quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

"O problema da Cúria Romana é crer-se estar acima do Papa"

PAPA FRANCISCO
diante de membros da Cúria Romana - Sala Clementina (Vaticano)
Hilari Raguer*
Monge beneditino, teólogo e sociólogo

«A Igreja universal não pode funcionar como o simpático
grupo de Jesus»


A cúria vaticana é necessária. A Igreja universal não pode funcionar como o simpático grupo de Jesus com seus discípulos. O problema surge quando alguém que deveria estar a serviço da Igreja se crê acima do Papa e do episcopado universal.  Os meios de comunicação não cessam de falar da oposição que o Papa Francisco encontra entre seus mais imediatos colaboradores, a Cúria vaticana.

Francisco não suprimiu o Vaticano, como alguns desejariam, porém se instalou austeramente em Santa Marta, e ali leva uma vida simples e cordial, relacionando-se amavelmente com todo mundo. Quão distante fica o cerimonial de Pio XII, segundo o qual para aproximar-se e beijar-lhe a mão devia se fazer três vezes a genuflexão enquanto se avançava em direção de sua augusta pessoa!

Recentemente, o teólogo jesuíta espanhol Juan Masiárecordava em Religión Digital que, quando em 25 de janeiro de 1959 o Papa João XXIII anunciou a convocação do Concílio Vaticano II, disse que, com tal ocasião, rogava por «um amistoso e renovado convite a nossos irmãos separados das Igrejas cristãs a participar com nós do banquete da graça e fraternidade, ao qual aspiram tantas almas em tantos rincões do mundo».

Porém, no texto oficial comunicado pelo Secretário de Estado, cardeal Tardini, permitiram-se corrigir o Papa, como se simplesmente houvesse formulado um «convite às comunidades separadas para buscar a unidade», suprimindo a qualificação de «igrejas» e «irmãos» e o convite para «participar do banquete de graça e fraternidade», por receio de que pareceria que autorizasse a intercomunhão.

Nos inícios do Vaticano II, quando se discutia a reforma litúrgica, João XXIII, visitando uma paróquia romana, falou a favor da língua do povo, e acrescentou (cito de memória): «Veremos já amanhã como reproduz minhas palavras o Osservatore Romano» [jornal diário publicado pelo Vaticano].

Pericle Felici foi o secretário-geral do Concílio, e como tal favoreceu descaradamente a minoria conservadora. Inexplicavelmente Paulo VI encarregou àquele homem anticoncílio a editio typica (edição oficial definitiva) dos documentos conciliares. Para ele tinha-se que corrigir uma grande quantidade de erros de datilografia que, com a pressa, haviam sido introduzidos não somente no Osservatore Romano, mas até na Acta Apostolicae Sedis, que é como o Diário Oficial do Vaticano.
PERICLE FELICI
Nos anos 1960 ele era arcebispo da Cúria Romana e foi encarregado de ser o Secretário-Geral
do Concílio Vaticano II, mesmo sendo contrário a ele!

Porém, além daquelas emendas mecânicas, Feliciatreveu-se a introduzir por sua própria conta algumas modificações, como se ele fosse superior a um concílio ecumênico presidido pelo Papa. A emenda mais notável foi haver introduzido na constituição Gaudium et Spes a expressão «doutrina social da Igreja», que a comissão redatora havia achado oportuno suprimir na última redação, que foi submetida à votação definitiva.

O padre Chenu (dominicano), redator principal do documento, em seu livro A “doutrina social da Igreja” como ideologia(Éditions du Cerf, Paris, 1979), chegou a qualificar de «fraudulenta» esta modificação.

A razão que Chenu dá é que a expressão «doutrina social da Igreja» está geralmente associada às encíclicas dos Papas modernos e nem tudo o que se diz nestas encíclicas vem do evangelho, mas também de certa ideologia. Por exemplo, a sacralização da propriedade privada. É contra o direito natural e a moral cristã o que alguns povos primitivos criam, ou seja, que a selva e o rio são comuns e não podem ser apropriados?

E se isso fosse pouco, Paulo VI criou cardeal a Felici e o nomeou presidente da Comissão para a Interpretação dos Textos Conciliares e presidente da Comissão Redatora do Novo Código de Direito Canônico.

Felici, em seus últimos anos, passava o mês de agosto em uma fazenda do ilustre povoado de veraneio de Can Toni Gros (Barcelona), propriedade de umas religiosas das quais era «cardeal protetor». Para a festa da Assunção, costumava ir a Montserrat. Não concelebrava, mas assistia revestido de uma capa e, ao final da missa conventual, dizia umas palavras aos fiéis e dava a bênção apostólica.

Almoçava com a comunidade e no café gostava de contar coisas do Vaticano e responder às nossas perguntas. A última vez foi em 15 de agosto de 1981. Ele estava seriamente enfermo do coração (morreria em 22 de março do ano seguinte). Havia três anos e pouco que tinha sido eleito Papa João Paulo II e, como depois de todas as eleições, se dizia que reformaria a Cúria. 
PAPA JOÃO PAULO II
beija o solo do Brasil ao chegar em São Paulo no dia 12 de outubro de 1991

Perguntado a respeito, disse que podia-se fazer leves retoques, porém a Cúria era absolutamente necessária para o bom funcionamento da Igreja. Perguntamos-lhe o que lhe parecia o novo Papa, e se desfez em elogias a ele, sobretudo pelas suas viagens. Então um monge disse: «Alguns criticam essas viagens». Ao que Felici respondeu: «Como podem criticar suas viagens, quando têm um grande sucesso e arrasta as multidões? É seu carisma».

E acrescentou (são palavras textuais, que me ficaram gravadas, e das quais somos ainda testemunhas todos os monges que formávamos, então, a comunidade de Montserrat): «Seu carisma é viajar, ma a governare la Chiesa, siamo noi! (porém quem governa a Igreja somos nós!)».

*Hilari Raguer osb, nasceu em Madri (Espanha), em 1928. Licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona, ele estudou teologia no Pontifício Ateneu Santo Anselmo em Roma e doutorou-se em Sociologia pela Sorbonne, em Paris. É monge beneditino em Montserrat (proximidades de Barcelona) e sacerdote.

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: Religión Digital – Opinião – Segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016 – 17h09 – Internet: clique aqui.
Jesús Bastante

Bergoglio pede «profecia, proximidade e esperança»,
no encerramento do Ano da Vida Consagrada
PAPA FRANCISCO
encontra-se com cerca de cinco mil religiosos na Sala Paulo VI (Vaticano) para a
cerimônia de conclusão do Ano da Vida Consagrada.
Na foto, o papa cumprimenta Dom Jesús Sanz Montes O.F.M.
Ele é o atual Arcebispo de Oviedo (Espanha). É também o Comissário Pontifício da União Lumen Dei.
Ele é o mais novo arcebispo de bispos espanhóis.

«E o Papa?», Ouviu-se dizer de uma freira espanhola depois de quase uma hora de atraso. Na Sala Paulo VI [no Vaticano], cinco mil religiosos de todo o mundo reuniram-se para celebrar com o Papa Francisco o encerramento do Ano da Vida Consagrada. Mas Bergoglio não chegava. As dúvidas e sussurros se transformaram em aplausos quando a Guarda Suíça saiu pela porta lateral da sala de aula e, pouco depois, o Papa apareceu.

A apresentação foi feita pelo cardeal Braz de Aviz, o qual reivindicou o papel dos religiosos e religiosas no trabalho com refugiados, anciãos, crianças abandonadas, pobres e excluídos, vendo neles «o rosto de Cristo». Apesar das dificuldades e «da queda de vocações», «vemos renascer a esperança e a confiança no Senhor». O responsável pelos religiosos do mundo expôs os desafios  futuros para a vida consagrada, «em um período de mudança necessária, também para nós». [...]

«Eu tinha preparado um discurso sobre o tema em três pilares: a profecia, o outro é a proximidade e, finalmente, a esperança. Profecia, proximidade e esperença. Passei-o ao prefeito [da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica – cardeal João Braz de Aviz] porque é meio chato de lê-lo», disse o Papa entre sorrisos, para começar um improvisado discurso «do que me vem ao coração».

«Todos, homens e mulheres consagrados ao serviço do Senhor, que trabalham na Igreja com essa saída de uma pobreza forte, de um amor casto que comporta uma paternidade e maternidade espiritual para toda a Igreja, e uma obediência... No caso da obediência, sempre se pode dizer alguma coisa, porque a perfeita obediência é aquela do Filho de Deus, homens e mulheres que vivem uma obediência forte, não militar, não, não... Isso é disciplina. Uma obediência de doação do coração. Isto é profecia», começou Francisco, que solicitou «a profecia da obediência» contra «o risco da anarquia», que «é filha do demônio».

PAPA FRANCISCO
é acolhido por religiosos quando adentra à Sala Paulo VI

«O Filho de Deus não é anárquico, não somos chamadas a fazer uma força de resistência contra seus inimigos. Jesus já o disse a Pilatos: se eu fosse um rei deste mundo, teria chamado meus soldados para defender-me», destacou o Papa, que, quase com gestos, «meu italiano é tão pobre», pediu aos religiosos «engolir» o que pensa antes de falar.

E o que é a profecia? «Dizer ao povo que há um caminho de felicidade, de alegria, que é o caminho de Jesus. É o caminho de estar perto de Jesus. É um dom, um carisma a profecia. Que eu saiba dizer qual é a palavra, e em que momento justo para dizê-la, ou para que toda a minha vida seja uma profecia». Para o Papa, «é muito importante homens e mulheres profetas».

A segunda palavra é proximidade. «Homens e mulheres consagrados, porém não distantes das pessoas, mas próximos, para entender a vida dos cristãos e dos não cristãos, seus sofrimentos e problemas, há tantas coisas para entender...».

«Direis a mim – reconheceu Bergoglio –, se eu sou uma monja de clausura, que devo fazer? Ser consagrado não significa sair a uma, duas ou três ruas na sociedade». É que «a vida consagrada deve estar próxima das pessoas, com uma proximidade física, espiritual. Conhecer as pessoas». Porém, sem esquecer a comunidade. «Quem é o primeiro próximo a um consagrado? O primeiro irmão ou irmã da comunidade. Este é o vosso primeiro próximo. Uma proximidade carinhosa, boa, com amor».

«Um modo de distanciar-se dos irmãos e irmãs da comunidade é o terrorismo das fofocas. Quem faz fofocas é um terrorista dentro da própria comunidade, porque lança como uma bomba uma palavra na comunidade. Quem faz isto destrói como uma bomba», criticou o Papa, que pediu aos religiosos que, se chega a esse momento, «mordei a língua, eh? Bem forte».

«Terrorismo na comunidade, não. Se tens algo contra uma pessoa, dize-o à pessoa que pode resolver o problema, e a nenhum outro. De acordo?», assinalou Bergoglio, que afirmou que outra coisa é dizer «no capítulo, em público». «Tende coragem, se os religiosos não fofocarem haverá uma grande mudança na Igreja».

Finalmente, a terceira palavra, a esperança. Uma esperança que «vos confesso que me custa quando vejo a situação das vocações, quando recebo os bispos e me dizem os seminaristas que têm, quando vejo as vossas comunidades e vejo uma ou duas vocações, e a comunidade envelhece...».

«Senhor, por que acontece isto? Por que o ventre da vida consagrada está tão estéril?», perguntou-se o Papa, que criticou «a inseminação artificial» em algumas congregações que «recebem qualquer um e, em seguida, surgem os problemas. Não se deve receber sem controle. Deve-se comprovar que esta é uma boa vocação e ajudá-la a crescer».

«Contra a tentação da desesperança e da esterilidade, devemos orar. E orar sem descanso», rogou o Papa. «Eu vos peço que vosso coração seja quente de vocações. O Senhor que é tão generoso não descumprirá a sua promessa. Porém, devemos chamar à porta de seu coração», finalizou o Papa, que destacou o «perigo» de que uma congregação busque vocações «com o dinheiro. E o dinheiro não leva à felicidade, entendido?».

Traduzido do espanhol por Telmo José Amaral de Figueiredo. Para acessar este artigo em sua versão original, clique aqui.

Fonte: Religión Digital - Vida Religiosa – Segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016 – 12h44 – Internet: clique aqui.

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