1.Quando regressou a casa, depois
da cimeira europeia em que conquistou um “estatuto especial” para o seu
país, David Cameron declarou o seu amor à pátria e esclareceu que não
amava Bruxelas. Muita gente se espantou com o sound-bite
do primeiro-ministro britânico, interpretando-o como um sinal, mais um,
do seu total desapego pela integração europeia, uma espécie de pecado
original que o Reino Unido trouxe para a Europa desde que aderiu. Uma
segunda linha de comentários foi mesmo no sentido de que a saída do
Reino Unido seria uma espécie de bênção para a Europa, que poderia
libertar-se da “chantagem” britânica e regressar aos seus valores
fundamentais, preservar o seu modelo social, restaurar a solidariedade e
prosseguir o caminho de uma “ever closer union”,
como dizem os tratados. Felizmente, nem o PS nem o PSD vêem a presença
do Reino Unido na Europa dessa maneira. Como disse o primeiro-ministro
em Bruxelas, para Portugal a paisagem europeia sempre incluiu e continua
a incluir o Reino Unido.
Mas a “falta de amor” de que
acusam Cameron merece uma reflexão pelo que significa sobre o que é a
União Europeia hoje, precisamente quando atravessa a sua mais grave
crise existencial, na confluência de muitas crises: da dívida e da
divergência económica, aos refugiados e à segurança, passando pelo seu
lugar num mundo cada vez mais multipolar e em profunda desordem. Não
vale a pena idealizar uma União Europeia que já não existe nem, muito
menos, diabolizar um dos seus membros. A Europa foi construída, desde o
seu início, pela razão contra a barbárie (sim, a nossa maravilhosa
Europa nasceu da barbárie em solo europeu). A razão não desperta emoções
e, por isso, é difícil de amar. Mas a História europeia é um verdadeiro
cardápio sobre a forma como as emoções e os mitos nacionais
(verdadeiros ou inventados) podem matar a razão. É essa a experiência da
Europa na primeira metade do século XX, quando duas “guerras civis”
quase a destruíram e quando um pequeno número de visionários, de Robert
Schuman a Alcide De Gasperi passando por Jean Monnet ou Winston
Churchill, decidiu que o melhor caminho para impedir mais guerras em
solo europeu era ir contra a própria História, criando um projecto de
integração política capaz de deslegitimar o nacionalismo. Fizeram-no,
cinco anos depois do fim da II Guerra, quando as marcas da barbárie
ainda estavam demasiado vivas. Fizeram-no também pelo impulso dos
Estados Unidos. Fizeram-no a partir da mais improvável das alianças,
entre a França e a Alemanha Ocidental. Fizeram-no, finalmente, a partir
do único critério seguro para afastar a guerra, que é o critério da
democracia. A Comunidade foi a obra de uma elite europeia corajosa e
lúcida que soube colocar a razão acima da História, provando que o
determinismo pode ser vencido. A ameaça soviética ajudou a consolidar a
integração europeia e a fortalecer a aliança transatlântica. Feitas as
contas, foi um tremendo sucesso que abriu as portas à prosperidade e à
paz.
2.Quando o Muro caiu e a União Soviética implodiu, foi
preciso encontrar uma nova razão para a Comunidade Europeia. De repente,
a perspectiva de uma grande Alemanha unificada de novo no coração da
Europa fez abalar algumas convicções e recordar alguns velhos demónios.
Foi, de novo, graças à obra de visionários, como Kohl ou Mitterrand, e
ao empenho dos Estados Unidos que a Europa conseguiu sobreviver.
Maastricht e o euro foram, uma vez mais, uma decisão política capaz de
moldar o rumo dos acontecimentos. A razão vencia de novo os medos e as
emoções. Apesar da guerra nos Balcãs, o regresso da História ficaria
adiado e o futuro parecia magnífico, graças à vitória do Ocidente que
pôs fim à Guerra Fria e ao início da globalização económica. As
economias ricas chegaram a acreditar que os ciclos económicos tinham
desaparecido perante o milagre da expansão dos mercados. O “fim da
História” de Fukuyama parecia ser possível. Por uma década, a integração
europeia transformou-se num exemplo para o mundo. Durante algum tempo,
entre Maastricht e o chumbo da Constituição (2005), a Europa tornou-se
ela própria numa ideologia. Em Paris, Londres (com Blair), Berlim,
Lisboa ou Madrid, a Europa era um programa político que o
centro-esquerda e o centro-direita partilhavam. Durou pouco, como durou
pouco o anunciado fim da História.
A queda das Torres Gémeas e a
queda do Lehman Brothers vieram pôr tudo em questão. A globalização
revelou-se mais útil para as potências emergentes do que para as
potências estabelecidas. O unilateralismo americano dividiu os aliados
europeus. A crise financeira fragmentou a união monetária, abrindo as
portas à crise da dívida. A Alemanha viu nisso uma possibilidade de
recriar o euro à sua imagem e semelhança, ignorando as suas
consequências politicas. Hoje, os egoísmos nacionais dominam a política
europeia, como a crise dos refugiados (mais ainda do que a crise do
euro) o prova todos os dias. As emoções estão a vencer a razão e o
nacionalismo, mesmo que ainda em forma mais ou menos benigna, envenena
de novo a integração europeia. Não é um problema de Cameron, apesar de
todos os seus erros. Racismo, xenofobia, medo do outro, passaram a ser
de novo moeda corrente. As fronteiras reerguem-se e os muros também.
Esta é a Europa que temos hoje, da qual só podemos sair se a razão
política voltar a dominar as pulsões nacionais.
3.Olhando para a
campanha de Cameron em favor do sim à Europa, até se poderia dizer que o
líder britânico ama mais a Europa do que se poderia esperar.
Finalmente, as verdadeiras razões que justificam ficar dentro foram
assumidas com total clareza, substituindo a imigração ou a “soberania”
ou os arranjos técnicos que negociou com os seus pares. Cameron já disse
que a influência britânica no mundo seria menor, que a segurança do seu
país e o combate ao terrorismo ficariam prejudicados, que a economia
britânica perderia milhares de empregos e o acesso ao Mercado Único
teria de ser negociado numa posição de fraqueza. A ele, juntou-se um
vasto coro de adeptos, desde os chefes militares aos grandes
empresários. Tudo isto devia ter dito antes da negociação em Bruxelas.
No dia 23 de Junho saberemos se foi demasiado tarde.
Os seus parceiros europeus não quiseram esticar a corda. Não há tripés
de duas pernas. O triângulo entre Paris, Londres e Berlim é fundamental
para a capacidade europeia de influenciar o mundo e para a coabitação
entre visões distintas sobre o que deve ser a Europa que são
necessárias.
4.Hoje, a crise dos refugiados tornou-se a prova de vida da integração europeia. O Monde escrevia a toda a largura da sua primeira página: “Refugiados: a Europa desintegra-se”. A cimeira europeia para encontrar uma solução,
marcada para o dia 7 de Março, pode ser o limite a partir do qual já
não haverá solução para preservar Schengen. Os rostos das crianças que
choram de medo junto a mais um arame farpado já não são suportáveis. A
destruição da Síria atinge uma dimensão diabólica. A Europa e os Estados
Unidos parecem totalmente impotentes perante esta catástrofe humana. Em
Shangai, os ministros das Finanças do G20, para além de avisarem para
as repercussões económicas globais de uma saída do Reino Unido, parecem
repetir o guião do início da crise financeira de 2008, defendendo a
utilização de todos os meios ao alcance dos Governos para intervir nos
mercados, para evitar nova descida aos infernos. A Alemanha opõe-se.
Os analistas admitem que esta nova crise pode não ser tão má como a de
2008 porque há novos instrumentos para a conter. Enquanto tudo isto
acontece, Bruxelas dorme sobre uma Europa de outro tempo, enquanto a
actual se desmorona.
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* Jornalista portuguesa. Escritora.
Fonte: http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-razao-contra-a-barbarie-1724631?page=-1
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