Faranaz Keshavjee*
A especialista em estudos islâmicos, Faranaz Keshavjee, desmistifica algumas representações sociais sempre carregadas de preconceitos e desinformação (Parte I)
Aqui
em Portugal, como em qualquer parte da Europa, ou noutra parte do mundo
onde o Islão não seja conhecido, ou não seja a religião dominante,
falar de muçulmanos equivale a falar de terroristas, bárbaros, árabes,
fundamentalistas, misóginos, ou exóticos.
São representações
sociais sempre carregadas de preconceitos e desinformação ora porque a
historiografia projeta estas mesmas imagens distorcidas, ora porque os
media tendem a hegemonizar 1,8 milhares de milhões de muçulmanos
espalhados pelo mundo inteiro, não obstante as línguas, tradições
costumeiras, interpretações de fé, ou outras diferenças. Entre algumas
dessas falsas representações encontramos as seguintes:
Mito 1: O Islão oprime a Mulher e obriga-a ao uso do véu
Sou
capaz de arriscar e dizer que a primeira dessas imagens é a da mulher
com um véu ou uma burka. É uma imagem que serve para colocar a
generalidade do mundo islâmico como sendo defensor da opressão,
violência e menorização da mulher e do seu papel social. A esta imagem,
estão associados relatos de mulheres apedrejadas até à morte, por
adultério, ou suspeita de, e a diminuição do seu estatuto civil perante a
lei. Acontece, ao contrário do que é a ideia generalizada no mundo não
muçulmano, que os países onde se impõe a obrigatoriedade do uso do véu
são o Irão e a Arábia Saudita, e recentemente também o Afeganistão. Em
países cujos regimes seguem o modelo de governo e legislação wahabista,
como a Arábia Saudita e o Afeganistão, a mulher está proibida de
conduzir e pode sofrer a morte por apedrejamento. Pese-se também que
nestes contextos o estatuto civil de uma mulher perante a lei é 3 vezes
menor que a de um homem. Ora, se isto é verdade, é preciso referir que
estas não são práticas comuns entre a generalidade dos muçulmanos. Para
que se entenda, dos 1.8 milhares de milhões de muçulmanos, a Arábia
Saudita, o Afeganistão e o Irão, em conjunto, contém aproximadamente 8%
da população muçulmana do mundo inteiro, sendo que desses 4,8% são
Iranianos.
Na realidade, há mais países muçulmanos que advogam o
não uso do véu do que aqueles que o requerem. Isto porque o véu não é
uma obrigatoriedade “Islâmica”. Não está escrito nem no alcorão que seja
forçoso a mulher usá-lo, nem nos exemplos dados pelo próprio profeta do
Islão. Conforme tenho explicado, a expansão e adoção da religião
muçulmana fez-se por um processo de islamização das práticas costumeiras
de cada povo que recebeu o “facto islâmico”. É importante também
referir que, ao contrário do que é exigido nas sociedades ocidentais
seculares modernas, nos países predominantemente muçulmanos, a
diversidade e escolha individual de uso ou não do véu, ou lenço, é vista
como uma forma de liberdade de expressão da mulher.
Acresce a
estes aspectos o facto curioso de que nos últimos 30 anos a esta parte,
os países maioritariamente muçulmanos tiveram já 9 mulheres chefes de
estado (Paquistão, Turquia, Indonésia, Senegal, Kosovo, Quirguizistão,
Maurícias, e duas no Bangladesh).
Mito 2: o Islão advoga o conservadorismo e o fundamentalismo
Em
várias partes do mundo, incluindo o Médio-Oriente, África e Ásia do
Sul, encontramos países que reclamam que o seu sistema governamental é
baseado na lei islâmica, e nesses encontramos o conservadorismo. Aí
encontramos situações de limitações na liberdade de expressão e a
violação dos direitos humanos, em particular o das mulheres, como vimos
ser o caso da Arábia Saudita, Afeganistão, Irão e Paquistão. Muito
embora, estes sejam os países que normalmente se usam como exemplos
mediáticos para reforçar um estereótipo construído pela historiografia
europeia sobre os muçulmanos em geral, é importante perceber que todo o
corpo legislativo construído desde a morte do profeta foi resultado do
trabalho de homens e da sua própria interpretação do que eram já os
costumes locais de sociedades de tipo patriarcal.
Inúmeros são os
versículos qurânicos que podem servir para contestar este tipo de
legislação de privilégio do género masculino onde nem os homossexuais
são poupados. Todavia, se os intérpretes e legisladores construíram uma
legislação milenar, costumeira e ultrapassada, urge agora o tempo que os
muçulmanos progressistas advogam como o da revisão da interpretação
dessas leis à luz de sociedades paritárias, nas quais as liberdades e
deveres individuais são claras no alcorão, sobre o valor da vida humana e
da consciência social, independentemente dos géneros, credos, ou outras
diferenças.
É ponto assente para a maioria dos pensadores e
líderes muçulmanos progressistas que é necessária uma revisão dos
princípios fundacionais do islão em detrimento de um modelo
fundamentalista que tem vindo a destruir a mensagem qurânica de unidade
na diversidade, e respeito e integração do Outro.
Mito 3: Todos os árabes são muçulmanos e todos os muçulmanos são árabes
As Pew Reports de 2011 sustentam que esta é uma ideia completamente falsa.
Sim,
o Facto Islâmico teve início na Arábia, e foi revelado na língua árabe,
e por isso é uma língua particularmente acarinhada, até porque não
seria possível fazer a exegese do Alcorão senão mesmo a partir da língua
em que foi originalmente transmitida. É sabido como as alterações das
vogais, e os múltiplos significados que cada termo possa ter no árabe,
se passados para as línguas vernaculares, os resultados podem ser
complexos e potencialmente falíveis.
Todavia, dos 1,8 milhares de
milhões de muçulmanos no mundo, só 20% deles são árabes. 22% da
população cristã no mundo é africana, mas nem por isso dizemos que os
cristãos são todos africanos ou que os africanos são todos cristãos.
O
país que tem o maior número de muçulmanos é a Indonésia, com 205
milhões, seguido da Índia, com 175 milhões. Curiosamente, existem mais
de 14 milhões de Cristãos no mundo árabe, ou seja, existe mais um milhão
de cristãos árabes do que toda a população judaica no mundo!
Mito 4: A Jihad é uma Guerra Santa e é para se fazer contra o Ocidente
Conforme
escrevi no meu texto sobre “a violência no alcorão”, neste mesmo
blogue, a Jihad significa literalmente “esforço” no caminho de algo. No
caso do Islão, a Jihad-e-Akbar (a grande Jihad) é suposto ser um esforço
no sentido de encontrar um equilíbrio entre a vida material e a
espiritual, onde nenhuma delas seja preterida em detrimento da outra.
A Jihad como hoje se ouve falar, e sobretudo pelos media e o próprio
auto-proclamado
“estado islâmico” vem de uma ideia de Guerra Santa – ideia essa criada
pelos próprios europeus. Historicamente, o jihadismo como ideologia e
movimento político resulta da necessidade de, durante a Guerra Fria, os
americanos terem motivado muçulmanos no Paquistão a tomar as rédeas – a
fazerem a sua Jihad – para o controlo da fronteira com o Afeganistão,
prevenindo a invasão dos russos que, à época, dominavam esta região. A
ideia inicial resultou bem, pois depois de prolongados períodos de
colonização e descolonização de vários territórios predominantemente
muçulmanos, e tendo em conta que a Jihad-e-ashgar (a Jihad mais pequena)
se referia à batalha para conquista ou em defesa do território, a ideia
foi resultando e ganhando proporções que estudos aprofundados podem
traçar o rasto, desde o início destes movimentos até aos dias de hoje.
Quanto
a ser ou não uma guerra contra o Ocidente, há pelo menos duas variáveis
a reter: 1) sendo que o jihadismo é um movimento de guerra de ocupação
de territórios e de poder de exploração de energias locais, em
concomitância com a obrigação de conversão dos povos conquistados a uma
interpretação fundamentalista e radicalizada do Islão, de predominância
saudita e sunita, apoiada e sustentada pelos interesses e recursos dos
Estados Unidos da América, é difícil determinar de que “ocidente”
falamos. Primeiro porque o jihadismo é suportado indiretamente pelas
superpotências ocidentais, e segundo, porque milhões de muçulmanos são
eles próprios ocidentais, e portanto estariam a fazer uma guerra contra
si mesmos. E 2) num mundo de abissais clivagens de desconhecimento sobre
o islão e sobre os muçulmanos, não só por parte de não muçulmanos, como
dos próprios muçulmanos ignorantes da história e desenvolvimentos da
sua identidade religiosa, agravada por problemas de marginalização
sócio-económica e problemas identitários resultantes de histórias de
diásporas passadas, é complicado perceber de que “ocidente” falamos
quando dizemos que o islão ou os muçulmanos querem destruir. O que é que
exatamente se pretende destruir? O islão que não conhecem, ou o
ocidente onde nunca se conseguiram integrar? Ou será que o jihadismo
atual no ocidente e contra o ocidente é realmente uma rebelião contra um
mundo de sonhos desfeitos, empregos nunca conseguidos, estatutos
sociais jamais alcançáveis, ausência de ideais para um futuro
interessante, ou efetivamente, uma verdadeira banalização do mal, tal
como Hannah Arendt explicou ser a natureza humana.
Qualquer que seja a interpretação, o facto é que no que diz respeito à Jihad, e à origem do conceito, o mito permanece.
NOTA: Esta é a primeira parte do artigo. A segunda será publicada na próxima semana
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* Faranaz Keshavjee nasceu a 11 de Janeiro de 1968,
em Moçambique, na então capital Lourenço Marques e chegou como
“retornada” a Portugal, em Setembro de 1974, aterrando no Bairro Alto,
bem no meio das ruas estreitas e carismáticas por onde passavam o fado,
as varinas e os travestis.O fascínio e o gosto pelo estudo e
investigação nas ciências sociais e humanas levaram-na a estudar
primeiro para uma licenciatura em Antropologia Social e depois um
Mestrado em Psicologia Social no ISCTE, seguindo depois para o Reino
Unido onde se especializou em Estudos Islâmicos e Humanidades, no
Institute of Ismaili Studies em Londres, e prosseguindo a sua
investigação para um doutoramento na Universidade de Cambridge. As
questões de género e identidades sociais dos muçulmanos em Portugal
fizeram parte dos seus trabalhos académicos. Quando regressou a Portugal
trabalhou no Centro Ismaili como consultora académica, e deu aulas nas
Universidade Católica, Lusófona e no Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas. Traduziu obras académicas sobre o Islão, foi
conferencista em debates nacionais e internacionais, cronista no Público
e bloguer no Expresso. O 11 de Setembro foi a data a partir da qual
passou a ser referência incontornável nas discussões, entrevistas e
publicações sempre que se tratasse de questões ligadas ao Islão e às
sociedades muçulmanas.
Fonte: http://visao.sapo.pt/opiniao/bolsa-de-especialistas/2016-02-26-Mitos-sobre-o-Islao?utm_source=newsletter
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