O
mundo é um livro, e aqueles que não viajam leem apenas a primeira
página, disse Santo Agostinho. E, no fundo, é isso. Ainda que um pequeno
passo faça a diferença. Um passo para lá do hotel é já um pedaço de
viagem.
Jorge Hernandez, em Bogotá, quando foi fumar à porta do hotel, às três da manhã, encontrou vários pedintes. Um deles falava latim. A profundidade dos nossos encontros, a antiguidade daquilo que se fala, depende de um pequeno passo. Encontramos nos olhos do acaso uma outra vida, uma outra forma de oferecer um cigarro. Uma outra forma de dar um passo em frente, de ler mais umas páginas.
Ao entrar no táxi, na manhã seguinte, o condutor explicou-me que tinha sido um monge copista noutra vida.
- Noutra vida? - perguntei eu.
- Irlandês, ano mil quinhentos e tal.
Acrescentou que em criança sofria muito porque, ao começar a escrever nos cadernos da escola, queria deixar espaço para a iluminura, os anjos, as flores, mas não dava porque as folhas eram pautadas.
Também foi um príncipe inglês (tinha dois cães), uma criança negra que foi espancada (serviu para perceber que ser negro é sofrimento - antes de compreender isso era racista). Contou-me da bolsa que a namorada lhe deu, que era a mesma bolsa que uma mulher lhe dera quando fora príncipe inglês.
Mostrei alguma admiração pelo seu percurso, em especial pelo modo como dominava tantas vidas, enquanto eu tinha tanta dificuldade em ser feliz numa só.
Onde é que aprendeu isso, perguntei eu, e o taxista disse-me que aprendeu regressão e auto-hipnose com um engenheiro da Nasa que hipnotizava astronautas.
- Terminal um? - perguntou-me, depois de me explicar o segredo de viver tantas coisas.
- Esse.
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* Escritor português.
Fonte: http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/2015-10-21-O-mundo-dizem-e-um-livro
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