
Advogada norte-americana e ativista pelos Direitos Humanos
Advogada norte-americana e ativista pelos Direitos Humanos
OS DIREITOS HUMANOS FORTALECEM A TODOS!
Entrevista com Betsy Apple
Advogada e Professora da Universidade Columbia (EUA)
Juliana Sayuri
Direitos humanos para humanos direitos?
Bandido bom é bandido morto?
«São expressões equivocadas, direitos humanos fortalecem a todos»;
«Tudo começa em casa e deve terminar em casa».
Fevereiro de 2015, Carnaval, zika e zica alastrados, prisões abarrotadas, protestos abafados e o vídeo de um garoto de 16 anos sendo decapitado post-mortem em Joinville (SC) – a cabeça rolou no Facebook, mas a polícia ainda não encontrou o corpo –, difícil pensar que a Declaração Universal de Direitos Humanos, assinada em 1948, valha muito. “Direitos humanos para humanos direitos”, alguns gostam de dizer.
“Nunca ouvi essa expressão antes...”, espanta-se Betsy Apple, advogada americana diretora da Open Society Justice Initiative,
instituição internacional que trabalha dando apoio jurídico para
fortalecer o peso da lei em questões de direitos humanos. «Sinceramente
não costumo ouvir pessoas de países periféricos dizendo “ah, direitos
humanos, quem precisa deles?” Ao contrário. Elas dizem “sim, precisamos,
mas estamos tentando descobrir como fazê-los funcionar no mundo real”»,
relata Apple, que já investigou ondas de estupros na África e desafiou a
lei anti-sodomia na Jamaica. Em 2011, liderou uma campanha jurídica da
ONG AIDS-Free World que levou o caso dos gays à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, argumentando que, ao criminalizar a homossexualidade, o governo jamaicano violava direitos humanos. Parece óbvio, mas foi a primeira vez em que a lei anti-sodomia, datada de 1864, foi questionada no país.
Atualmente professora na School of International and Public Affairs [Escola de Relações Internacionais e Públicas] da Columbia University, em Nova York, Apple vê uma tendência global de criminalização do ativismo de direitos humanos alinhada às crescentes políticas repressivas, como indicou o último relatório da Human Rights Watch [saiba sobre esta entidade, clicando aqui],
divulgado na semana passada. «Na verdade, os verdadeiros árbitros das
violações de direitos humanos estão nos tribunais dos próprios países. É
responsabilidade de cada governo abrir, amparar e fortalecer seus
tribunais para proteger os direitos dos cidadãos. Tudo começa e deve
terminar em casa», considera. E se não há tribunais independentes,
leis ou letras que o valha no país? «Essa é a questão: muitas vezes,
precisamos lutar para mudá-las», diz. «(Mas) não vai ser simples,
indolor ou imediato. E talvez não seja nesta vida».
Lavando a roupa suja em casa, a Human Rights Watch citou a violência policial como um dos principais problemas no Brasil – em 2015, foram mais de 3 mil mortes provocadas por policiais, um aumento de 40% em relação a 2014. As prisões, abrigando mais de 600 mil pessoas, estão 61% acima da capacidade. Mas às vezes a a corda arrebenta a favor do lado mais fraco: oito policiais militares foram julgados e condenados pela tortura e pelo assassinato do pedreiro Amarildo de Souza,
desaparecido na Favela da Rocinha, no Rio, em 2013. «Corrupção,
disparidade econômica, discriminação racial, favelas, violência
policial, o Brasil não tem um problema só. São vários. Dizem que o
Brasil é uma nova potência, um país emergente com mais visibilidade e
mais voz nos debates internacionais. Pois usem isso. A partir do momento
em que o país se importa com sua imagem internacional, quer dizer que
há algo a fazer», diz Apple.
Primeiro, o que são direitos humanos?
Betsy Apple:
Em palavras simples, direitos humanos são direitos de todos. É uma
questão de humanidade. Simples, não é? Não. São direitos que articulamos
nos últimos 70 anos, relacionados ao que compreendemos como “humano”, e
que impõem obrigações legais aos governos a fim de permitir que as
pessoas possam viver vidas plenas, livres, dignas. É o que está na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, vale dizer, não tem apenas valor histórico. Ela teve e tem importância como inspiração (soft law, como dizemos no jargão jurídico) e como relevância prática (hard law,
as leis propriamente). A declaração é o alicerce para nossa compreensão
da amplitude dos direitos humanos, dando diretrizes práticas para
diversos governos, principalmente governos mais progressistas. Além
disso, há fontes para as leis internacionais de direitos humanos, por
exemplo, convenções internacionais e tratados que, uma vez ratificados,
os países signatários devem cumprir e fazer valer a lei.
No
Brasil há quem defenda “direitos humanos para humanos direitos”. Ou que
“bandido bom é bandido morto”. O que a sra. pensa dessas expressões? Já
as ouviu em outros lugares do mundo?
Betsy Apple: Nunca
ouvi isso antes. Penso que haja uma ideia equivocada, entre pessoas em
posições de poder ou riqueza, de que garantir direitos humanos tira
parte dos privilégios delas. Na verdade, direitos humanos deveriam
fortalecer a todos. Mas os que estão no poder custam a reconhecer a
importância desses direitos porque pensam que não precisam deles. Já
ouvi pessoas criticando direitos humanos como ideias ocidentais próprias
de países ricos, do hemisfério norte, que não se aplicam ao resto do
mundo. Agora, sinceramente, não costumo ouvir pessoas de países
periféricos dizendo “ah, direitos humanos, quem precisa deles?” Ao
contrário. Dizem “sim, precisamos, mas estamos tentando descobrir como
fazê-los funcionar no mundo real”.
Um dos policiais militares punidos pelo sequestro, tortura e morte do pedreiro Amarildo de Souza na cidade do Rio de Janeiro |
Onde a sra. encontrou mais dificuldade para lidar com violações a direitos humanos?
Betsy Apple: Trabalhei
em diversos países, incluindo Mianmá, Sudão do Sul, Zimbábue,
Tailândia. Dediquei muito tempo à causa LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais
e Transexuais] na Jamaica, um país lindo, mas terrivelmente homofóbico [rejeição ou aversão a homossexual e à homossexualidade].
Ali, uma lei do século 19 considera relações homossexuais crime com
pena de dez anos de prisão. Conseguimos levar o caso de dois gays à
justiça, argumentando que a discriminação homofóbica fere direitos
fundamentais. Mas o que mais me marcou nesses países foi encontrar
ativistas incríveis, fortes e corajosos, que arriscam suas vidas para
desafiar seus governos. E muitos governos estão simplesmente fechando o
cerco contra a sociedade civil. Há países, como a Rússia e o Azerbaijão,
que criminalizaram o ativismo de direitos humanos: é ilegal a formação
de organizações da sociedade civil ou até a assistência de instituições
internacionais.
A sra. atua mais como advogada ou ativista?
Betsy Apple: Faço
um trabalho de impacto internacional, não trabalho diretamente com
questões relacionadas aos Estados Unidos da América (EUA). Já fiz isso
antes, mas não agora. É difícil se considerar um ativista quando se
trabalha na casa dos outros, enfrentando um governo que não é o seu.
Como advogada, dou apoio jurídico, a partir das leis internacionais,
para pressionar governos nacionais. Os ativistas de verdade são os caras
comuns que estão peitando o próprio governo. Eles estão na linha de
frente.
Depois
do 11 de setembro e da guerra ao terror, a tortura perpetrada por
oficiais americanos se tornou um dos grandes desafios para as leis
internacionais de direitos humanos. Quinze anos depois, quanto se
avançou na punição dessas práticas nos EUA?
Betsy Apple: Os
EUA ainda torturam. Guantánamo ainda está ativa, há prisioneiros que
nunca foram oficialmente julgados, há imigrantes islâmicos submetidos a
interrogatórios abusivos, há povos indígenas vítimas de violações de
direitos econômicos e socioculturais, a lista é imensa. Admitir o erro é
um avanço, mas há muitos erros que continuam a acontecer. Nos últimos
dias, eu estava trabalhando na Europa, onde muitas violações estão sendo
registradas agora, relacionadas a imigrantes. Não importa quão rico
seja um país, há violações. Veja o último relatório da Human Rights Watch.
Há razões para o medo, com os ataques terroristas, o Estado Islâmico e a
escala gigantesca de refugiados. Entretanto, muitas ações dos governos
são absurdas, com políticas repressivas ameaçando liberdades civis, por
exemplo, a dura repressão de países contra advogados, ativistas,
jornalistas. Acontece nos EUA, na Europa e imagino que deva acontecer no
Brasil, não? E, além do mais, não são ações exatamente efetivas, pois
perpetuam o pânico e distanciam, amedrontam, alienam as pessoas.
Cuba
e Venezuela são países sempre citados nos relatórios de violações de
direitos humanos, apesar de defender ideais de justiça social.
Betsy Apple: Um
governo que queira justiça social deve ser muito disciplinado para que a
luta não se perca no caminho, para que não seja pervertida e convertida
em repressão. E é muito fácil ver governos usando esses ideais iniciais
como pretexto para a repressão contra seus próprios cidadãos. Aliás,
para atingir justiça social é imprescindível empoderar os cidadãos no
plano econômico e na independência intelectual, tanto para que possam
lutar junto quanto para que possam se manifestar contra. A liberdade de
expressão e de pensamento é um direito humano afinal, garantido no Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Mas não é absoluto.
Qual é o papel da Organização das Nações Unidas (ONU) nessa questão? É apenas um observador?
Betsy Apple: Às
vezes a gente esquece que a ONU é feita de países. É uma coalizão de
193 países. E países são feitos de pessoas. O maquinário é problemático,
muito devagar, muito caro, muito burocrático. Mas eu tento imaginar um
mundo sem a ONU e não consigo. Não quero imaginar um mundo em que não
exista um lugar para os Estados se reunirem. Sei que às vezes parece um
grande desperdício de tempo, mas ainda é um lugar onde os Estados se
reúnem para dialogar e para consolidar regras globais que transcendem
leis internacionais, como as ideias de paz internacional, direitos
humanos e desenvolvimento sustentável. Não é o ideal, mas se não o
tivéssemos, onde mais poderíamos discutir o destino do mundo? Mas nada é
simples: veja as tropas francesas na missão de paz na África, acusadas
de assédio sexual a crianças centro-africanas. É quase além da
imaginação. É um dos piores abusos imagináveis – e a ONU não fez nem
perto do necessário para coibi-lo, instaurando políticas de tolerância
zero e iniciando imediatamente processos para julgar e punir. É
horrível.
Nesta
semana, Zeid Ra’ad al Hussein, alto comissário de direitos humanos da
ONU, criticou a violência policial como um problema gigante no Brasil.
No País, advogados, ativistas e jornalistas já fizeram denúncias,
cidadãos comuns já fizeram manifestações, políticos já prometeram mudar,
mas o sistema continua. O que mais é preciso fazer?
Betsy Apple: O
que posso dizer é que nunca podemos parar de desafiar nossos governos
pelos abusos, pelas prisões infundadas e injustas, pelas repressões
ilícitas. É um processo contínuo. Corrupção, disparidade econômica,
discriminação racial, favelas, violência policial, o Brasil não tem um
problema só. São vários. Dizem que é uma nova potência, um país
emergente com mais visibilidade e mais voz nos debates internacionais.
Pois usem isso. São desenvolvimentos positivos, indicam que o país se
importa de ser um ator global e com sua imagem internacional. A partir
do momento em que o país se importa, quer dizer que há algo a fazer. Não
vai ser simples, indolor ou imediato. E talvez não seja nesta vida.
Também
nesta semana o painel da ONU responsável pela análise de detenções
arbitrárias confirmou a ilegalidade da prisão de Julian Assange na
embaixada equatoriana em Londres. Qual seria o próximo passo? A
libertação do jornalista?
Betsy Apple: É preciso ter clareza: não é “a ONU” dizendo que Julian Assange foi preso arbitrariamente. Isto é o Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária,
órgão de especialistas independentes indicados pelo Conselho de
Direitos Humanos. Eles não falam pela ONU, e suas opiniões não são
legalmente vinculativas, o que quer dizer não há um acordo
conscientemente feito para pedir ou proibir certas ações. Eles não podem
oferecer interpretações autorizadas dos tratados internacionais de
direitos humanos, e os Estados só são obrigados a dar a “devida
consideração” a suas recomendações. A meu ver, esse documento foi mal
pensado e mal escrito, o que é uma pena, pois suspeito que poderá ter um
efeito dominó e lançar esses “procedimentos especiais” (que é o que o
Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária faz) a uma luz sombria. Os
procedimentos especiais normalmente dão contribuições importantes para a
promoção dos direitos humanos, e temo que esse documento, de tão
malfeito, possa ser usado para desacreditar outros casos importantes.
A
lei internacional indica sete sérios crimes: crimes de guerra, crimes
contra a humanidade, crimes contra a paz, escravidão, genocídio,
pirataria e tortura. Para um cidadão comum, como é possível compreender
que às vezes esses crimes cruéis são cometidos, mas não são punidos?
Quem tem o poder para julgá-los?
Betsy Apple: Na
verdade, os verdadeiros árbitros das violações de direitos humanos
estão nos tribunais dos próprios países. As leis internacionais ajudam
as cortes nacionais. Então, no fim das contas, é responsabilidade de
cada governo abrir, amparar e fortalecer seus tribunais para proteger os
direitos de seus cidadãos. Há casos especiais encaminhados para cortes
internacionais, que não são muitas, como a Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional, em Haia. No caso do Brasil, por exemplo, há a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
em San José, na Costa Rica. Não há uma instituição suprema no mundo
capaz de julgar as milhares de violações de direitos humanos que vemos
todos os dias. Antes de tudo, é preciso levar o caso para casa. Tudo
começa em casa e deve terminar em casa. De volta ao básico: garantir uma
constituição forte e um judiciário independente. Se o país não tem uma constituição forte e um judiciário independente, esse é o ponto de partida. É daí que precisa começar.
A lei é justa?
Betsy Apple: Não
dá para defender direitos humanos sem ser otimista. Acredito na
possibilidade de melhorar o mundo – o que não quer dizer que não tenha
visto situações horríveis no mundo real. Sou realista, mas acredito que
essas violações não vão durar para sempre. E as leis não são sempre
justas. Há leis repressivas, injustas, absurdas. No entanto, se não
tivermos leis, como poderemos procurar responsáveis por crimes e impor
castigos? Essa é a questão: muitas vezes, precisamos lutar para
mudá-las.
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Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 7 de fevereiro de 2016 – Pág. E1 – Internet: clique aqui.
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