domingo, 14 de fevereiro de 2016

Francisco e Cirilo pedem ação urgente para evitar nova guerra mundial

  António Marujo*
 

O patriarca Cirilo, de Moscovo, e o Papa Francisco, 
ontem em Havana

Encontro histórico em Havana termina com declaração conjunta a apelar à comunidade internacional para travar perseguições a cristãos
O Papa Francisco e o patriarca Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa, querem uma "ação urgente da comunidade internacional para prevenir nova expulsão dos cristãos do Médio Oriente". Ao mesmo tempo, pedem à comunidade internacional que "faça todos os esforços possíveis para pôr fim ao terrorismo valendo-se de ações comuns, conjuntas e coordenadas", mas de modo "responsável e prudente". E os cristãos devem rezar para que Deus "não permita uma nova guerra mundial".
 
A declaração conjunta dos dois líderes religiosos, naquele que é o primeiro encontro entre o bispo de Roma e o patriarca de Moscovo em mil anos de separação das duas Igrejas, foi assinada ontem, cerca das 17.00, em Havana (22.00 de Lisboa). No documento, Francisco e Cirilo dizem que, ao levantar a voz em defesa dos cristãos perseguidos, exprimem igualmente a sua "compaixão pelas tribulações sofridas pelos fiéis doutras tradições religiosas, também eles vítimas da guerra civil, do caos e da violência terrorista".
 
Os líderes das duas maiores igrejas cristãs recordam a violência que já causou milhares de vítimas na Síria e no Iraque, os milhões que ficaram sem casa e a urgência de restabelecer a paz civil. "É essencial garantir uma ajuda humanitária" às populações martirizadas, afirmam, apelando a que se faça tudo para libertar pessoas raptadas.

Francisco e Cirilo pedem que todas as partes se sentem à mesa das negociações, de modo a permitir o regresso dos refugiados, a cura dos feridos e uma paz duradoura. E prestam homenagem aos cristãos que foram já vítimas do martírio - os cristãos são, atualmente, a confissão religiosa mais perseguida no mundo. Os mártires "pertencentes a várias Igrejas mas unidos por uma tribulação comum, são um penhor da unidade dos cristãos".

A declaração, em 30 pontos, refere ainda "o êxodo maciço dos cristãos" do Médio Oriente, a preocupação com as ameaças à liberdade religiosa, a importância do diálogo inter-religioso e a responsabilidade dos líderes religiosos na recusa de "ações criminosas" em nome de Deus.

A integração europeia não deve recusar o respeito das identidades religiosas, e os países ricos não podem ignorar a sorte de milhões de migrantes e refugiados, nem a extrema necessidade e pobreza: "A crescente desigualdade na distribuição dos bens da Terra aumenta o sentimento de injustiça perante o sistema de relações internacionais que se estabeleceu."

O conflito na Ucrânia merece uma referência explícita: "Convidamos todas as partes do conflito à prudência, à solidariedade social e à atividade de construir a paz." E as igrejas devem "trabalhar por se chegar à harmonia social" e abster-se de participar ou agravar o conflito.
Neste encontro de "irmãos na fé cristã", como se definem, Francisco e Cirilo acrescentam que se encontraram "longe das antigas disputas" europeias e, por isso, sentindo "mais fortemente a necessidade dum trabalho comum entre católicos e ortodoxos".

A separação e as possibilidades de encontro entre as duas Igrejas é, aliás, o outro grande tema deste documento que põe fim a mil anos de tensão. Os dois líderes lamentam os conflitos do passado, manifestam-se conscientes das dificuldades do presente e esperam que o próprio encontro possa a restabelecer a unidade e ajudar a aplanar as tensões que ainda permanecem.

"Não somos concorrentes, mas irmãos", escrevem, dizendo que católicos e ortodoxos comungam da mesma visão sobre o papel da família, e que "devem aprender a dar um testemunho concorde da verdade".

Jornalista do religionline.blogspot.pt
 
( a seguir, um segundo texto sobre a história e as razões da separação entre católicos e ortodoxos)

Política e religião, razões de um cisma de mil anos
Foram razões políticas que levaram à excomunhão mútua entre os cristãos do Ocidente e do Oriente, em 1054, mesmo se havia já divergências teológicas importantes. Depois, o modo de entender a fé cavou mais fundo a separação. Hoje, a política e os modos de entender a fé cristã aproximam os dois grandes ramos do cristianismo, mesmo se subsistem importantes factores de divisão em ambos os campos.
 
Durante os primeiros séculos, o cristianismo dos dois lados da Europa foi seguindo modos diferentes de se entender a si mesmo e de compreender a presença cristã na sociedade política. Mas a primeira grande divergência aparece ainda no século VIII, com a crise iconoclasta, a querela relativa às imagens. Nela “intervieram a teologia, a disciplina e a polícia”, como recorda o teólogo alemão Hans Küng, na sua monumental obra “O Cristianismo. Essência e História” (ed. Círculo de Leitores/Temas e Debates).

Em 725 e 726, o imperador Leão III, de Bizâncio, fez vários discursos apoiando um movimento que pretendia a destruição das imagens, com isso agravando as discussões já existentes. E mandou mesmo destruir uma imagem de Cristo na porta do seu palácio, muito venerada pela população. 
 
A questão teve sucessivos episódios nos séculos seguintes, agravando o fosso entre as duas metades da Europa. A liturgia foi também seguindo caminhos diferentes. No século XI, as questões políticas – com Roma e Constantinopla a discutir sobre quem tinha a herança do Império Romano – deram um carácter definitivo à separação, com a excomunhão mútua do enviado do Papa a Constantinopla, o cardeal Humberto Candida, e do patriarca Miguel Cerulário. 
 
“O ponto mais baixo das relações mútuas” ainda estaria para vir, com as cruzadas, como nota Küng. Massacres de latinos às mãos dos bizantinos, o cerco e saque de Constantinopla às mãos dos cruzados e a imposição da hierarquia latina à Igreja oriental durante meio século foram factores a agravar o cisma – e permanecem no inconsciente colectivo de muitos cristãos ortodoxos como uma ferida aberta. 
 
As divergências teológicas que vinham de trás aprofundaram-se a partir daí: os cristãos orientais admitem os ícones mas não as imagens em escultura, as liturgias tornam-se cada vez mais distintas, a organização da Igreja torna-se mais sinodal e autónoma no Oriente, e mais centralizada na figura do Papa, no Ocidente latino – o reverso desta medalha é que, no Oriente, cada Igreja, não dependente de um poder religioso centralizado, pode ficar mais dependente do poder político do momento. 
 
Surge também uma profunda divergência teológica: para o cristianismo latino do Ocidente, o Espírito Santo procede de Deus Pai e de Jesus Cristo; para o cristianismo oriental ortodoxo, ele procede apenas de Deus Pai. 
 
Hoje, o papel do Papa é ainda motivo de divergência e as diferenças teológicas permanecem, mas já não têm o peso de outrora. Os papas João Paulo II e Francisco admitiram rever o lugar do bispo de Roma, como passo para uma Igreja que alie a unidade e uma maior autonomia das igrejas locais. A excomunhão mútua foi retirada em 1964, a aproximação pessoal, institucional e teológica é cada vez maior. A política veio de novo baralhar a questão, em questões como a reivindicação, por parte dos católicos orientais, dos bens que o regime comunista lhes tirou para entregar à Igreja Ortodoxa; ou com a maior complacência da Igreja Ortodoxa russa para com situações como a invasão russa da Ucrânia. 
 
O encontro de ontem, em Havana, é um passo de gigante para aplanar um milénio de zangas. 
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Fonte:  http://www.dn.pt/sociedade/interior/francisco-e-cirilo-pedem-accao-urgente-para-evitar-nova-guerra-mundial-5027749.html

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