sábado, 27 de fevereiro de 2016

Mitos sobre o Islão

Faranaz Keshavjee*
 

A especialista em estudos islâmicos, Faranaz Keshavjee, desmistifica algumas representações sociais sempre carregadas de preconceitos e desinformação (Parte I)

Aqui em Portugal, como em qualquer parte da Europa, ou noutra parte do mundo onde o Islão não seja conhecido, ou não seja a religião dominante, falar de muçulmanos equivale a falar de terroristas, bárbaros, árabes, fundamentalistas, misóginos, ou exóticos.

São representações sociais sempre carregadas de preconceitos e desinformação ora porque a historiografia projeta estas mesmas imagens distorcidas, ora porque os media tendem a hegemonizar 1,8 milhares de milhões de muçulmanos espalhados pelo mundo inteiro, não obstante as línguas, tradições costumeiras, interpretações de fé, ou outras diferenças. Entre algumas dessas falsas representações encontramos as seguintes:

Mito 1: O Islão oprime a Mulher e obriga-a ao uso do véu

Sou capaz de arriscar e dizer que a primeira dessas imagens é a da mulher com um véu ou uma burka. É uma imagem que serve para colocar a generalidade do mundo islâmico como sendo defensor da opressão, violência e menorização da mulher e do seu papel social. A esta imagem, estão associados relatos de mulheres apedrejadas até à morte, por adultério, ou suspeita de, e a diminuição do seu estatuto civil perante a lei. Acontece, ao contrário do que é a ideia generalizada no mundo não muçulmano, que os países onde se impõe a obrigatoriedade do uso do véu são o Irão e a Arábia Saudita, e recentemente também o Afeganistão. Em países cujos regimes seguem o modelo de governo e legislação wahabista, como a Arábia Saudita e o Afeganistão, a mulher está proibida de conduzir e pode sofrer a morte por apedrejamento. Pese-se também que nestes contextos o estatuto civil de uma mulher perante a lei é 3 vezes menor que a de um homem. Ora, se isto é verdade, é preciso referir que estas não são práticas comuns entre a generalidade dos muçulmanos. Para que se entenda, dos 1.8 milhares de milhões de muçulmanos, a Arábia Saudita, o Afeganistão e o Irão, em conjunto, contém aproximadamente 8% da população muçulmana do mundo inteiro, sendo que desses 4,8% são Iranianos.

Na realidade, há mais países muçulmanos que advogam o não uso do véu do que aqueles que o requerem. Isto porque o véu não é uma obrigatoriedade “Islâmica”. Não está escrito nem no alcorão que seja forçoso a mulher usá-lo, nem nos exemplos dados pelo próprio profeta do Islão. Conforme tenho explicado, a expansão e adoção da religião muçulmana fez-se por um processo de islamização das práticas costumeiras de cada povo que recebeu o “facto islâmico”. É importante também referir que, ao contrário do que é exigido nas sociedades ocidentais seculares modernas, nos países predominantemente muçulmanos, a diversidade e escolha individual de uso ou não do véu, ou lenço, é vista como uma forma de liberdade de expressão da mulher.
Acresce a estes aspectos o facto curioso de que nos últimos 30 anos a esta parte, os países maioritariamente muçulmanos tiveram já 9 mulheres chefes de estado (Paquistão, Turquia, Indonésia, Senegal, Kosovo, Quirguizistão, Maurícias, e duas no Bangladesh).

Mito 2: o Islão advoga o conservadorismo e o fundamentalismo

Em várias partes do mundo, incluindo o Médio-Oriente, África e Ásia do Sul, encontramos países que reclamam que o seu sistema governamental é baseado na lei islâmica, e nesses encontramos o conservadorismo. Aí encontramos situações de limitações na liberdade de expressão e a violação dos direitos humanos, em particular o das mulheres, como vimos ser o caso da Arábia Saudita, Afeganistão, Irão e Paquistão. Muito embora, estes sejam os países que normalmente se usam como exemplos mediáticos para reforçar um estereótipo construído pela historiografia europeia sobre os muçulmanos em geral, é importante perceber que todo o corpo legislativo construído desde a morte do profeta foi resultado do trabalho de homens e da sua própria interpretação do que eram já os costumes locais de sociedades de tipo patriarcal.

Inúmeros são os versículos qurânicos que podem servir para contestar este tipo de legislação de privilégio do género masculino onde nem os homossexuais são poupados. Todavia, se os intérpretes e legisladores construíram uma legislação milenar, costumeira e ultrapassada, urge agora o tempo que os muçulmanos progressistas advogam como o da revisão da interpretação dessas leis à luz de sociedades paritárias, nas quais as liberdades e deveres individuais são claras no alcorão, sobre o valor da vida humana e da consciência social, independentemente dos géneros, credos, ou outras diferenças.

É ponto assente para a maioria dos pensadores e líderes muçulmanos progressistas que é necessária uma revisão dos princípios fundacionais do islão em detrimento de um modelo fundamentalista que tem vindo a destruir a mensagem qurânica de unidade na diversidade, e respeito e integração do Outro.

Mito 3: Todos os árabes são muçulmanos e todos os muçulmanos são árabes

As Pew Reports de 2011 sustentam que esta é uma ideia completamente falsa.

Sim, o Facto Islâmico teve início na Arábia, e foi revelado na língua árabe, e por isso é uma língua particularmente acarinhada, até porque não seria possível fazer a exegese do Alcorão senão mesmo a partir da língua em que foi originalmente transmitida. É sabido como as alterações das vogais, e os múltiplos significados que cada termo possa ter no árabe, se passados para as línguas vernaculares, os resultados podem ser complexos e potencialmente falíveis.

Todavia, dos 1,8 milhares de milhões de muçulmanos no mundo, só 20% deles são árabes. 22% da população cristã no mundo é africana, mas nem por isso dizemos que os cristãos são todos africanos ou que os africanos são todos cristãos.
O país que tem o maior número de muçulmanos é a Indonésia, com 205 milhões, seguido da Índia, com 175 milhões. Curiosamente, existem mais de 14 milhões de Cristãos no mundo árabe, ou seja, existe mais um milhão de cristãos árabes do que toda a população judaica no mundo!

Mito 4: A Jihad é uma Guerra Santa e é para se fazer contra o Ocidente

Conforme escrevi no meu texto sobre “a violência no alcorão”, neste mesmo blogue, a Jihad significa literalmente “esforço” no caminho de algo. No caso do Islão, a Jihad-e-Akbar (a grande Jihad) é suposto ser um esforço no sentido de encontrar um equilíbrio entre a vida material e a espiritual, onde nenhuma delas seja preterida em detrimento da outra.

A Jihad como hoje se ouve falar, e sobretudo pelos media e o próprio

auto-proclamado “estado islâmico” vem de uma ideia de Guerra Santa – ideia essa criada pelos próprios europeus. Historicamente, o jihadismo como ideologia e movimento político resulta da necessidade de, durante a Guerra Fria, os americanos terem motivado muçulmanos no Paquistão a tomar as rédeas – a fazerem a sua Jihad – para o controlo da fronteira com o Afeganistão, prevenindo a invasão dos russos que, à época, dominavam esta região. A ideia inicial resultou bem, pois depois de prolongados períodos de colonização e descolonização de vários territórios predominantemente muçulmanos, e tendo em conta que a Jihad-e-ashgar (a Jihad mais pequena) se referia à batalha para conquista ou em defesa do território, a ideia foi resultando e ganhando proporções que estudos aprofundados podem traçar o rasto, desde o início destes movimentos até aos dias de hoje.

Quanto a ser ou não uma guerra contra o Ocidente, há pelo menos duas variáveis a reter: 1) sendo que o jihadismo é um movimento de guerra de ocupação de territórios e de poder de exploração de energias locais, em concomitância com a obrigação de conversão dos povos conquistados a uma interpretação fundamentalista e radicalizada do Islão, de predominância saudita e sunita, apoiada e sustentada pelos interesses e recursos dos Estados Unidos da América, é difícil determinar de que “ocidente” falamos. Primeiro porque o jihadismo é suportado indiretamente pelas superpotências ocidentais, e segundo, porque milhões de muçulmanos são eles próprios ocidentais, e portanto estariam a fazer uma guerra contra si mesmos. E 2) num mundo de abissais clivagens de desconhecimento sobre o islão e sobre os muçulmanos, não só por parte de não muçulmanos, como dos próprios muçulmanos ignorantes da história e desenvolvimentos da sua identidade religiosa, agravada por problemas de marginalização sócio-económica e problemas identitários resultantes de histórias de diásporas passadas, é complicado perceber de que “ocidente” falamos quando dizemos que o islão ou os muçulmanos querem destruir. O que é que exatamente se pretende destruir? O islão que não conhecem, ou o ocidente onde nunca se conseguiram integrar? Ou será que o jihadismo atual no ocidente e contra o ocidente é realmente uma rebelião contra um mundo de sonhos desfeitos, empregos nunca conseguidos, estatutos sociais jamais alcançáveis, ausência de ideais para um futuro interessante, ou efetivamente, uma verdadeira banalização do mal, tal como Hannah Arendt explicou ser a natureza humana.

Qualquer que seja a interpretação, o facto é que no que diz respeito à Jihad, e à origem do conceito, o mito permanece.

NOTA: Esta é a primeira parte do artigo. A segunda será publicada na próxima semana
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 * Faranaz Keshavjee nasceu a 11 de Janeiro de 1968, em Moçambique, na então capital Lourenço Marques e chegou como “retornada” a Portugal, em Setembro de 1974, aterrando no Bairro Alto, bem no meio das ruas estreitas e carismáticas por onde passavam o fado, as varinas e os travestis.O fascínio e o gosto pelo estudo e investigação nas ciências sociais e humanas levaram-na a estudar primeiro para uma licenciatura em Antropologia Social e depois um Mestrado em Psicologia Social no ISCTE, seguindo depois para o Reino Unido onde se especializou em Estudos Islâmicos e Humanidades, no Institute of Ismaili Studies em Londres, e prosseguindo a sua investigação para um doutoramento na Universidade de Cambridge. As questões de género e identidades sociais dos muçulmanos em Portugal fizeram parte dos seus trabalhos académicos. Quando regressou a Portugal trabalhou no Centro Ismaili como consultora académica, e deu aulas nas Universidade Católica, Lusófona e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Traduziu obras académicas sobre o Islão, foi conferencista em debates nacionais e internacionais, cronista no Público e bloguer no Expresso. O 11 de Setembro foi a data a partir da qual passou a ser referência incontornável nas discussões, entrevistas e publicações sempre que se tratasse de questões ligadas ao Islão e às sociedades muçulmanas. 
Fonte:  http://visao.sapo.pt/opiniao/bolsa-de-especialistas/2016-02-26-Mitos-sobre-o-Islao?utm_source=newsletter
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