Gilles
Lapouge*
Nesse tempo em que até as estrelas parecem domesticadas, o clima é um dos últimos animais selvagens em liberdade. Tentamos domá-lo com a técnica. Mas, com a natureza encurralada, o que será da felicidade?
No início, o aquecimento climático era tímido. Avanços furtivos. Não sabia
como se impor. Suas maneiras eram serenas, inefáveis e mais felizes. Colocava
claridade nas noites de outono e a neve resplandecia sob o sol. Nas praias, os
seios das mulheres brilhavam s de bronzeador. No verão, multidões alegres se
precipitavam na imensidão das águas do Trocadéro, em Paris.
Ocasionalmente, o clima lançava um alerta. Num determinado outono, decidiu
que as andorinhas passariam o inverno na França e não na África. No verão
seguinte, um grande pedaço de iceberg deixava a Groenlândia, mas não fizemos
disso uma grande história. Apenas um momento a se atravessar. É assim, o clima:
num mundo escravizado e cujas estrelas estão cada vez mais domesticadas, ele é
um dos últimos animais selvagens ainda em liberdade. Faz o que lhe dá na
cabeça. É travesso, ama a exceção e prepara surpresas. Sob o Rei Sol, o Castelo
de Versalhes era um castelo de gelo, mas, nos séculos seguintes, o termômetro
começou a subir.
Contudo, há uma quinzena de anos o calor ganha partes do mercado. Os
objetivos da guerra que trava contra nós mudaram. Ele não se contenta mais em
nos impor noites sufocantes, mas revolve o baú dos nossos tesouros.
Elevar o grau de álcool do vinho, organizar ondas de calor são efeitos que
não bastam mais para ele. O clima investe contra a geografia e até a geologia,
rebaixando as montanhas e provocando o desaparecimento dos lagos. E o mais
sacrílego: atemoriza nossos filósofos, modificando os quatro elementos que
desde Empédocles e Aristóteles sustentam nossas ciências e metafísicas: o ar, o
fogo, a terra e a água.
Amo a neve, que é feita de água, e a neve desaparece. Adeus ao branco das
coisas, adeus à virgem e imaculada, o cintilante dos cumes. Fim do gelo nas
ruas e das batalhas de neve no pátio da escola, do “odor da maçã e da infância
de neve”, do ruído da neve que cai.
Nos Alpes, o que se afirma é que a neve diminuirá cerca de 70% daqui a 2070.
É verdade que tais observações são incertas. Convém não confundir o volume de
neve com a neve que cai, que parece menos afetada, mas de qualquer maneira está
em declínio. No passo de Portes, nos Pirineus, nos anos 60 havia 1,50m de neve.
Cinquenta anos depois, não passa dos 90 cm.
É importante adicionar duas informações inquietantes: na Groenlândia, as
neves se tornaram negras. E a previsão é do fim das neves eternas nos Alpes. O
fim das neves eternas! É como se os deuses abandonassem, na ponta dos pés, suas
residências.
O desaparecimento da neve arruinará nossa história. Todo o nosso passado
ficará desfigurado. Como retirar da nossa memória o corpo nu de Carlos o
Temerário (Carlos I, da Borgonha), cuja metade do corpo foi devorada pelos
lobos nas neves sangrentas de Lorraine, em janeiro de 1477? E o que fazer dos
soldados sonâmbulos do Grande Exército no caminho do rio Berezina?
“Deixe a neve chegar”, dizia o marechal Kutuzov quando seus generais
insistiram para ele atacar os franceses. O marechal era melhor estrategista do
que os seus generais. Utilizava, ao lado dos seus velhos canhões, a neve,
porque sabia que ela é um dos grandes Manitus da história.
A neve tem outro mérito. Achamos que ela faz desaparecer, ao passo que ela é
reveladora. Ela suprime para desvelar. Nas manhãs de neve, abro minha janela e
descubro um além-mundo. A cortina silenciosa se abre e percebo um universo mais
longínquo que as cataratas do rio Zambeze. Animais desconhecidos, tão serenos
quanto os sonhos, deixaram sobre o branco da neve traços de suas asas, suas
patas, suas garatujas no quadro branco do nada. Eles me fazem sinal. Jamais os
vi. E me dizem que o mundo é mais vasto que o mundo.
Em um livro publicado há alguns anos, propus a criação de um museu da neve.
Possuímos museus de todo o tipo, da bicicleta, da faiança, dos escaravelhos, de
arte africana Dogon e dos Inuit, mas da neve não temos nada. Como nos consolar
com o fato de não podermos jamais admirar uma neve da antiga Babilônia, ou a de
David Copperfield, ou mesmo aquela que o profeta Isaías tanto amava?
Um tal museu permitiria colocar à prova o belo livro de Junichiro Tanizaki,
Elogio da Sombra, e compreender enfim porque as neves do Japão, menos brancas
que as nossas, são mais belas também porque contêm o ouro do céu, as cores da
lua, das cerejas e do infinito. No meu museu, poderíamos enfim admirar as
famosas neves da era Kyôwa, que afirmam ser atormentadas por uma melancolia
azulada.
Imaginava esse museu da neve como uma fantasia. Não fazia ideia que meio
século depois a neve seria um objeto em vias de extinção. Ora, soube agora que
um museu da neve, ainda modesto, existe. Foi inaugurado em 2014 na exposição O
Duro Desejo de Durar, na comuna francesa de Audièrne. Ele encerra neves que
caíram em dezembro de 2010. O responsável não foi buscar neves da Renascença e
menos ainda neves do Baixo Império Romano, mas o museu está no bom caminho. Seu
criador é um artista plástico, Jean-Pierre Lenoir, que vive em Molles,
Auvergne.
Mel amargo. As abelhas estão entre os mais antigos companheiros do homem.
Estão encarregadas das nossas flores, nossas folhas e nossos galhos. Fecundam
os campos e as florestas. Pintam o mundo. Se desaparecessem, o planeta seria
cinza, branco e negro, e muito insípido. Além disso, não teríamos mais nada
para comer. Albert Einstein afirmava, não sem exagero, que, se as abelhas
morressem, os homens não sobreviveriam mais do que quatro anos.
Hoje elas vêm desaparecendo. Já nos viram demais. Não as agradamos, de modo
nenhum. E elas morrem. Os Estados Unidos formam exércitos de abelhas supletivas
que são alugadas para fecundar os prados ou os campos em perigo. Há vinte anos
o desastre aumenta, se aprofunda. Milhares de estudos têm sido realizados. A
maioria indica os mesmos responsáveis: inseticidas ou pesticidas que privam as
abelhas da sua linguagem.
Recentemente, um outro assassino veio se sentar no banco de acusados: o
clima. Os zangões selvagens, outro tipo de abelha, são cada vez mais raros.
Razão disso? Eles, que fecundam os jardins e os campos abaixo do paralelo 50º,
ou seja, da Bélgica, sofrem com o aquecimento global. Por infelicidade,
diferentemente de outras espécies mais sagazes, os zangões selvagens não têm
ideia de partir para o Norte e morrem de calor.
No caso das abelhas, acreditamos hoje que uma das causas de sua penúria,
além dos inseticidas e pesticidas, também é o calor. O processo da sua morte,
porém, não se assemelha à dos zangões selvagens. Com o aquecimento, as
primaveras são mais longas e mais quentes. No entanto, essa é a estação do
labor para a abelha. A abelha tem 20 a 30 dias de trabalho a mais. Portanto, os
caprichos do clima as levam a trabalhar excessivamente, a ponto de se
esgotarem.
Graças a Deus ainda restam espécies selvagens que representam 90% do total
das abelhas do planeta. Deparei com algumas na Amazônia. As euglossini,
especializadas em orquídeas e bromélias, as mamangabas, da tribo Bombini, que
preferem as passifloras. Essas abelhas são sedutoras, sem ferrão, costumam ser
pequenas, fantasistas, sonhadoras e não muito competentes.
Selvagens, libertárias, anarquistas, rejeitando tanto a ideologia marxista
como a do social-liberalismo, desprezando as casernas e os campos de
concentração inventados pelas abelhas domésticas, as mamangabas se recusam a
compartilhar suas energias. A abelha selvagem é solitária. Ela desdenha o
trabalho em grupo. Como estes seres livres podem competir com o imenso exército
de abelhas de nossas colmeias comunitárias?
As abelhas selvagens não fabricam toneladas de mel, mas gotas. E depositam
estas gotas em potes de cera minúsculos. Esse mel microscópico tem um sabor
delicioso e é muito bom no campo da medicina: algumas pessoas se curam num
piscar de olhos do abominável Bacillus anthracis, o Anthrax que faz parte do
arsenal dos grupos terroristas.
Hoje se afirma que empresários vindos da América do Norte pretendem
transformar bilhões de abelhas selvagens em bilhões de abelhas domésticas. Seu
intento seria criar escolas de abelhas onde treinadores ou instrutores
ensinariam as abelhas solitárias a se reunirem em grupo, como numa “festa de
vizinhos”, a sacrificar a liberdade que defendem há 100 milhões de anos e
formar colônias, exércitos de operárias dóceis, idiotas e desesperadas,
populações escravas, robôs trabalhando na escuridão da colmeia, para o planeta
continuar cintilante e fértil.
Salvar o mel, preservar as cores e as mesclas da natureza são, claro,
necessidades e dever de nossas gerações. Mas, para organizar a sobrevivência do
mel e da polinização, sermos obrigados a tornar esses seres subversivos e
intratáveis que são as abelhas selvagens em operárias anônimas condenadas ao
inferno do trabalho perpétuo é, na minha opinião, um dos efeitos mais perversos
do aquecimento do clima. Para salvar o mel, seria necessário portanto reduzir à
escravidão centenas de comunidades de insetos livres e imaculados.
Paradoxos como este são observados não só no campo das abelhas. No tocante à
neve, nas estações de esqui, a escassez de neve obriga a bombardear as pistas
com neves artificiais. Esta é a detestável bordoada do aquecimento do clima.
Ele nos força a substituir as neves de antanho por neves industriais, neves
imaginadas pelos homens e que não existem.
Da mesma maneira, a elevação das temperaturas e também a poluição nos
obrigam a colocar uma camisa de força nas espécies raras, nas flores raras, nos
animais raros, que resistiram à ordenação, à disciplina, à lógica industrial,
ao trabalho forçado e à escravidão. Tal é a sombra hedionda do aquecimento
climático e da poluição: salvamos florestas, mas vamos discipliná-las. Salvamos
os animais, os leões, os antílopes e os golfinhos, mas vamos encarcerá-los em
zoológicos ou em “reservas” repletas de proibições e guardas armados. Às vezes,
somos obrigados a ensinar de novo os animais selvagens a serem selvagens.
Criamos escolas de selvageria, como criamos escolas para domesticar as abelhas
selvagens.
Não critico aqui nem as tentativas de salvar a polinização graças às abelhas
selvagens, nem a proteção das plantas e dos animais. Para mitigar a morte das
abelhas domésticas, é lógico reduzir as abelhas selvagens à escravidão?
Constato apenas que para sobreviver num mundo poluído, violado pelos humanos e
cada vez mais quente, as plantas e os animais são obrigados a marchar em fila
indiana, como os homens.
O mal do GPS. Quanto ao clima, o trabalho de remanejamento está bem
avançado. Começou bem antes do aquecimento. E tem prosseguido desde o início
das sociedades, da mesma maneira que a geografia tem a tarefa, desde
Anaximandro e Ptolomeu, de ordenar o inesperado das formas da terra do mesmo
modo que as palavras há muito tempo foram disciplinadas pelas regras da poesia
alexandrina, ou ainda como o caos da História foi reorganizado em períodos,
sequências e em lógica para o trabalho dos historiadores.
Os meteorologistas já tornaram a previsão do clima uma ciência exata. Em que
se transformou o tempo, o belo tempo, em que o clima era selvagem? Há cinquenta
anos os meteorologistas da rádio nos anunciavam céus azuis ou escuros, ao
acaso. Hoje, quase nunca se enganam. E o que dizer do GPS, esta invenção mirabolante
que nos impede de ceder à atividade mais humana, por mais angustiante e
perigosa que seja, mas também a mais magnífica: nos perdermos.
Eu me esforço para não ceder ao pessimismo, mas vejo o avanço de um tempo
irracional: para garantir a sobrevivência das abelhas, da neve, da água e mesmo
dos ventos, os homens serão condenados a completar a natureza por meio da
técnica, do artifício, da indústria, da manufatura.
E isso não é uma espécie de “ficção climática”. Nos Estados Unidos o
Microbotics Lab, da universidade de Harvard, fabricou um drone liliputiano, o
RoboBee, teleguiado. Esta abelha de vidro voa, pousa nas flores, mas depois não
sabe mais o que fazer. É incapaz de recolher o pólen. Na Polônia, a faculdade
de mecânica, energia e aviação produziu uma abelha minúscula, equipada com
pequenas escovas capazes de realizar a coleta do pólen. Infelizmente essa
maravilha é muito frágil. A menor corrente de ar bloqueia seus mecanismos.
Ninguém duvida no entanto que num futuro próximo abelhas forjadas pelo gênio
humano conseguirão polinizar.
E então realizaremos estranhos passeios pelos campos: milhões de robôs
liliputianos estarão soltos nos nossos bosques e plantações. A cadeia produtiva
do mel será restaurada. Mas a natureza, nesse curioso tabuleiro de xadrez,
receberá xeque-mate. E num mundo sem neve nem flores, em que se transformará a
felicidade? / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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ESTE TEXTO É O DISCURSO DO AUTOR
NO "PARLEMENT SENSIBLE", PAINEL DE DEBATES ACERCA DAS
MUDANÇAS CLIMÁTICAS PROMOVIDO PELA CASA DE ESCRITORES E LITERATURA,
EM PARIS
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,um-mundo-sem-neve-nem-flores,10000015255
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