António Marujo*
O patriarca Cirilo, de Moscovo, e o Papa Francisco,
ontem em Havana
Encontro histórico em Havana
termina com declaração conjunta a apelar à comunidade internacional para travar
perseguições a cristãos
O Papa Francisco e o patriarca
Cirilo, da Igreja Ortodoxa Russa, querem uma "ação urgente da comunidade
internacional para prevenir nova expulsão dos cristãos do Médio Oriente".
Ao mesmo tempo, pedem à comunidade internacional que "faça todos os
esforços possíveis para pôr fim ao terrorismo valendo-se de ações comuns,
conjuntas e coordenadas", mas de modo "responsável e prudente".
E os cristãos devem rezar para que Deus "não permita uma nova guerra
mundial".
A declaração conjunta dos dois
líderes religiosos, naquele que é o primeiro encontro entre o bispo de Roma e o
patriarca de Moscovo em mil anos de separação das duas Igrejas, foi assinada
ontem, cerca das 17.00, em Havana (22.00 de Lisboa). No documento, Francisco e
Cirilo dizem que, ao levantar a voz em defesa dos cristãos perseguidos,
exprimem igualmente a sua "compaixão pelas tribulações sofridas pelos
fiéis doutras tradições religiosas, também eles vítimas da guerra civil, do
caos e da violência terrorista".
Os líderes das duas maiores igrejas
cristãs recordam a violência que já causou milhares de vítimas na Síria e
no Iraque, os milhões que ficaram sem casa e a urgência de restabelecer
a paz civil. "É essencial garantir uma ajuda humanitária" às populações
martirizadas, afirmam, apelando a que se faça tudo para libertar
pessoas raptadas.
Francisco e Cirilo
pedem que todas as partes se sentem à mesa das negociações, de modo a
permitir o regresso dos refugiados, a cura dos feridos e uma paz
duradoura. E prestam homenagem aos cristãos que foram já vítimas do
martírio - os cristãos são, atualmente, a confissão religiosa mais
perseguida no mundo. Os mártires "pertencentes a várias Igrejas mas
unidos por uma tribulação comum, são um penhor da unidade dos cristãos".
A
declaração, em 30 pontos, refere ainda "o êxodo maciço dos cristãos" do
Médio Oriente, a preocupação com as ameaças à liberdade religiosa, a
importância do diálogo inter-religioso e a responsabilidade dos líderes
religiosos na recusa de "ações criminosas" em nome de Deus.
A
integração europeia não deve recusar o respeito das identidades
religiosas, e os países ricos não podem ignorar a sorte de milhões de
migrantes e refugiados, nem a extrema necessidade e pobreza: "A
crescente desigualdade na distribuição dos bens da Terra aumenta o
sentimento de injustiça perante o sistema de relações internacionais que
se estabeleceu."
O conflito na Ucrânia
merece uma referência explícita: "Convidamos todas as partes do
conflito à prudência, à solidariedade social e à atividade de construir a
paz." E as igrejas devem "trabalhar por se chegar à harmonia social" e
abster-se de participar ou agravar o conflito.
Neste
encontro de "irmãos na fé cristã", como se definem, Francisco e Cirilo
acrescentam que se encontraram "longe das antigas disputas" europeias e,
por isso, sentindo "mais fortemente a necessidade dum trabalho comum
entre católicos e ortodoxos".
A
separação e as possibilidades de encontro entre as duas Igrejas é,
aliás, o outro grande tema deste documento que põe fim a mil anos de
tensão. Os dois líderes lamentam os conflitos do passado, manifestam-se
conscientes das dificuldades do presente e esperam que o próprio
encontro possa a restabelecer a unidade e ajudar a aplanar as tensões
que ainda permanecem.
"Não somos
concorrentes, mas irmãos", escrevem, dizendo que católicos e ortodoxos
comungam da mesma visão sobre o papel da família, e que "devem aprender a
dar um testemunho concorde da verdade".
Jornalista do religionline.blogspot.pt
( a seguir, um segundo texto
sobre a história e as razões da separação entre católicos e ortodoxos)
Política e religião, razões de um
cisma de mil anos
Foram
razões políticas que levaram à excomunhão mútua entre os cristãos do Ocidente e
do Oriente, em 1054, mesmo se havia já divergências teológicas importantes.
Depois, o modo de entender a fé cavou mais fundo a separação. Hoje, a política
e os modos de entender a fé cristã aproximam os dois grandes ramos do
cristianismo, mesmo se subsistem importantes factores de divisão em ambos os
campos.
Durante
os primeiros séculos, o cristianismo dos dois lados da Europa foi seguindo
modos diferentes de se entender a si mesmo e de compreender a presença cristã
na sociedade política. Mas a primeira grande divergência aparece ainda no século
VIII, com a crise iconoclasta, a querela relativa às imagens. Nela “intervieram
a teologia, a disciplina e a polícia”, como recorda o teólogo alemão Hans Küng,
na sua monumental obra “O Cristianismo. Essência e História” (ed. Círculo de
Leitores/Temas e Debates).
Em
725 e 726, o imperador Leão III, de Bizâncio, fez vários discursos apoiando um
movimento que pretendia a destruição das imagens, com isso agravando as
discussões já existentes. E mandou mesmo destruir uma imagem de Cristo na porta
do seu palácio, muito venerada pela população.
A
questão teve sucessivos episódios nos séculos seguintes, agravando o fosso
entre as duas metades da Europa. A liturgia foi também seguindo caminhos
diferentes. No século XI, as questões políticas – com Roma e Constantinopla a
discutir sobre quem tinha a herança do Império Romano – deram um carácter definitivo
à separação, com a excomunhão mútua do enviado do Papa a Constantinopla, o
cardeal Humberto Candida, e do patriarca Miguel Cerulário.
“O
ponto mais baixo das relações mútuas” ainda estaria para vir, com as cruzadas,
como nota Küng. Massacres de latinos às mãos dos bizantinos, o cerco e saque de
Constantinopla às mãos dos cruzados e a imposição da hierarquia latina à Igreja
oriental durante meio século foram factores a agravar o cisma – e permanecem no
inconsciente colectivo de muitos cristãos ortodoxos como uma ferida aberta.
As
divergências teológicas que vinham de trás aprofundaram-se a partir daí: os
cristãos orientais admitem os ícones mas não as imagens em escultura, as liturgias
tornam-se cada vez mais distintas, a organização da Igreja torna-se mais
sinodal e autónoma no Oriente, e mais centralizada na figura do Papa, no
Ocidente latino – o reverso desta medalha é que, no Oriente, cada Igreja, não
dependente de um poder religioso centralizado, pode ficar mais dependente do
poder político do momento.
Surge
também uma profunda divergência teológica: para o cristianismo latino do
Ocidente, o Espírito Santo procede de Deus Pai e de Jesus Cristo; para o
cristianismo oriental ortodoxo, ele procede apenas de Deus Pai.
Hoje,
o papel do Papa é ainda motivo de divergência e as diferenças teológicas permanecem,
mas já não têm o peso de outrora. Os papas João Paulo II e Francisco admitiram
rever o lugar do bispo de Roma, como passo para uma Igreja que alie a unidade e
uma maior autonomia das igrejas locais. A excomunhão mútua foi retirada em
1964, a aproximação pessoal, institucional e teológica é cada vez maior. A política
veio de novo baralhar a questão, em questões como a reivindicação, por parte
dos católicos orientais, dos bens que o regime comunista lhes tirou para
entregar à Igreja Ortodoxa; ou com a maior complacência da Igreja Ortodoxa
russa para com situações como a invasão russa da Ucrânia.
O
encontro de ontem, em Havana, é um passo de gigante para aplanar um milénio de
zangas.
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Fonte: http://www.dn.pt/sociedade/interior/francisco-e-cirilo-pedem-accao-urgente-para-evitar-nova-guerra-mundial-5027749.html
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