MARCUS ANDRÉ MELO*
RESUMO O texto rebate afirmação do sociólogo Jessé Souza, que
destacou, em entrevista à "Ilustríssima", a suposta "demonização" do
Estado na sociedade brasileira. O autor argumenta que, pelo contrário,
na história do Brasil o poder e o papel do Estado têm sido exaltados, em
contraste com a tradição da democracia liberal.
Foto Danilo Verpa/Folhapress | |||||
Instigante debate tem sido gerado pela assertiva de Jessé Souza, na "Ilustríssima" (10/1),
de que o Estado tem sido, no Brasil, "demonizado como corrupto e
ineficiente e o mercado visto como o reino de todas as virtudes". Na
realidade, as raízes do Brasil político e institucional passam longe de
Sérgio Buarque de Holanda: elas se assentam em solo diverso, na
santificação do Estado.
As instituições políticas brasileiras foram moldadas por essa visão
iliberal. Ela foi o princípio organizador da ordem social de acesso
limitado, para usar o conceito de Douglass C. North e coautores, que
caracteriza o Brasil do século 20.
O Brasil monárquico, centralizador e escravagista do século 19 é por
excelência o Brasil "Saquarema". Esse Brasil é produto da imaginação
política do Visconde do Uruguai e dos líderes do Regresso Conservador:
eles que forjaram as instituições fundamentais do país. Como lembra José
Murilo de Carvalho, Uruguai é o pai do projeto conservador vitorioso
que aposta na intervenção autoritária do Estado para redimir a nação e
que marcou o Brasil do século 20.
Esse projeto se assenta no pressuposto de que a sociedade civil e o
mercado são viciosos –faccionais, particularistas, locais– e de que o
Estado é o ator fundamental nesse reformismo "pelo alto". O Estado
demiurgo garantiria a integridade da ordem territorial e social.
Os discípulos diretos dessa visão no século 20 são Alberto Torres e
Oliveira Vianna. Ao referir-se ao Brasil "invertebrado" criado pela
República, Torres postulava um Estado forte que domasse os interesses
privados regionais e patrocinasse o interesse coletivo. Em "Organização
Nacional" (1910), Torres apresentou um projeto de reforma constitucional
nacionalista e centralizador –e forneceu parte considerável do léxico
iliberal que dominou o discurso político no século 20. Nessa chave, as
instituições políticas liberais eram consideradas pouco propícias para
prosperar no solo brasileiro. Vem de Torres e de pequeno círculo de
publicistas com quem mantinha afinidades eletivas a fantasia do espelho
de Próspero: a noção de que a democracia era coisa alienígena porque
anglo-saxônica.
O nosso "Ocidente" seria outro: Ibérico. Iberismo e democracia,
autogoverno, ou governo limitado, seriam incompatíveis. Vem também desse
círculo de publicistas o horror aos partidos políticos e à competição
política. O "locus" da política eram os Estados –todos os partidos eram
estaduais–, daí o horror à federação.
Quando finalmente escreveram uma constituição –para um Estado Novo em
folha–, celebraram-na com uma tenebrosa queima de bandeiras estaduais.
Torres também forneceu a chave para a fórmula da disjunção "país legal
versus país real". Não adiantava insistir, como seu adversário Rui
Barbosa, em fazer cumprir a letra da lei, mas reconhecer o "idealismo da
constituição", e superá-lo. Em livro com esse título, Oliveira Vianna
sustentou que o remédio para essa disjunção era um Estado forte que
asseguraria seus interesses contra os interesses mesquinhos, porque
privados, dos clãs familiares. Para isso seria necessário passar por
cima da Constituição artificial, porque liberal, ou elaborar uma carta
constitucional em que o império da lei fosse uma ficção.
CORPORATIVISMO
Barbosa Lima Sobrinho, em sua biografia de Torres, mostra a influência
decisiva dessa agenda na criação das instituições da Era Vargas –cujos
principais atores políticos reuniam-se na Sociedade dos Amigos de
Alberto Torres, fundada em 1932. Um dos seus membros, Oliveira Vianna,
foi artífice de instituições com as quais convivemos até hoje, as
estruturas corporativistas que regulam o mercado de trabalho no Brasil: a
Justiça do Trabalho, o imposto sindical, a unicidade sindical, o IAA
(Instituto do Açúcar e do Álcool), o IBC (Instituto Brasileiro do Café) e
outros órgãos do intervencionismo econômico, como o Código de Águas e
de Minas –a lista é longa.
Vianna flertou abertamente com o racismo e o fascismo, mas a maioria dos
arquitetos do Brasil contemporâneo não aderiu abertamente a projetos
totalitários. A historiografia brasileira criou uma expressão própria
para identificar o conteúdo substantivo do programa desses publicistas:
"liberais autoritários", por buscarem fortalecer direitos individuais a
partir de instrumentos autoritários. Na balança, na realidade, esses
direitos pesavam muito menos do que a razão de Estado.
Foto Danilo Verpa/Folhapress | ||
É fundamental enfatizar que Uruguai, Torres e Oliveira Vianna não eram
literatos. Não moldaram apenas a visão de mundo dos brasileiros, tal
como Sérgio Buarque de Holanda. Uruguai, Torres e Oliveira foram todos
membros de cortes superiores e presidentes de província e Estados –além
de ministros. Foram homens de Estado, construtores de instituições.
Influenciaram gerações de militares golpistas e a esquerda brasileira.
A rejeição ao liberalismo naquele contexto não foi um fenômeno
brasileiro –só que no Brasil deitou raízes que permanecem até hoje. As
democracias maduras fortaleceram o Poder Executivo e aprofundaram a
democracia, extirpando a dimensão iliberal; no Brasil só fizeram a
primeira tarefa, não a segunda. Muitas instituições (do mercado de
trabalho etc.) continuam intactas até hoje e apresentam patologias
desconhecidas no resto do mundo (como a existência de 38 mil sindicatos
inorgânicos).
O denominador comum do programa conservador, à esquerda e à direita, era
o caráter subordinado que questões relativas à regra da lei, a
responsabilização e controle democrático do Estado ocupavam na agenda de
mudança. As instituições de controle e os direitos civis e políticos
mereceram apenas notas de rodapé.
A emancipação individual via educação não entrou na agenda. A democracia
era valor não universal: o ditador foi aclamado pelo queremismo como
grande líder. Afinal, matava, mas redistribuía. Não importava se as
lideranças de esquerda tivessem apodrecido no calabouço do Estado Novo.
Um novo "xibolete" fornecia a defesa contra a denúncia do abuso de poder
e da corrupção: a desqualificação como udenismo.
A perda da eficácia simbólica dessa arma retórica no Brasil na atual conjuntura é sinal de mudança na cultura política.
Fortalecer o Poder Executivo na nova era industrial era imperativo, mas,
ao mesmo tempo, seria necessário fortalecer os controles democráticos,
como insistia Afonso Arinos. Essa agenda só foi enfrentada na
Constituição de 1988, quando houve delegação significativa de poder ao
Ministério Público, ao Judiciário, aos tribunais de contas. As reformas
dos anos 1990 também eliminaram parte do legado varguista.
A República Velha viveu a maior parte do tempo sob estado de sítio e
poucas vozes se insurgiam contra o militarismo, o abuso de poder, a
falta de competição política, a corrupção. O único a se levantar contra o
estado de coisas vigente foi Rui Barbosa. Para ele, o presidente
brasileiro havia se convertido no "poder dos poderes, o grande eleitor, o
grande nomeador, o grande contratador, o poder da bolsa, o poder dos
negócios, e o poder da força. Quanto mais poder tiver menos lhe devemos
cogitar na ditadura [...] por todos reconhecida mas tolerada,
sustentada, colaborada por todos".
Rui e poucos outros buscaram seis vezes aprovar a Lei de
Responsabilidade, sem sucesso: "Ainda não houve presidente nesta
democracia republicana que respondesse por nenhum dos seus atos. Ainda
nenhum foi achado a cometer um só desses delitos, que tão às escâncaras
cometem. A jurisprudência do Congresso Nacional está, pois, mostrando
que a Lei de Responsabilidade, nos crimes do chefe do Poder Executivo,
não se adotou, senão para não se aplicar absolutamente nunca".
E concluía: " O presidencialismo brasileiro não é senão a ditadura em
estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade
consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo". A lei
pedida por Rui só foi aprovada 40 anos depois, e debatida seriamente
apenas na atual conjuntura de crise do país.
GRANDE ELEITOR
O monopólio do poder pelos incumbentes e o abuso do cargo estão patentes
na falta de competição política: presidentes eleitos com 90% (Rodrigues
Alves) ou 99,7% (Washington Luís) dos votos.
Na denúncia de Rui, em 1914, estão apontadas as principais mazelas do
Brasil, que surpreendem por sua atualidade: o presidente orwellianamente
denominado por Rui de "O Grande Eleitor" exercia e continua a exercer
papel decisivo na sobrevivência política dos deputados e senadores na
barganha por emendas ao Orçamento e distribuição de cargos na base
aliada.
Na República Velha, as eleições eram uma disputa para selecionar quem
desfrutaria "o privilégio de ser o aliado do poder central" (Nunes Leal)
–padrão que foi decerto muito mitigado com a introdução do
multipartidarismo. Como Rui afirmou, os governos eram "pais e senhores
das maiorias legislativas". Hoje essas maiorias continuam sendo
construídas à sombra do Executivo, mas não ancoradas em arranjos
programáticos –e sim em fundos públicos.
O presidente era e continua sendo em graus distintos "O Grande
Nomeador", detendo o poder de nomear e demitir milhares de servidores. O
presidente também é "O Grande Contratador". Usa e abusa do orçamento
público em relações incestuosas com o setor privado. Modernamente
manipula o crédito de bancos públicos sob seu controle direto e maneja
politicamente os investimentos de fundos de pensão. O presidente
encarna, e continua a fazê-lo, o poder da Bolsa, o poder dos negócios.
Na ordem social de acesso limitado não há distinção entre empresa e
Estado: essas esferas se amalgamam intimamente. A falta de instituições
que representem compromissos críveis eleva os custos de transação e cria
uma estrutura de incentivos danosa ao desenvolvimento endógeno.
As instituições são a chave para o desenvolvimento, para o chamado novo
institucionalismo econômico de North e da nova economia política do
desenvolvimento de Daron Acemoglu e coautores. A natureza e a qualidade
das instituições explicam em grande medida o sucesso e fracasso das
nações.
As "raízes do Brasil"–a chave para a compreensão do dilema brasileiro–
são as instituições políticas e econômicas extrativas que foram
implantadas ou a ordem social de acesso limitado que caracterizou a
sociedade brasileira, para utilizar conceitos dessa literatura.
Historicamente o traço distintivo foi a exclusão política e social: do
escravo, do analfabeto e das mulheres.
A extensão do sufrágio para as mulheres e a criação da Justiça Eleitoral
em 1932 (reduzindo as fraudes) aumentou a inclusão. A introdução da
representação proporcional permitiu pela primeira vez na história que
incumbentes fossem derrotados, revigorando a participação política e o
pluralismo. Mas a exclusão do analfabeto perdurou até a Emenda
Constitucional 25 de 1985. Só com a recente redemocratização a
participação política se universalizou.
Os três pré-requisitos ("doorstep conditions") –império da lei, controle
da violência e instituições impessoais– para a transição à sociedade de
acesso aberto, segundo North, só agora parecem ter adquirido alguma
materialidade.
Podemos dizer gramscianamente que, enquanto "a velha ordem morre e a
nova não nasce, ainda surge uma grande variedade de sintomas mórbidos":
sua manifestação é o desfile de descalabros a que os brasileiros têm
assistido com perplexidade.
O Brasil de grande parte do século 20 é uma ordem social de acesso
limitado. Em contraste com o que North denomina estados naturais frágeis
e básicos, a violência aberta, produto da competição interelites, foi
em grande parte contida. O império da lei é limitado e emerge em virtude
do reconhecimento pelas elites de que permite ganhos recíprocos: surge
do conluio rentista. O império da lei para Acemoglu resulta da contenda
redistributiva; para North ele é produto de um arranjo intraelite, de
seu autointeresse (esta é a principal controvérsia entre eles).
Essa interpretação é mais persuasiva: o império da lei só tem tido
alguma efetividade na contenda entre as elites políticas e econômicas. O
regramento das disputas entre elites e não elites foi marcado pela
impunidade. A teoria prevê que o império da lei expanda o seu escopo do
círculo das elites para a sociedade como um todo. A identidade dos
atores tem importado cada vez menos, como se pode observar nas decisões
da instituições judiciais brasileiras.
Quanto à violência política, ela marcou o século 20, pelo menos até a
redemocratização. O início da República foi um episódio militar, e eles
foram atores fundamentais em 1922, 1926, 1930, 1937, 1945, 1954,
1964-85. Pela primeira vez na história, a violência parece domada.
Nas sociedades de acesso aberto, a "destruição criadora" leva
permanentemente à criação e, pela competição, dissipação de rendas
geradas pela inovação. Nas sociedades de acesso limitado, as rendas
tendem a ser mais duradouras, embora possa ocorrer volatilidade e
circulação nos setores das elites. As rendas são politicamente
distribuídas, desencorajando a inovação e engendrando ciclos de "stop
and go". Não há componente endógeno no desenvolvimento. As rendas se
manifestam das mais variadas formas: crédito subsidiado, direcionado,
acesso a contratos governamentais, regras de conteúdo, desonerações. E,
para o Estado, a captura do imposto inflacionário.
O abuso de poder e o risco permanente de expropriação de contratos têm
sido o traço distintivo no Brasil, e só na quadra atual observa-se pela
primeira vez a efetiva punição das elites. Mas, se o chefe do Executivo é
iliberal, a mudança sofre retrocessos.
MAJESTADE
Assim, as raízes do Brasil econômico são políticas. A essa mesma
conclusão chegou, em 1932, Ernest Hambloch, cônsul britânico no Rio de
Janeiro. Para ele o problema do atraso econômico do país resultava de
suas instituições políticas e, particularmente, do abuso de poder
presidencial. Em seu livro sugestivamente intitulado "Sua Majestade o
Presidente do Brasil" (1936), sua crítica centrava-se no poder despótico
exercido pelo Executivo e a ausência de "rule of law", o império da
lei:
"Quando as coisas continuamente não estão bem em um país com os recursos
formidáveis que o Brasil possui, deve haver uma constante que explique o
fenômeno. Altas tarifas de importação, impostos de exportação,
políticas de valorização com endividamento excessivo, falta de
continuidade nas políticas de administração pública, distúrbios sociais e
revoluções –todos esses fatores podem ser apontados para explicar as
atribulações do comércio e das finanças públicas. Mas esse fatores não
são as causas fundamentais e eles próprios não explicam nada!"
E conclui: "As raízes dos problemas brasileiros devem ser buscadas nas deficiências do regime político".
A forte tradição iliberal é a grande vencedora no processo histórico de
construção do Estado no país. Sustentar o contrário é perder de vista o
essencial: as instituições políticas brasileiras foram forjadas a partir
de uma profunda rejeição de uma visão liberal "latu senso". As raízes
do Brasil político e econômico não estão fincadas na demonização do
Estado: pelo contrário, estão profundamente imbricadas na sua
santificação. A transição começou, embora a grande variedade de sintomas
mórbidos cause perplexidade.
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MARCUS ANDRÉ MELO é professor titular de ciência política da
Universidade Federal de Pernambuco e foi professor visitante nas
universidades Yale e MIT.
ilustração ANA PRATAFonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/01/1734970-raizes-do-brasil-politico-os-caminhos-de-um-projeto-iliberal.shtml
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