Luiz Felipe Pondé*
O mundo é mais complicado do que pensa nossa vã crítica social. Até ela,
nossa vã crítica social, é parte dos processos de acomodação de vícios
inconfessáveis. A moral pública funciona por repressão e hipocrisia: a
primeira silencia, a segunda sorri em eventos sociais e de caridade.
Alguém pode ser um pedófilo e, ainda assim, fazer parte de instituições
com grandes realizações e ser protegido por elas e por seus entes mais
próximos. A pedofilia, assim como toda forma de violência sexual, tende a
ser acobertada inclusive por conta da vergonha que ser vítima dela
causa.
Apesar da histeria coletiva quando surge alguma notícia sobre pedofilia
(e se for na Igreja, então, a histeria é maior ainda, porque serve de
arma para difamação, usada pelos seus concorrentes), na verdade, o
cotidiano se ajusta rapidamente para tornar tal "pecado" invisível, a
fim de que a vida continue na sua normalidade. Essa é a natureza da
moral pública: repressão, hipocrisia, mentira.
O problema da crítica social de massa (conhecida como "causas políticas
progressistas") é que ela é demasiadamente grosseira em seu espírito
para tocar nas sutilezas ("finesse") da natureza humana (sim, essa mesma
que está na moda dizer que nunca existiu) e seus modos de acomodação
via moral pública.
E a "política progressista" é inócua nesse terreno, porque alguém pode
ser um "defensor" dos mais fracos e ser pedófilo. O discurso público em
favor do "bem" não garante uma vida alheia às baixarias da natureza
humana que habitam as sombras.
O filme "Spotlight",
de Tom McCarthy, é um exemplo magnífico de que "quase ninguém" quer
saber de casos de pedofilia na Igreja (e eu diria, com certeza, tampouco
fora dela). A tendência da moral pública, cuja substância sempre foi e é
a hipocrisia, acomoda a pedofilia a fim de que a normalidade social
siga realizando, inclusive, tarefas consideradas construtivas para a
sociedade. Assim como o bom povo alemão seguiu sua vida...
O erro da política que se toma como redentora do mundo é não ver sua
própria cegueira cognitiva, devido a sua forma de operação: a política é
sempre grosseira na atuação e pragmática no espírito. A natureza íntima
da política é a guerra, e não a paz. Mantê-la "quieta" exige muita
institucionalização dos conflitos.
A política nada pode fazer acerca dos dramas morais; pode apenas
"aniquilar" os atores morais indesejáveis. Logo, não há solução política
para questões como a pedofilia sem o uso da violência institucional
contra os pedófilos.
Mas a moral pública –e sua tendência à inércia, normalmente– vence, pois quase ninguém "gosta" de violência explícita.
O olhar moral (aquilo que antigamente se chamava de "costumes") sobre a
sociedade sempre foi mais profundo e amplo, mas difícil de ter algum
"uso" para causas progressistas, justamente porque capta a floresta
densa que é o mundo humano e suas ramificações infinitas. A alma é um
pântano e tende à inércia moral. A pedofilia, como todo "pecado", reside
aí.
O filme trata do famoso caso de uma "rede" de pedofilia na Igreja
Católica na região de Boston, na virada do último século. O caso custou a
transferência do cardeal Law da diocese de Boston (que sabia de tudo e
ficou quieto) para Roma e seu acobertamento institucional.
Os jornalistas do "Boston Globe" (da equipe de reportagens de fôlego
chamada Spotlight) descobrem um sistema interno da Igreja que afastava o
padre acusado de pedofilia "em silêncio", com a parceria, muitas vezes,
de advogados importantes e em troca de grana para a família da vítima.
A grana funcionava justamente porque as vítimas eram frequentemente de
classes sociais vulneráveis. E o pedófilo, sempre um padre simpático e
atencioso com suas ovelhas.
Combater a pedofilia exige o rompimento com as formas sociais de
acomodação dos costumes a serviço da normalidade cotidiana. A violência
desses processos de acomodação destroem vidas e carreiras. No filme, um
editor-chefe judeu e um advogado armênio encabeçam o combate –ou seja,
gente de fora da rede de relações da Igreja Católica.
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* Filósofo.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/02/1737803-spotlight.shtml
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