Marcus Faustini*
Tenho uma relação poderosa mas também conflituosa com o termo em questão
O
livro “Utopia”, a emblemática obra de Thomas More, completa 500 anos
agora em 2016. Dividido em duas partes, a primeira faz uma crítica à
Inglaterra e à França do século XVI e seu belicismo; a segunda parte
relata uma comunidade ideal, uma ilha, aos olhos de um viajante europeu.
A efeméride, que já disparou eventos de comemoração e ações anunciadas
em diversos lugares, traz à cena o debate sobre a ideia de utopia — que
vai além do livro de More. Frequentemente associada a grupos de
esquerda, utopia é um conceito de fabulação sobre passados e futuros
ideais que influenciou visões de sociedades. Tenho uma relação poderosa
mas também conflituosa com a palavra em questão.
Conheci a palavra utopia antes da complexidade do seu significado conceitual. Comecei a frequentar rodas de ativismo e arte da cidade na segunda metade dos anos 1980 e lembro de ter ficado encasquetado com a força da danada da tal utopia, essa palavra que estava na boca de tanta gente, naqueles ambientes. Para um moleque da periferia, que tentava criar formas de sobreviver numa escolha tão difícil — fazer arte e ativismo —, ela dava uma força interna por acreditar numa jornada coletiva que trazia a emoção de ver tanta gente crendo que a vida poderia ser melhor para todos. Porém, pra encasquetar a minha mufa, quem usava a palavra utopia por vezes era desqualificado. “Fulano está sendo utópico, acha que a realidade vai se adaptar aos seus ideais” ou “deixa de ser utópico” eram frases disparadas em debates calorosos. Ou seja: os utópicos eram taxados, no popular, de viverem no mundo da lua. Por sua vez, quem era alvo dessa desqualificação também dava o troco pra quem a fazia — são vendidos, traidores, perderam a utopia, adaptaram-se ao sistema, eram as respostas que dividiam campos.
Em casa, falar de utopia era quase um sinal de vagabundagem, “uma vida meio hippie, meio Bob Marley” que vinha sempre taxada como uma coisa que não daria futuro pra ninguém. “Tu tem é que ter profissão na vida”, sentenciava minha mãe. Mas eu já havia determinado que a utopia seria uma das bússolas da vida. Tanto nos grupos de vivência da Teologia da Libertação como nos grupos de teatro que participava, a utopia era um valor comum: a utopia de viver da arte, de fazer dela um impulso para mudar o estado das coisas. Assim, foi a aproximação juvenil e conflituosa com a tal palavra.
De lá pra cá, muito coisa aconteceu em nossas vidas e no Brasil. Da melhoria de vida dos mais pobres até a visão de transformar nosso país em grande nação desenvolvida que regeu diversos governos, ambos os fatos estão permeados por vários aspectos do conceito de utopia. No livro “Utopia — A história de uma ideia”, de Gregory Claeys com tradução de Pedro Barros pelas Edições Sesc, o autor faz um inventário histórico da utopia, assumindo a dificuldade de uma definição utilizável e de uma síntese. A amplitude do conceito é imensa, demonstrada no livro. O desenvolvimento de seu pensamento passou por fases míticas, religiosas, positivistas e institucionais. Todas baseadas em faróis de modelos ideais de sociedades. Desde sua base mitológica, ligada à visão de um paraíso perfeito de origem da humanidade, onde homens viviam como deuses, até a presença deste conceito nas raízes do liberalismo, que propunha uma organização “de opulência utópica” — como chama o autor — baseada na divisão do trabalho e no crescimento do comércio.
Não há dúvida, entretanto, que a operação do conceito de utopia mais eficaz no pensamento moderno foi a marxista. Sendo base para muitas vidas e lutas contra desigualdades, imaginou a destinação ideal da humanidade como uma sociedade sem classes. Porém, a leitura do consistente livro de Gregory Claeys, que possui uma narrativa de bom fluxo diante do tema difícil, faz entender também que muitos projetos autoritários de sociedade tiveram na ideia de perfeição — prima da utopia — sua base para censuras e exclusão das diferenças. Algumas delas influenciadas pelo pensamento marxista, inclusive. Alguns podem dizer que os desvios da ideia de utopia está naqueles que erraram em sua maneira de concretizá-la. Entretanto, essa visão moral de que existiriam homens mais apropriados que outros para carregar a missão utópica é a base desses erros.
Apertando pra juntar palavra e conceito, nos 500 anos da publicação do seminal livro de More, arriscamos dizer que o sumo da utopia é aquilo que ela nos traz como sentido de busca de igualdade, para uma sociedade melhorada. Mas ela não é uma sociedade perfeita ou uma comunidade idealizada — esses dois sentidos deram espaço a sociedades de exclusão e até mesmo autoritarismo. Melhorar as condições de igualdade no mundo foi o maior uso histórico do conceito. Perceber os diversos usos da utopia, compreender sua história, não é enfraquecê-la. Torna a palavra uma flecha mais certeira. Sigamos com ela.
--------------
*É um diretor teatral, documentarista e escritor que destaca-se na cena teatral desde 1998.
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/a-palavra-utopia-18728152
Imagem da Internet
Conheci a palavra utopia antes da complexidade do seu significado conceitual. Comecei a frequentar rodas de ativismo e arte da cidade na segunda metade dos anos 1980 e lembro de ter ficado encasquetado com a força da danada da tal utopia, essa palavra que estava na boca de tanta gente, naqueles ambientes. Para um moleque da periferia, que tentava criar formas de sobreviver numa escolha tão difícil — fazer arte e ativismo —, ela dava uma força interna por acreditar numa jornada coletiva que trazia a emoção de ver tanta gente crendo que a vida poderia ser melhor para todos. Porém, pra encasquetar a minha mufa, quem usava a palavra utopia por vezes era desqualificado. “Fulano está sendo utópico, acha que a realidade vai se adaptar aos seus ideais” ou “deixa de ser utópico” eram frases disparadas em debates calorosos. Ou seja: os utópicos eram taxados, no popular, de viverem no mundo da lua. Por sua vez, quem era alvo dessa desqualificação também dava o troco pra quem a fazia — são vendidos, traidores, perderam a utopia, adaptaram-se ao sistema, eram as respostas que dividiam campos.
Em casa, falar de utopia era quase um sinal de vagabundagem, “uma vida meio hippie, meio Bob Marley” que vinha sempre taxada como uma coisa que não daria futuro pra ninguém. “Tu tem é que ter profissão na vida”, sentenciava minha mãe. Mas eu já havia determinado que a utopia seria uma das bússolas da vida. Tanto nos grupos de vivência da Teologia da Libertação como nos grupos de teatro que participava, a utopia era um valor comum: a utopia de viver da arte, de fazer dela um impulso para mudar o estado das coisas. Assim, foi a aproximação juvenil e conflituosa com a tal palavra.
De lá pra cá, muito coisa aconteceu em nossas vidas e no Brasil. Da melhoria de vida dos mais pobres até a visão de transformar nosso país em grande nação desenvolvida que regeu diversos governos, ambos os fatos estão permeados por vários aspectos do conceito de utopia. No livro “Utopia — A história de uma ideia”, de Gregory Claeys com tradução de Pedro Barros pelas Edições Sesc, o autor faz um inventário histórico da utopia, assumindo a dificuldade de uma definição utilizável e de uma síntese. A amplitude do conceito é imensa, demonstrada no livro. O desenvolvimento de seu pensamento passou por fases míticas, religiosas, positivistas e institucionais. Todas baseadas em faróis de modelos ideais de sociedades. Desde sua base mitológica, ligada à visão de um paraíso perfeito de origem da humanidade, onde homens viviam como deuses, até a presença deste conceito nas raízes do liberalismo, que propunha uma organização “de opulência utópica” — como chama o autor — baseada na divisão do trabalho e no crescimento do comércio.
Não há dúvida, entretanto, que a operação do conceito de utopia mais eficaz no pensamento moderno foi a marxista. Sendo base para muitas vidas e lutas contra desigualdades, imaginou a destinação ideal da humanidade como uma sociedade sem classes. Porém, a leitura do consistente livro de Gregory Claeys, que possui uma narrativa de bom fluxo diante do tema difícil, faz entender também que muitos projetos autoritários de sociedade tiveram na ideia de perfeição — prima da utopia — sua base para censuras e exclusão das diferenças. Algumas delas influenciadas pelo pensamento marxista, inclusive. Alguns podem dizer que os desvios da ideia de utopia está naqueles que erraram em sua maneira de concretizá-la. Entretanto, essa visão moral de que existiriam homens mais apropriados que outros para carregar a missão utópica é a base desses erros.
Apertando pra juntar palavra e conceito, nos 500 anos da publicação do seminal livro de More, arriscamos dizer que o sumo da utopia é aquilo que ela nos traz como sentido de busca de igualdade, para uma sociedade melhorada. Mas ela não é uma sociedade perfeita ou uma comunidade idealizada — esses dois sentidos deram espaço a sociedades de exclusão e até mesmo autoritarismo. Melhorar as condições de igualdade no mundo foi o maior uso histórico do conceito. Perceber os diversos usos da utopia, compreender sua história, não é enfraquecê-la. Torna a palavra uma flecha mais certeira. Sigamos com ela.
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*É um diretor teatral, documentarista e escritor que destaca-se na cena teatral desde 1998.
Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/a-palavra-utopia-18728152
Imagem da Internet
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