Slavoj Žižek*
Neste artigo, enviado diretamente pelo autor ao Blog da Boitempo intitulado
“Um ensaio sobre o simples ato de defecar em público, ou, A
insustentável leveza da vulgaridade”, o filósofo esloveno Slavoj Žižek
parte de uma análise da figura de Donald Trump contra a de Bernie
Sanders no atual debate eleitoral estadunidense, para esboçar um
diagnóstico global do fenômeno de dilapidação da esfera pública na
ressurgência das vulgaridades do discurso “politicamente incorreto”, e
ancorá-lo nos impasses do capitalismo global hoje.
A tradução é de Artur
Renzo.
* * *
Alguns meses
atrás, o empresário e pré-candidato Republicano à presidência dos EUA
Donald Trump foi carinhosamente comparado a um sujeito que defeca
barulhentamente no canto de uma sala durante um respeitável coquetel
formal. Mas será que os demais candidatos republicanos à presidência dos
EUA são substancialmente melhores?
Todos lembramos da infame cena do filme O fantasma da liberdade,
dirigido por Luis Buñuel, em que as relações entre comer e excretar sao
invertidas: as pessoas se sentam à volta da mesa em suas privadas
conversando normalmente, e quando sentem fome, discretamente se dirigem
ao mordomo – “Por favor, onde fica aquele lugar de…?” – e se escapolem
para um quartinho nos fundos para comer.
Pois bem,
não seriam os debates dos candidatos repúblicanos – para prolongar a
metáfora – muito semelhantes a essa reunião do filme de Buñuel? E o
mesmo não valeria também para muitos dos principais políticos no mundo
hoje? Erdoğan não estava também defecando em público quando, num recente
estouro de paranoia, taxou os críticos a sua política em relação Curdos
como traidores e agentes estrangeiros? E Putin não estava também
defecando em público quando (em um ato calculado de vulgaridade pública
que visava elevar sua popularidade em casa) ameaçou um crítico de suas
políticas para a Chechênia de castração química? E, por fim, não estava
Sarkozy também defecando em público quando, lá em 2008, estourou com um
fazendeiro que se recusou a apertar sua mão – “Casse-toi, alors pauvre con!” (uma tradução generosa seria algo como “Então sai fora, seu idiota!”, mas seu real significado é muito mais grosseiro) –?
E a lista
continua… Em um discurso no Congresso Sionista Mundial em Jerusalém, no
dia 21 de outubro de 2015, o primeiro ministro de Israel Benjamin
Netanyahu sugeriu que Hitler só queria expulsar os judeus da Alemanha, e
não exterminá-los, para defender que, na verdade, teria sido Haj Amin
al-Husseini, o mufti palestino de Jerusalem, que teria de alguma forma
persuadido o Führer a realmente matá-los.
Netanyahu
então narrou um suposto encontro entre as duas figuras, datado de
novembro de 1941, em que al-Husseini teria dito que se Hitler expulsasse
os judeus da Europa “eles viriam todos para aqui [para a Palestina]”.
Segundo Netanyahu, o Führer alemão teria retrucado, “Então o que você
sugere que eu faça com eles?”, ao que o mufti teria respondido,
“Queime-os”. Os principais pesquisadores israelenses do Holocausto
imediatamente problematizaram essas afirmações, assinalando que a
conversa entre al-Husseini e Hitler não pode ser comprovada, e que o
genocídio dos judeus europeus pelas unidades móveis da SS já estava
sendo levada a cabo há um bom tempo, antes do suposto momento em que os
dois teriam se reunido em pessoa.
Por isso,
não devemos nos iludir quanto ao verdadeiro significado de afirmações
como essas de Netanyahu: trata-se de um claro sinal da regressão de
nossa esfera pública. Acusações e ideias que estavam até agora
confinadas ao obscuro submundo da obscenidade racista e do lamaçal
xenofóbico estão agora ganhando respaldo nos discursos oficiais.
O problema aqui está no que Hegel chamou de Sittlichkeit:
a eticidade dos costumes, o espesso pano de fundo de regras (não ditas)
da vida social, a densa e impenetrável substância ética que nos diz o
que podemos ou não fazer. Essas regras estão desintegrando hoje: o que
era simplesmente indizível em um debate público algumas décadas atrás
pode agora ser proferido com absoluta impunidade.
Pode parecer
que essa desintegração está sendo relativamente contraposta pelo
crescimento do “politicamente correto”, que prescreve exatamente o que
pode e não pode ser dito; no entanto, um olhar mais atento imediatamente
revela como a regulação dita “politicamente correta” participa do mesmo
processo de desintegração da substância ética. Para demostrar esse
ponto, basta retomar o impasse do politicamente correto: a necessidade
de regras “politicamente corretas” surge quando os valores não ditos de
uma sociedade não são mais capazes de regular efetivamente as interações
cotidianas – no lugar de costumes consolidados seguidos de forma
espontânea, ficamos com regras explícitas (“negro” se torna
“afro-americano”, “favela” se torna “comunidade”, um
ato de “tortura” passa a ser denominado oficialmente de “técnica
aprimorada de interrogação”… de tal forma que “estupro” poderia muito
bem passar a ser chamado de “técnica aprimorada de sedução”). O
ponto fundamental é que a tortura – um ato de violência brutal
praticada pelo Estado – passa a ser tornada publicamente aceitável a
partir do momento em que a linguagem pública se verte ao politicamente
correto para proteger as vítimas da violência simbólica. Os dois
fenômenos são lados da mesma moeda.
Podemos
identificar um fenômeno semelhante em outros domínios da vida pública.
Quando se noticiou que, de julho a setembro de 2015, o “Jade Helm 15” –
uma série de exercícios militares estadunidenses – ocorreria no sudoeste
dos EUA, imediatamente começaram a pipocar alegações conspiratórias.
Levantou-se a suspeita de que os exercícios integravam uma grande trama
do governo federal para submeter o estado do Texas à lei marcial, num
ato de violação direta da Constituição. Encontramos todos os suspeitos
usuais participando dessa paranoia conspiratória – até o ator Chuck
Norris se pronunciou! Mas o mais maluco de todos certamente é o que
lemos no site All News Pipeline, que associou esses exercícios
ao fechamento de uma série de megalojas da Wal-Mart no Texas: “Serão
esses enormes galpões usados como ‘centros de distribuição alimentar’ e
abrigar o HQ das tropas chinesas invasoras, que desembarcariam aqui
visando desarmar os americanos um a um, como prometeu Michelle Obama,
antes de Obama deixar a Casa Branca?” Mas o que
deixa o caso realmente sinistro é a reação ambígua da própria
oficialidade política republicana texana: o Governador Greg Abbott
mobilizou a Guarda do Estado para monitorar o exercício e Ted Cruz
exigiu detalhes ao Pentágono.
Donald Trump
é a expressão mais pura dessa tendência de aviltamento de nossa vida
pública. Veja: o que Trump faz para “roubar a cena” nos debates públicos
e nas entrevistas? Ele oferece uma salada de vulgaridades
“politicamente incorretas”: estocadas racistas (contra imigrantes
mexicanos), alimenta suspeitas sobre o local de nascimento de Obama e
sobre seu diploma universitário, profere ataques de extremo mal gosto
contra as mulheres e não poupa ofensas a heróis de guerra como John
McCain.
Essas
tiradas de grosseiras funcionam para indicar que Trump não está nem aí
para os falsos costumes, que ele pode dizer “abertamente o que ele (e
muitas pessoas comuns) pensam.” Ou seja, ele deixa claro que, apesar de
ser um empresário bilionário, ele é também um sujeito ordinário e vulgar
assim como nós, pessoas comuns.
No entanto,
essas vulgaridades não devem nos iludir: o que quer que Trump possa ser,
ele não um perigoso elemento externo. Na verdade, seu programa é até
relativamente moderado (ele reconhece muitas das conquistas
democráticas, e sua posição em relação ao casamento gay é ambíguo). A
função de suas provocações “refrescantes” e estouros vulgares é
precisamente a de mascarar a incontornável ordinariedade de seu
programa.
Seu
verdadeiro segredo é de que se, por algum milagre, ele ganhar, nada vai
mudar – em constraste com Bernie Sanders, o candidato democrata de
esquerda cuja principal vantagem sobre a esquerda liberal, politicamente
correta, é que ele compreende e respeita os problemas e os medos dos
trabalhadores e fazendeiros comuns. O duelo eleitoral realmente
interessante seria aquele entre Trump como candidato Republicano
contra Sanders como candidato Democrata.
Mas por que
falar de educação, polidez e modos em público hoje, num momento em que
estaríamos diante de problemas muito mais urgentes e “reais”? Bem,
porque os modos importam sim – em situações tensas, são uma
questão de vida ou morte, uma linha tênue que separa a barbárie da
civilização. Há um fato surpreendente sobre os mais recentes estouros de
vulgaridade pública que merece ser ressaltado. Em 1960, vulgaridades
ocasionais eram associadas à esquerda política: revolucionários
estudantis muitas vezes usavam linguagem comum para enfatizar sua
distância da política oficial, com seus jargões polidos. Hoje, a
linguagem vulgar é praticamente apanágio exclusivo da direita radical.
De forma que a esquerda se vê na posição de defensora da decência e dos
modos públicos.
É por isso
que a direita Republicana “racional” e moderada está em pânico: depois
do declínio das fortunas de Jeb Bush, ela está desesperadamente em busca
de uma nova cara, brincando até com a ideia de apelar para a figura do
Bloomberg.
Mas a
verdadeira lição a ser registrada aqui é a seguinte: o real problema
está na própria fragilidade da posição moderada “racional”. O discurso
capitalista “racional” convence mais a maioria da população, que está em
verdade muito mais propensa a endossar uma posição populista
anti-elitista. E este fato não deve ser descartado como um mero caso de
primitivismo das classes baixas: os populistas corretamente detectam a
irracionalidade dessa abordagem racional; sua ira contra as instituições
anônimas que regulam suas vidas sem transparências é, nesse sentido,
completamente justificada.
***
* Slavoj Žižek
nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo,
psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por
diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl
Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política
da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto
de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for
Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do
centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou
Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014) e o mais recente O absoluto frágil (2015). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2016/02/19/zizek-donald-trump-e-o-retorno-do-politicamente-incorreto/
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