O presidente do Conselho Pontifício da Cultura considera que o
traço mais distintivo do escritor e pensador italiano Umberto Eco, que
morreu esta sexta-feira, aos 84 anos, em Milão, foi a «curiosidade».
Eco era uma pessoa «convicta da complexidade do real e queria
sempre olhar para lá das próprias fronteiras», afirmou Gianfranco Ravasi
em entrevista publicada este domingo no jornal "Avvenire", diário da
Igreja católica em Itália.
Ravasi sublinha que as raízes etimológicas do termo
"curiosidade" apontam para o «cuidado, paixão, preocupação com alguma
coisa: não é simplesmente andar às voltas da realidade como uma
borboleta, mas também procura de envolvimento».
O cardeal recorda que Umberto Eco «tinha uma verdadeira paixão
pelos estudos bíblicos, ainda que dissesse que nunca os tinha podido
praticar» e sabia-se como não compreendia o motivo por que os alunos
das escolas deveriam «saber tudo dos deuses homéricos e quase nada de
Moisés, tudo da Divina Comédia e não do Cântico dos Cânticos e doutros
textos bíblicos».
«Estando a par da minha prática exegética, estava sempre pronto a
dialogar comigo; entre os textos que mais o fascinavam destacava por
exemplo o Qohélet [Eclesiastes]», acrescentou.
Além da Bíblia, a amizade entre Ravasi e Eco centrava-se também
na «literatura medieval», que recorda o romance "O nome da rosa", a que
acrescenta a «paixão» por S. Tomás de Aquino, cuja estética esteve na
base da sua formação universitária.
«Recordo a sua emoção quando lhe mostrei um texto autógrafo do
santo, escrito com uma grafia quase incompreensível, obscura, nos
antípodas da sua lucidez lógica», lembrou Ravasi, que dirigiu uma das
mais importantes bibliotecas cristãs do mundo, a Ambrosiana, em Milão.
O amor comum ao livro completava a convergência de interesses
entre ambos, relatou o cardeal, lembrando que a Biblioteca Ambrosiana
«fascinava tanto» Umberto Eco, que ele a frequentava «quando estava
fechada, para poder andar entre as salas em liberdade».
O prelado sublinhou também que a «experiência religiosa juvenil»
de Umberto Eco foi «uma matriz que nunca quis esquecer, não obstante o
seu espírito profundamente laico; havia nele o desejo de ver como se
poderia viver a experiência de fé sem renunciar a toda a curiosidade
cultural. Sempre com grande respeito pelos temas teológicos e de
espiritualidade».
Também no domingo, o jornal do Vaticano, "L'Osservatore Romano",
realçou a «grande, inexausta paixão pelo conhecimento» que marcou a
«vastíssima e multiforme produção literária» do autor.
Umberto Eco caracterizou-se por um «desejo voraz, incessante,
bulímico de conhecer, ler, aprofundar», escreve Silvia Guidi,
acrescentando que a fixação em S. Tomás de Aquino continuaria após o
doutoramento, ao estudar «com a mesma paixão e o mesmo empenho o
significado de "integritas", "consonantia" e "claritas" no pensamento
do "Doutor Angélico".
Da atração do autor pelos «florilégios e pastiches mais ou menos
mascarados (e mais ou menos assinalados explicitamente nas notas de
rodapé) nasce o celebérrimo romance "O nome da rosa", uma centena de
textos medievais traduzidos, reelaborados e voltados a juntar em torno a
um cativante drama negro que foi um "best seller" traduzido em todo o
mundo».
Para a autora, «o grande brilho intelectual» do «inventor da
semiótica» tem, todavia, um lado sombrio, quando repetia que «tudo é
falsificável», que «os instrumentos da comunicação servem só para
mentir e a própria vida é um jogo sem importância», posição
«aparentemente descontraída e irónica, mas talvez imbuída pela
amargura».
Depois de referir que nem toda a «imensa» bibliografia do
professor é assinalada de sucessos, o artigo recorda que a militância
católica de Umberto Eco nos anos juvenis se foi desvanecendo com o
tempo, e termina com uma citação apropriada para esta hora, em que «a
sua vida terrena se concluiu».
«Se um dia chegar ao paraíso e puder encontrar Deus, tenho duas
possibilidades. Se é aquele vingativo do Antigo Testamento, volto as
costas e vou para o inferno. Se, em vez disso, é aquele do Novo
Testamento, então lemos os mesmos livros e falamos a mesma língua.
Entender-nos-emos.»
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Por Rui Jorge Martins
Fonte: http://www.snpcultura.org/umberto_eco.html
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