Contardo Calligaris*
A desigualdade é a culpada da vez.
Ela seria a nossa grande falha – política, econômica e moral.
"O Capital no Século 21", de Thomas Piketty, contestado ou aclamado,
tornou-se um best-seller: enfim alguém apontava o dedo para a vergonha
do capitalismo tardio.
Depois da Segunda Guerra Mundial, nos EUA e na Europa, a gente parecia
se encaminhar para um mundo médio, com ambições e consumo médios –um
dia, estaríamos todos vivendo no bonito subúrbio de um filme americano
dos anos 1960.
Esse sonho (ou pesadelo) acabou nos anos 1980. Na década de 1990,
pareceu claramente que o retorno dos investimentos financeiros era maior
do que o nosso crescimento econômico. Ou seja, os ricos seriam sempre
mais ricos, e os outros, mais pobres.
Aumentando, a desigualdade econômica se traduziria em desigualdade de
influência política e acabaria com nossas democracias –os ricos sendo
mais cidadãos do que os pobres. No Brasil, isso não seria novidade.
Na Folha de sábado (13), Eleonora de Lucena comentou o livro de Robert
Gordon, "The Rise and Fall of American Growth" (ascensão e queda do
crescimento americano), para quem a desigualdade crescente compromete o
futuro econômico dos EUA.
Reduzir a desigualdade se tornou a palavra de ordem do século que
começa. É preciso diminuir os supersalários, investir em educação para
garantir oportunidades a todos, aumentar os impostos dos mais ricos e
ajudar os mais pobres com políticas assistenciais. A desigualdade
começou a parecer obscena, moralmente condenável.
Mas eis que aparece o pequeno livro de um filósofo, que João Pereira
Coutinho já comentou nesta "Ilustrada" (29/12/2015): "On Inequality"
(sobre a desigualdade), de Harry Frankfurt.
Frankfurt mostra que a desigualdade está nos distraindo do verdadeiro
problema moral: o escândalo não é que Bill Gates tenha infinitamente
mais do que eu; o escândalo é que alguém, aqui ou onde quer que seja,
não tenha o necessário.
Ou seja, em si, a igualdade não é um valor moral, nem a desigualdade é
uma falha moral da sociedade. O escândalo é a existência da pobreza.
Mas o que é a pobreza? O que significa não sermos pobres? Para
Frankfurt, a resposta vai muito além da lista das necessidades vitais:
não somos pobres quando temos o suficiente para viver uma vida que
julguemos boa. Obviamente, a definição do que é suficiente e necessário
para ter uma vida boa é diferente para cada um.
Frankfurt poderia citar Marx, que não era igualitarista e, na "Crítica
do Programa de Gotha" (1875), definia o comunismo assim: "De cada um
segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades".
Agora, de onde vem a ideia de que a diferença excessiva seria a grande falha moral da nossa época?
Minha hipótese (e provocação) é que a indignação com a desigualdade
(mais do que com a pobreza) é, digamos, um efeito Facebook: para saber
se minha vida me satisfaz, eu preciso sempre compará-la à dos outros.
Em termos psicológicos, para a moral que parece dominante na nossa época, o desejo se confunde com a inveja, perde-se nela.
Cuidado. Não acho que a inveja seja desprezível. A inveja tem uma função
importante: é por ela que descobrimos e valorizamos a série infinita
dos objetos que nos dão alguma satisfação (efêmera, mas, mesmo assim,
alguma satisfação).
A inveja nos ajuda a escolher o carro, a bicicleta, o apê, o perfume, o
bolo, o lugar de férias e até o parceiro –ou seja, aquelas coisas que
queremos, eventualmente, para emular um outro, competir com ele ou até
pelo duvidoso prazer de ter o que ele não tem.
O desejo se expressa nessas bagatelas atrás das quais a inveja corre
("Eu quero isso, quero aquilo"¦"); mas, antes disso, o desejo é aquela
parte de nossa história que orienta nossa vida.
Um exemplo trivial:
1) eu sonho com um carro de luxo (expressão de
inveja);
2) mas quero ser professor e ter dois filhos (orientação do
desejo);
3) terei o suficiente para uma vida boa, se conseguir ser
professor e sustentar meus filhos;
4) poderia deixar de ensinar ou de
ter filhos para me dedicar a ganhar dinheiro.
Terei uma vida boa?
Só um cuidado: às vezes, dedicar-se a ganhar dinheiro é mesmo o desejo
de alguém –geralmente, aliás, esse é o caso de quem consegue mesmo
enriquecer.
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* Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor.
Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito
contemporâneo (patológicas e ordinárias).
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2016/02/1740434-desigualdade.shtml
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